CAPÍTULO VINTE E UM
– Não, mas você realmente viu o que aconteceu? – Luca desenrola uma risada alta e clara no meio do salão de café da manhã do hotel.
– Claro! Você estava na porta me chamando que nem uma criança para que eu visse o Marcus desesperado no corredor com apenas um travesseiro na frente do corpo.
Bom, todo mundo no corredor leste do oitavo andar viu o que aconteceu: o jornalista italiano que mais da metade da imprensa não suporta ficou trancado para o lado de fora de seu quarto depois de uma briga com um ficante. O fato ocorreu no meio da noite e, bom, Marcus não estava em sua melhor condição para ficar trancado do lado de fora.
Luca estava fazendo sei lá o que quando ouviu os socos altos na porta e me chamou – e também alertou alguns colegas nossos por mensagem. Quando eu me levantei da cama, metade dos jornalistas do andar espiavam pela porta o italiano desesperado e praticamente nu gritando para que ele pudesse entrar.
E a cobertura da corrida alemã se tornou icônica antes mesmo dos carros entrarem na pista.
– Não, você não sabe o tipo de profanidades que ele me mandou depois que eu anunciei meu noivado com o Eric. – Luca tira o celular do bolso e me mostra suas mensagens privadas. – É hilário como ele se acha superior a todo mundo no paddock, principalmente os pilotos.
– E você mostrou essa merda pro Eric?
– Claro! – ele gargalha ainda mais alto e eu chuto sua perna para que ele se controle. – No mesmo segundo, ele escreveu um texto todo jurídico como se fosse processar Marcus por ser desrespeitoso para com ele e enviou. Aquele italiano nunca se arrependeu tanto de ter nascido quando viu a mensagem e me bloqueou logo em seguida.
– Eu pagaria para ter presenciado essa cena!
– Ainda bem que isso nunca mais irá se repetir. Agora disfarça, Perrie, ele entrou no salão.
Instantaneamente, todos os olhares se voltam para Marcus. Ele adorava ser o centro das atenções, mas o que aconteceu de madrugada poderia ser considerado o pior pesadelo de qualquer pessoa na face do planeta. Respiro fundo e volto a tomar meu café da manhã como se a minha vida dependesse disso.
Não há muito o que se fazer no domingo de manhã, antes da corrida, no quesito não relacionado ao trabalho. Eu confiro se peguei tudo, carreguei as baterias das câmeras e limpei os cartões de memória três vezes antes de entrar na van que nos levará ao autódromo. Luca não para de falar sobre seus planos para a pequena pausa de verão – três semanas sem corridas, que incrível – em uma praia no México.
Não consigo prestar atenção aos nomes, estou muito ocupada pensando em como vou passar três semanas longe da única coisa que me mantém distante dos meus pensamentos e dos meus sentimentos. É, desde que Carpentier colocou a Hanna Osment para segui-lo por todos os cantos, eu me sinto extremamente desconfortável – e estou falhando quando se trata de esconder isso. Eu sabia que ele iria conseguir alguém para ficar ao seu lado após aquela confusão, porém eu não esperava que ele faria isso tão bem a ponto de eu me questionar se ele realmente entrou ou não em um relacionamento com a modelo.
Carpentier nunca foi muito presente nas redes sociais, o completo oposto da Hanna. As fotos dos jantares em restaurantes exclusivos, os vestidos que modelam seu corpo perfeitamente, o seu rosto emoldurado por um boné vermelho com a logo do time: ela construiu mais do que um disfarce. Até fotos deles juntos na adolescência ela postou na quinta feira – e todos os fofoqueiros de plantão surtaram ainda mais, gritando para quem quisesse ouvir que eu não estou à altura de um piloto de corrida. E talvez de pessoa nenhuma.
No entanto, agora é infinitamente mais difícil afastar os momentos que compartilhamos da minha memória. O que ele disse no baile, a despedida que eu não consigo juntar os pedaços, os detalhes que percebi nos nossos últimos encontros. É a trégua esfregando na minha cara que a minha postura era agressiva demais ou eu só precisava dela para enxergar através de toda a minha raiva?
É tarde demais para me arrepender de como eu agi, remoer o passado não vai ajudar em nada. Cada vez que eu paro e penso, eu analiso o meu comportamento, o que eu escondi por trás de todo o tratamento irritadiço, frio e até mesmo infantil que eu tive para com Gael. Assim que eu derrubei uma das minhas barreiras, eu me concentrei em entender o que se passava comigo.
E só depois eu parei para observar Carpentier e juntar as peças dentro de mim.
Desabafei tudo para Eric e Luca em Montreal, debulhando-me em lágrimas e soluçando meus pensamentos, depois do meu surto repentino sobre Luca e sua declaração. Eu não posso sair por aí gritando o que eu sinto, sempre fui ensinada a engolir minhas emoções e fingir concordar com o que dizem. Mas eu não engoli a cantada idiota de Carpentier, assim como não engoli o contrato até refletir sobre como a dinâmica da minha carreira mudou, assim como não engoli o tratamento ridículo após os boatos. E, agora, eu não consigo engolir os sentimentos que desenvolvi.
E todas as minhas inseguranças ressurgem quando eu lembro de Gael abraçando Hanna como se ela fosse a solução de seus problemas – e eu fosse um dos problemas. Mas, no fundo da minha mente, eu ainda estou agarrada aos pequenos detalhes do baile e dos nossos últimos encontros profissionais. Ele está atuando tão bem assim ou eu que visualizei algo que nunca existiu?
Fotografar a corrida acontece de modo automático em meu corpo: registro tudo, mas assisto a pouco ou quase nada. A voz de Luca é a única capaz de me tirar de meus devaneios quando ele pede por ajuda ou por alguma informação anterior. Ele sugere que eu vá até o parc fermé para registrar os pilotos, mas não é o meu melhor dia.
– Sério? Você vai passar essa oportunidade? O dia está lindo e, independente de quem for para o pódio, você terá muito material para editar durante a nossa folga.
– Quem são os cinco primeiros colocados?
– Rambert, Honan, Sawyer, Yukimura e Carpentier, nessa ordem.
– Considerarei a opção. – Resmungo e volto a olhar para a pista, desinteressada em manter alguma conversa superficial com Luca.
Contrariando a minha primeira decisão, eu segui para o parc fermé assim que os pilotos entraram nas últimas voltas. Desta vez, não tenho um segurança da Ferrari para me colocar na frente das grades, então sou obrigada a lutar por um espaço decente entre as câmeras e os mecânicos das equipes.
Em um mar de macacões coloridos e lentes, aguardo pacientemente pelo momento final. Um carro vermelho surge no acesso aos pits, e meu queixo cai quando eu vejo de quem se trata. Mas ele não estava em quinto?
A felicidade de Carpentier é visível antes mesmo dele retirar a balaclava. Essa deve ser a sua terceira vitória, talvez a quarta. Depois da colisão na Áustria, ele foi capaz de sair do meio do grid e subir todas essas posições, colocando dois veteranos atrás dele nos últimos minutos. E agora ele está ameaçando Rambert, criando um campeonato de pilotos ainda mais interessante, que se definirá na última corrida.
A pergunta que não quer calar é: por que demoraram tanto tempo para oferecerem um contrato na Fórmula 1 para Carpentier? Ele sempre teve bons resultados nos campeonatos, mas nenhuma equipe o colocou em suas academias de pilotos. Por que a trajetória dele se mostra ainda mais surpreendente a cada corrida?
Assim que Carpentier desce o pódio, eu estou de prontidão para entrevistá-lo no paddock. Seu sorriso é ainda mais grandioso diante do microfone, completamente orgulhoso do que conquistou na pista hoje. Nosso contato não vai além disso: todos estão com a atenção voltada para o francês e cada segundo conta, logo eu o libero para as outras emissoras assim que agradeço por seu tempo.
Sinto-me decepcionada ao vê-lo se afastar sabendo que o que quer que tenha existido entre Carpentier e eu não passou de algo da minha cabeça.
Agarro o braço do Luca assim que declaramos que nossos deveres jornalísticos foram concluídos.
– Que tal pedirmos comida e irmos para a piscina do hotel? – meu amigo sugere, animado para a nossa folga.
– Você vai editar as fotografias para mim?
– Você pode comer e editar, Perrie, não se faça de difícil – ele empurra meu ombro de brincadeira e eu rio.
– Eu não tenho nenhuma roupa de banho na minha mala, Luca.
– Ninguém falou necessariamente em entrar na piscina.
Esta é uma discussão que eu não vou vencer, logo deixo Luca sugerir bons restaurantes – depois de passarmos quase uma semana preparando refeições simples na pequena cozinha do nosso quarto de hotel, comida local é um presente mais que merecido – e me arrastar até a van.
No hotel, seguimos para o nosso quarto. Luca pediu nossos aperitivos para uma longa conversa à beira da piscina no caminho e agora só precisamos esperar. Ele troca para uma sunga de banho e revira sua mala atrás de uma camisa florida. Eu troco a camiseta da USN e a calça soltinha e fresca que usei o dia todo por um vestido de linho sem mangas, de um tom azul claro estampado com flores brancas bem pequenas – mais uma das várias peças que Heart produziu.
Decido não trabalhar mais por hoje. O voo longo de amanhã me fornecerá tempo o suficiente para editar mais fotos e vendê-las no meu site. O que tinha que ser feito para a USN está feito.
– Luca, quanto tempo até a comida chegar?
– Faltam – ele confere em seu celular – dois minutos. Você poderia buscar na recepção? Eu te encontro na piscina.
– Por que todo esse esforço para achar uma camisa?
– É a minha melhor camisa e a piscina tem luzes no fundo, as fotos ficarão incríveis.
– Se você acha que eu vou tirar fotos para você – Luca me encara com sua melhor expressão para me convencer a fazê-lo –, você está completamente certo. Te encontro na piscina.
Deixo o quarto e tomo o elevador até a recepção. Não sobrou nenhum jornalista na área dos sofás e poltronas após um longo dia no autódromo. Um dos funcionários do hotel acena para mim com um sorriso e eu me aproximo do balcão.
– Senhorita Michelle, um entregador acabou de deixar o seu pedido aqui – ele estende as duas sacolas para mim.
– Muito obrigada.
– E tem um homem procurando pela senhorita, ele disse que é de uma das equipes de Fórmula 1. Posso ajudá-la em mais alguma coisa?
– Não, muito obrigada. Tenha uma boa noite.
– Para a senhorita também.
Reparo no homem vestido de preto dos pés a cabeça, mas com um broche vermelho em sua camisa de botão símbolo do time italiano e me aproximo. Não é um integrante da equipe que eu reconheça, minha mente já entra em estado de alerta, com medo de que alguma coisa tenha dado errado do final da entrevista até agora. Qualquer um dos assessores poderiam ter me ligado – principalmente Cisti porque ele possui meu número de celular pessoal, mas ele anda sumido do paddock.
O homem me cumprimenta e estende um envelope branco com meu nome. Abro-o antes que a minha curiosidade me consuma.
Perrie,
Metade do caminho foi percorrido e todas as conquistas são válidas. Eu gostaria de convidá-la para conversarmos sobre como vamos prosseguir antes da pausa de verão. Há um motorista esperando por sua resposta, e eu vou entender caso você esteja muito ocupada.
G.C.
Merda, o que eu faço agora? Sinalizo para o homem que preciso ligar para uma pessoa e ando até o outro lado do saguão. Disco o número de Luca e rezo para que ele me atenda logo.
– Ei, Michelle, algo errado?
– Não, não, a comida chegou, mas eu recebi um convite inesperado – sussurro. – Você pode vir até mim?
– Já chamei o elevador. Não surte, estou chegando!
Busco sinais de impaciência no mensageiro, e seu olhar me flagra. Infelizmente, está escrito na minha cara o quanto o convite inesperado me perturbou.
Encaro os elevadores como se isso fosse trazer Luca mais rápido, mas cada minuto é uma tortura para a minha mente inquieta.
– Perrie, estou aqui. – Luca me abraça assim que sai do elevador, talvez o desespero em minha voz tenha assustado-o. Encolho-me contra seu corpo e respiro fundo antes de organizar as minhas palavras após um longo e cansativo dia de trabalho. – Que convite?
– Leia você mesmo – entrego o bilhete para ele.
O rosto de Luca se modifica a cada linha lida. Eu tento segurar a minha risada quando ele me encara completamente perplexo, mas um pouco mais consciente do meu surto.
– Ele realmente te convidou para conversar?
– Aham.
– Depois de todos aqueles boatos?
Só balanço a cabeça positivamente porque sei onde meu amigo quer chegar.
– O que tem na cabeça desse francês é um mistério para mim, porque vocês acabaram de sair de uma confusão, toda a internet acha que ele tem uma namorada, mas ele convida você para conversarem sobre uma parceria que nem deveria existir? Acho que dirigir em alta velocidade tem suas consequências para o cérebro. – Ele apoia as mãos em seu quadril e me encara sério.
Seguro a minha risada com todas as minhas forças.
– Você está pensando em aceitar?
– Você vai me odiar se eu disser que sim?
– Vá lá, Michelle. Eu guardarei uma porção para quando você chegar, mas lembre-se de que eu gostaria de ouvir tudo sobre essa conversa, todos os mínimos detalhes – ele toma as sacolas das minhas mãos e beija a minha bochecha.
– Não durma antes de eu chegar, combinado?
– Pode deixar, querida. Divirta-se! – o sorriso de Luca fala mais que suas palavras: aproveite este momento longe das câmeras e dos carros para realmente transparecer o que está sentindo.
– Se ligar para Eric, não deixe nenhum tipo de evidência no quarto! – implico.
– Cuide da sua vida, Perrie! – ele grita enquanto as portas do elevador se fecham.
++++++
Ajeito o meu vestido e olho ao redor, gravando como as videiras sobem pelas armações de metal e as flores desabrocham sob a luz fraca do ambiente aberto. Empurro a porta de madeira pesada e sou recebida por um cumprimento em alemão de uma bela mulher. A construção em estilo enxaimel não deixa claro se estou em um hotel mais reservado, em um restaurante ou qualquer outro tipo de estabelecimento. A localização é bem afastada das cidades ao redor do autódromo, então isso apenas me deixa ainda mais confusa.
A mulher me leva para outro ambiente externo: flores por todos os lados, luzes penduradas indo de um extremo ao outro e se perdendo nos galhos, árvores entrelaçadas umas nas outras. É um pequeno universo fantástico escondido na Alemanha, longe de toda a agitação do mundo e seus movimentos eternos de guerras diplomáticas e econômicas.
– Pêrrí!
O meu nome, dito daquela maneira, passeia pela área como uma brisa agradável. A mulher me deixa com um aceno educado e Carpentier se aproxima.
Pela primeira vez, reparo em como ele fica com o cabelo preso. Duas pequenas mechas emolduram seu rosto, o resto dos fios está amarrado na altura de sua nuca, dando palco para os traços de seu rosto que são escondidos pela balaclava e pelo capacete na maior parte do tempo.
Diferente também das pistas, dos bastidores e do baile de gala, não há um traço sequer de vermelho em suas roupas. O azul de sua camisa levemente bufante é alguns tons mais escuro que o azul do meu vestido, seus tênis brancos contrastam com a calça preta justa e eu me pergunto se ele não está sentindo tanto calor como eu. Ele se aproxima, mas mantém alguns passos de distância entre nossos corpos.
– Olá, Enric. – Controlo o quanto vou sorrir para não dar tão na cara assim o que está se passando dentro de mim.
– Bonsoir, Pêrrí. Seu percurso até aqui foi tranquilo? – aceno positivamente, com medo da minha voz me trair. – Posso te acompanhar até a nossa mesa?
Com outro aceno, ele entende o recado. Gentilmente, Carpentier coloca uma mão em minhas costas, na altura dos meus ombros, e me guia até um deque à beira de um lago, com duas poltronas entre as árvores e escondido entre as videiras e os arbustos floridos pelos quais passamos. Este local não tem um simples jardim, mas um belíssimo labirinto à disposição dos visitantes. Não consigo ver mais nenhum sinal do edifício, sou absorvida pela atmosfera natural. Assim que seu toque me deixa, eu me sento na poltrona à direita.
– Como você está depois de conseguir mais uma vitória em sua primeira temporada?
– É como finalmente ver toda a dedicação de anos de competições valer cada centavo – ele sorri e se senta à minha frente. – E você, como você está?
– Mais um dia de trabalho bem feito é um sinal de que estou no caminho certo. – Deixo meu celular sobre a pequena mesa de café entre nós e alongo os meus braços em direção ao céu, liberando um pouco do nervosismo. – Por que você não pode ser uma pessoa normal e me ligar ao invés de enviar bilhetes?
– Você não pode me culpar por ser um pouco antiquado.
– Claro, senhor Eu-Odeio-Redes-Sociais. Você também não assina alguns deles para me instigar a comparar as caligrafias
A surpresa em seus olhos nem me abala. É, agora eu sei que foi ele quem deixou aquele bilhete com o pedido para que eu o fotografasse assim que ele saísse do carro e comemorasse seu primeiro pódio do campeonato. Cruzo as minhas pernas e mantenho o olhar erguido, mas me controlo para não deixar que a minha pose controle as minhas falas. Não estou aqui como Perrie, a jornalista, e sim como Perrie, a mulher com medo de seus sentimentos e do que o universo pode fazer com eles.
– Eu sou uma jornalista, Enric, o que você esperava? Que eu não percebesse os detalhes depois de tudo o que aconteceu?
– Nenhum detalhe lhe escapa. – Ele sorri aliviado.
– Infelizmente, às vezes eu enxergo detalhes demais – confesso, com um pouco de receio em minha voz.
– Você percebeu mais alguma coisa? – a sua surpresa muda para curiosidade e ele se inclina, apoiando os braços em suas pernas.
– Não vou cair na mesma armadilha duas vezes, Gael – agito os meus braços, recusando-me a seguir esta direção. – Não vou começar a perguntar ou dizer suposições para as quais eu não terei uma resposta. Nós já fizemos isso no baile.
– Claro, o baile. Você se divertiu?
– Eu acho que sim. Foi uma das melhores experiências da minha vida, mas eu não me lembro de como acabou. – Aperto o meu rosto e esfrego as minhas bochechas. – Tem a chuva forte, um celular que eu levei muito tempo para recuperar, um amigo bêbado, você e um relâmpago.
– Você não se lembra do que aconteceu?
– Apenas pequenos detalhes. Eu tenho essa sensação estranha de que algo a mais aconteceu, mas eu não consigo juntar as peças e entender.
– Você quer que eu conte?
– Primeiro eu quero que você me fale o que quis dizer quando nos vimos no baile e você pronunciou "moulin rouge". É alguma gíria francesa para me ofender ou algo assim?
– Por Deus, não – ele ri. – Você estava tão espetacular que me veio à mente os grandes shows que ocorriam no famoso cabaré parisiense Moulin Rouge. Não foi nenhum tipo de ofensa, eu juro.
– Bom saber que elogios só saem da sua boca em forma de charadas. – Reviro os olhos, finalmente me livrando das diversas teorias que criei sobre o que ele disse no baile. A mais provável de todas elas, na verdade, era sobre ele estar usando uma palavra chique para repetir a ofensa da primeira vez que nos encontramos. Ou seja, me chamar de prostituta, mas em francês.
– Não tenho culpa se as pessoas esperam que eu seja um cara raso só porque sou um piloto de corrida. – Ele ergue a mão como quem acena para um garçom, mas eu não consigo ver ninguém além dos galhos ao nosso redor.
– Mas ninguém disse isso de você, Gael.
– Elas não precisam verbalizar tudo na minha frente para que eu saiba o que elas pensam de mim, Perrie. Você, como jornalista, deveria saber disso.
– Eu não sei de tudo só porque sou jornalista. As pessoas assumem o que quiserem de qualquer um de nós, você sabe muito bem pelo que eu passei... Não, você não sabe. – Jogo a minha cabeça para trás e bufo. – Nós não éramos amigos.
– Então quer dizer que agora somos amigos? – não posso vê-lo, mas consigo imaginar seu sorriso imperturbável e olhos verdes brilhantes me encarando.
Em cada uma de suas palavras, há detalhes escondidos para a minha mente decifrar. Não, nós definitivamente não éramos amigos, mas também não éramos inimigos. E, neste momento, eu não sei o que somos – mas eu sei o que eu sinto, e isso só me deixa mais confusa.
E quanto ao sentimento da despedida do baile, eu sinto que algo mudou entre nós. Sinto, mas não consigo apontar especificamente onde. Talvez seja o álcool afetando minha percepção do momento, ou a luz ofuscante do relâmpago, ou a chuva sem fim. Eu estou no escuro, mas prefiro me manter assim.
Carpentier não incomoda o meu silêncio e a minha recusa em encará-lo enquanto eu penso sobre o que eu realmente vim fazer aqui. Desconecto-me da realidade por alguns segundos – que parecem horas – e só volto a encará-lo quando me sinto pronta e confiante de que não falarei nada de que eu possa me arrepender. Como mágica, um conjunto de louças de chá brancas foram postas à mesa e ele está servindo uma xícara para si.
– Chá de frutas vermelhas – responde com naturalidade enquanto adiciona dois biscoitos ao pires. – O que você pretende fazer durante a folga?
– Passar todo o tempo possível com minha família já que estarei de férias.
– Parece um bom plano. Aceita uma xícara?
– Aham. – Assisto aos seus movimentos fluidos para uma atividade tão banal com muito interesse. Eu sonho em um dia ter toda a consciência corporal que ele tem, delimitando perfeitamente seus movimentos com porcelanas tão delicadas. – Acredito que você deva passar todo o seu tempo treinando, não?
– Apenas o necessário. Preciso passar um tempo com a minha irmã antes de embarcar no ritmo louco das segunda metade da temporada.
Ele coloca a xícara cheia mais próxima do meu lado da mesa e recolhe a sua para reclinar seu corpo contra a poltrona confortável.
– Obrigada – ergo a xícara e tomo um breve gole do líquido quente. – Então eu não devo alimentar esperanças de ver a sua irmã nas próximas corridas, certo?
– Talvez ela apareça em Monte Carlo, depende muito de como a agenda dela ficará. E a sua irmã?
– Ela anda muito ocupada com o trabalho. Ela até prefere não me visitar enquanto eu estou trabalhando porque eu posso ser mais estressada que qualquer piloto de corrida. – Ele engasga com o líquido ao rir do que eu acabei de compartilhar. – Palavras dela, não minhas.
– Vocês realmente são irmãs – ele se recupera e coloca de volta a expressão neutra que o acompanha desde que começamos a conversar. – Então, nenhum trabalho durante a folga?
– Não mesmo. Mas eu fui chamada aqui para conversarmos sobre o que acontecerá depois dela, não fui?
– Na verdade, eu precisava de uma desculpa para encontrá-la. As últimas duas corridas foram muito cansativas e eu sinto que não honrei o contrato.
– Você não me deve desculpas por se sentir sobrecarregado, Enric.
Parte de mim quer explicar para ele que eu consigo trabalhar com pouco material em situações extremas – sinceramente, eu já atuei em áreas piores no início da minha carreira – e a outra parte quer perguntar como ele se sente. Em uma corrida, ele perdeu a chance de pontuar por um erro em conjunto. Na outra, ele se recuperou da melhor forma possível. Faço a minha escolha.
– Está tudo bem com você? Eu imagino como as últimas semanas tenham sido difíceis por causa de tudo – aponto para nós dois e depois balanço a mão, indicando um passado um pouco distante.
– Elas foram bem difíceis. Fingir um relacionamento envolve muita dedicação, mas Hanna está mais do que feliz em cumprir com seu papel.
– Realmente é um relacionamento falso, então? – quero ouvir as palavras de seus lábios para acreditar na realidade.
– Eu não conseguiria me envolver romanticamente com ela agora de forma alguma, meus sentimentos estão focados em outra pessoa. – Ele transparece verdade em sua fala, em sua postura inclinada, em seus olhos vagantes pela noite.
– Então o troféu de melhor piloto do campeonato agora é uma pessoa?
– Não, Perrie. – Minha brincadeira o força a erguer seus muros. É assim com Carpentier, eu deveria estar acostumada. – É uma pessoa real que eu não quero expor aos holofotes, não agora, não desse jeito.
– Oh, isso é muito nobre da sua parte. Se isso te faz feliz, a narrativa com a Hanna é amada pela imprensa, seja pelas fotos atuais ou pelas antigas.
– É, a mãe da Hanna foi incrível em encontrar algumas fotos de quando éramos adolescentes – ele me encara e sorri. – O que foi? Você achou que tudo fosse falso?
– Não, mas hoje em dia é tão fácil editar fotos para que duas pessoas que nunca se viram antes estejam nelas – reflito. – Você e a Hanna se conheciam antes do relacionamento, então?
– Estudamos juntos nos Estados Unidos quando tínhamos 16 anos. Talvez tivéssemos mais, eu não me lembro – ele balança a cabeça, afastando algo que o incomoda de sua memória. – Ela era estudante de intercâmbio e minha dupla nas aulas de literatura.
– Nunca que isso passaria pela minha cabeça. Mundo pequeno, não acha?
– Com certeza. Agora ela é uma modelo famosa que aceita ser a minha namorada de mentira porque eu era o único aluno que não agia que nem um babaca com ela na escola.
– Bom, espero que ela esteja se divertindo.
– É, ela adora ter uma desculpa para evitar ver o ex namorado nos bastidores do mundo da moda – ele dá de ombros.
– Pelo menos ela consegue fugir dos bastidores do trabalho dela, porque já eu... – Desabafo.
Assisto Carpentier deixar sua xícara de lado e me encarar. Droga, eu falei algo estúpido e ele vai embora. Ele vai me odiar e... Abro a minha boca para pedir desculpas, mas ele acena para que eu não o faça. Ele olha para mim, para o mundo ao meu redor e de volta para mim. Por que é tão complicado manter uma conversa leve com ele? É minha culpa se continuamos esbarrando em nossas diferenças?
– Perrie, seja franca: o relacionamento falso não solucionou o seu problema?
– Muito pelo contrário, todos os comentários cessaram. Não se preocupe mais com isso, ok? Você tem um campeonato para vencer.
– Não, não tem como eu não me preocupar. Eu só estou fazendo isso por sua causa. – Há um pouco de acusação em seu tom de voz e em seus olhos.
– Essa ideia do relacionamento falso partiu de você e eu tenho quase certeza de que agradeci a você lá em Montreal. – Eu sabia, bem lá no fundo, que vir até aqui seria um erro. Levanto-me e recolho o meu celular, ciente de que dependo do motorista que me trouxe até aqui para voltar, logo não posso simplesmente desaparecer. Piso firme para longe dele, mas paro para dizer uma última coisa. – Não é como se você se importasse comigo de verdade, então já que não vamos falar de negócios, melhor eu ir embora.
– Por que eu não posso me importar com você, Perrie? – ele aperta suas têmporas, evitando nosso contato visual. – Eu estou aqui, realmente disposto a conversar com você sem a pressão das nossas posições e você insiste em colocar essa distância brutal entre nós.
– Eu não sei, Gael. Uma hora você me traz café, na outra agimos como se nossas presenças aflorassem todos os nossos sentimentos. Eu tento não me agarrar às minhas expectativas, mas quando acho que avancei um passo, tenho que voltar dez – não estou mentindo e isso fica claro na minha expressão exausta.
Ele poderia dizer logo o que espera de mim para o resto da temporada, mas nós estamos aqui, continuando a nos implicar como se isso nos levasse a algum lugar. Bom, eu não posso falar por ele, mas falo por mim: eu me afundo nos detalhes, crio esperanças de que talvez os sinais estejam corretos. Relembro as palavras de Chloe para entender por que eu ainda estou aqui se entre nós dois existe uma sensação confusa. Além do silêncio e dos olhares escondidos no meio dos bastidores agitados, deve existir algo. Eu só não sei o que.
– De qualquer modo, tenha uma boa noite, Enric. – Encerro a noite com o peito apertado e a respiração rasa.
Dou-lhe as costas e respiro fundo, ordenando ao meu corpo para que ele se mexa. Eu vim aqui, eu tentei, eu falhei, agora eu posso simplesmente ir embora sabendo que ele tem outra pessoa em mente para proteger. Eu sou apenas uma jornalista estúpida que não merece compaixão ou amor de outra pessoa.
Mas eu não dou um passo em direção à saída.
– Realmente, eu não sei o que aconteceu com você ou como isso te afetou, Perrie. Mas eu lhe disse para me falar caso pudesse ajudar com qualquer outra coisa, e não foi apenas para soar educado. Eu me importo com você – ele declara. – Será que você pode me deixar falar ao invés de virar as costas e fugir?
– Então fale. – Viro-me e o encaro.
Ele está mais próximo do que eu esperava: nossos corpos se esbarram, eu ergo a minha cabeça para conectar nossos olhos.
– Darf ich dich küssen?
Não reajo às palavras complicadas. Mal respiro quando as mãos dele tocam as minhas e a eletricidade corre pelo meu corpo. É como na primeira vez que nos vimos antes da coletiva de imprensa: eu não consigo tirar meus olhos dele.
– Je peux t'embrasser? – reconheço o francês, mas ainda não compreendo.
– Por Deus, Gael, apenas diga logo!
– Posso te beijar, Perrie Michelle? – sua voz baixa me arrepia.
As palavras me somem e eu balanço a cabeça. A resposta é clara, mas ainda há um pouco de hesitação nele. Não nos movemos.
Então ele apoia as mãos quentes no meu rosto e me puxa para seus lábios. A antecipação se dissipa, o mundo ao meu redor desaparece e as sensações inebriantes invadem o meu peito. Primeiro ele deixa com que meus lábios ditem o ritmo, e para mim é como se eu nunca tivesse sido beijada antes.
Quando as minhas mãos deixam as laterais do meu corpo e eu fico na ponta dos pés, ele toma o controle e me pressiona contra si. Eu sinto a necessidade de nossas bocas, os corações pulsantes, todas as emoções omitidas na ponta de sua língua e ao redor de seus lábios. Eu mentiria se dissesse que não sonhei com esse momento desde que admiti para mim mesma que eu desenvolvi sentimentos por Gael Carpentier.
Eu sonhei que o beijava no meio do autódromo, com todos os olhares curiosos e lentes fotográficas em nós. Eu sonhei que a gente se beijava na despedida do baile – mas eu o fiz apenas para me iludir e tentar preencher o buraco da memória. Eu sonhei que ele me beijava em todos os pontos sensíveis do meu corpo. Porém nada supera a realidade de ser beijada assim.
Quebro a conexão para respirar, no entanto eu não consigo me afastar porque os braços dele estão ao redor da minha cintura e eu penso em como ele fez isso no baile, enquanto conversávamos. Será que ele queria me beijar lá, na frente de todos? Será que estou sonhando? Será que...
– Pare de pensar, Pêrrí. – Ele acaricia o meu rosto com uma das mãos. – Apenas sinta.
Não encontro a minha voz em canto algum para respondê-lo. Estou hipnotizada por Carpentier, seus olhos verdes, seus lábios macios, seus dedos longos em minha pele. Os arrepios por toda a minha pele e a necessidade de me beliscar. Isso é mesmo real?
– Mas você pensou antes de agir – murmuro e, sem querer, arranco uma risada, talvez a mais sincera de todas, de Gael.
– É, eu pensei, e eu deveria ter feito isso antes.
– Pensar ou me beijar?
– Os dois.
E nossos lábios se permitem colidir novamente.
___
Olá, amantes das corridas!
Tudo bem com vocês?
Demorou, mas aconteceu! E aí, será que agora vai?
O capítulo 22 deve demorar algumas semanas (estimo um mês de espera, infelizmente) para sair porque as minhas férias acabaram e eu tenho um relatório complicado para entregar para a minha orientadora, ou seja, vou passar as próximas semanas questionando a minha sanidade e a minha escolha de fazer pesquisa em literatura (cries in universitário language)
EDIT: uma leitora apontou que uma das frases ditas por Gael Carpentier nessa capítulo na verdade não significava aquilo que eu realmente queria transmitir. Deixo claro que sim, naquele momento Carpentier só queria beijar a Perrie (e não outras coisinhas mais, como a antiga frase em francês sugeria). Peço desculpas pelo ocorrido, eu não tenho conhecimento da língua francesa e confiei em uma pessoa indicada por uma amiga para me passar a tradução para a frase. A frase mais apropriada para o contexto se encontra no capítulo.
Amor,
Isa
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