CAPÍTULO VINTE E CINCO
Eu já deveria ter me acostumado com a vida de jornalista viajante. Quer dizer, não tem muito glamour quando se viaja de classe econômica – a executiva é um luxo que a emissora não libera em qualquer ocasião – e se carrega malas gigantescas com equipamentos para cinco dias de cobertura. É duro, bem duro.
Porém é incrível quando eu recebo convites para momentos que nenhum outro jornalista, emissora ou veículo esportivo recebeu. Claro que o tempo para me preparar foi curto, quase inexistente: assim que terminamos com a transmissão do Grand Prix da Itália, Luca e eu fizemos as malas e adiantamos nossos voos. Em Atlanta, eu tive tempo o suficiente para refazer a mala, organizar a minha agenda de trabalhos e embarcar em um voo de volta para a Itália.
Mas por quê? Porque eu aceitei o convite da equipe para acompanhar os testes privados em Milão. Eu não seria maluca de recusar uma chance de ter mais material exclusivo assinado por mim – e de ocasionalmente esbarrar com Gael. Luca quase morreu de inveja quando percebeu, mais uma vez, que não estava incluído no pacote.
Eu estou quase virando uma jornalista particular para a Scuderia Ferrari. Isso é ruim? Não para mim. Como eu não fico responsável sempre pela escrita de materiais sobre as corridas – esta é a área de Luca –, meus chefes não acham que eu sou imparcial em momento algum. E eu assinei um longo e extenso contrato de confidencialidade no começo da temporada com o time que me protege de qualquer problema legal. Finalmente esta oportunidade está se pagando.
Quanto mais eu produzo, mais ofertas eu recebo de outras emissoras e mídias esportivas. Neste momento, eu posso praticamente escolher em qual local quero trabalhar – a oferta de Chicago ainda está aberta, porém eles parecem mais interessados em me fazer esperar para que eu aceite os termos deles do que conversar e chegar a um acordo. Meu trabalho com as duas assessoras da Ferrari é tão fluido que eu mesma considerei perguntar se elas não sabem de alguma vaga no setor de mídia e criação de conteúdo – só que isso iria contra a intenção de conseguir um emprego perto da minha família.
De volta à Itália, eu passei o primeiro dia conversando com alguns membros mais antigos da equipe. É uma semana de testes, mas não vou escrever sobre o desempenho dos carros, e sim sobre o trabalho de vários anos da equipe. Existe história em cada mecânico, cada design, cada parafuso e eu explorei isso durante o dia em uma sala de reuniões no autódromo.
Agora eu tenho que decidir como vou lidar com a pilha de informações. O que vou privilegiar? Quem vou contatar para conversar novamente e dar mais profundidade ao caso? Como vou contar uma história sem me apoiar em formatos já conhecidos pelo público?
A resposta é: não tenho ideia e não consigo pensar.
Deito-me na cama do modesto quarto que reservaram para mim neste hotel bem conceituado de Milão, repassando a minha jornada para o dia seguinte – já que não vou tocar no material recolhido hoje. O percurso de quase duas horas até o autódromo alugado para os testes me dá bastante tempo para refletir.
Carpentier está indo bem, mas a equipe quer colocá-lo para pilotar o carro usado três temporadas – o qual levou Honan a vitória – e cruzar os dados com o que eles possuem do carro atual para melhorá-lo ainda mais. Então para isso eles precisam de alguns dias na pista e uma jornalista para observar tudo.
Na verdade, estou me questionando se eles precisam mesmo de uma jornalista aqui. Eu acho que estou dando muita atenção às teorias malucas de Luca de que essas oportunidades para além das corridas não são somente um interesse extra entre o time e a emissora. Eu aceitaria tranquilamente um convite para trabalhar com a equipe e levar a história para o público crescente nos Estados Unidos, mas assistir aos testes parece exagero.
– E lá vou eu de novo – resmungo.
Não, não quero me prender ao que já passou. Eu assinei um contrato e tenho que honrá-lo. Este é o meu trabalho e ponto final. Questionar se tudo não passa de alguma forma de Carpentier se aproximar de mim desmerece todo o meu esforço para chegar até aqui. Eu sou muito boa no que faço, disso eu tenho certeza. O contrato pode ter sido o pedido de desculpas mais estranho do mundo, mas uma equipe como a Ferrari não assinaria com qualquer emissora e pediria para trabalhar com qualquer jornalista.
Desvio o olhar para a minha janela e a pequena varanda, assistindo ao pôr do sol. Amanhã eu vou passar o dia dentro da garagem da equipe para observar a sinergia de trabalho e escrever sobre isso. Com certeza o meu cabelo ficará acabado com a fumaça, e metade das gravações de áudio terá a qualidade comprometida pelos rangidos dos motores, só que isso será problema para outra hora.
Meu celular toca, mas eu estou tão absorta com a paisagem ao crepúsculo que quem quer que seja pode esperar ou me ligar novamente se for urgente. E se for Luca querendo uma chamada de vídeo para me mostrar algum ponto turístico de Londres – Eric planejou essa viagem surpresa para comemorar o relacionamento deles de modo geral –, eu não quero nem atender.
Deito de lado e cantarolo a música que está presa em minha cabeça para ignorar o toque do celular persistente. A pessoa desiste, mas retorna a ligar e eu decido atender. Estico meu braço e vejo o número desconhecido na tela:
– Alô?
– Pêrrí? – Nunca pensei que fosse ficar aliviada de ouvir a voz de Gael do outro lado da linha.
– A única. Como você conseguiu meu número?
– Eu pedi para Marina – ele sussurra. – Mas isso não é importante. Você está ocupada?
– Não muito, eu estou pensando se começo a trabalhar nos textos hoje ou se ignoro tudo e vou dormir. – Mexo no meu cabelo em uma tentativa de retirar o nervosismo da minha voz. O que será que ele falou para conseguir meu número? Será que estamos em risco?
– Você gostaria de jantar comigo? Claro, se você ainda não tiver pedido nada e não for te atrapalhar.
– Eu não sei. E se alguém do time nos ver e os boatos recomeçarem?
– Eles não estão no mesmo hotel que nós – ele disse, aliviando um pouco da minha tensão. – Está tudo bem se você não puder, mas estamos em um hotel cinco estrelas que tem um dos melhores restaurantes para os hóspedes.
– Claro, eu imagino. – Deito de barriga para cima. Eu quero jantar com ele e arriscar tudo? Eu não sabia que estávamos no mesmo hotel, na minha cabeça eu estava isolada em um hotel diferente para evitar qualquer problema. Do mesmo jeito, eu me sinto nervosa porque ninguém pode saber, e eu não quero arriscar.
– Você está considerando o convite ou isso é um não?
– Você apareceria na minha porta de qualquer jeito – respiro fundo. – Eu jantarei com você, Enric.
– Eu não tinha pensado nisso, mas é uma boa ideia que eu executaria. – Ele ri do outro lado da linha, e o nervosismo dele some. – O que você quer que eu peça para você?
– Eu não faço ideia. – Levanto da cama, ciente de que não sei como me arrumar para um jantar de última hora. – Eu não como carne e estou evitando o consumo de produtos animais, mas se as opções sem carne forem limitadas, eu posso lidar com um pouco de queijo e derivados.
– Eu encontrarei algo que te agrade. Para beber?
– Você está mesmo me fazendo essa pergunta?
– Estava torcendo para você falar qualquer coisa menos gin tônica.
– Peça-o ou eu nem me darei ao trabalho de esperar pela comida com você – ameaço apenas para rir depois.
– Se você não quisesse mesmo jantar comigo, teria desligado na minha cara. – Ele comenta. – Mais alguma coisa?
– Vinte minutos. Eu te encontrarei no restaurante.
– Até logo, Perrie.
Jogo meu celular na cama e começo a tirar meus pertences da mala. Agradeço ao universo por Heart ter insistido que eu colocasse algumas roupas mais refinadas apenas por garantia. Debaixo das opções de vestimenta para o trabalho, encontro uma blusa branca fresquinha que combina muito bem com a calça pantalona verde esmeralda que eu trouxe. Escolho o tênis mais apresentável e aplico pouca maquiagem no meu rosto – disfarço as olheiras, realço meus cílios, hidrato meus lábios e aplico um pouco de iluminador e blush nas bochechas.
Envio uma mensagem – no meu grupo com Heart, Luca e Eric – para avisá-los de que não responderei pela próxima hora nem se eles me ligarem milhares de vezes. É claro que causo curiosidade neles porque não comento o que estarei fazendo e ri sozinha no elevador, disfarçando meu nervosismo.
Não estou nervosa porque não quero fazê-lo, estou nervosa porque, da última vez que me permiti correr alguns riscos por alguém, eu acabei na pior. A sensação de me aventurar de novo é animadora, mas eu quero tratar tudo com extremo cuidado. Minha carreira pode estar em risco se algo der errado.
Tento deixar os pensamentos conflitantes do lado de fora do elevador. Aperto o botão para fechar as portas e espero pela visão estonteante da recepção para acalmar os compassos do meu coração.
Esse hotel deveria ter mais de cinco estrelas. No meio da vida agitada de Milão, ele tem esse aspecto de que parou no tempo e os hóspedes até esquecem que estão em um dos maiores centros da Itália. O restaurante e bar que funciona à noite tem uma vista incrível para o jardim privativo do hotel. Os prédios ao redor nos protegem do resto da vida urbana. Aqui dentro é perfeito. Mas como eu vim a trabalho, eu apenas observei o lugar hoje pela manhã.
– Boa noite, senhorita. Como posso ajudá-la? – A hostess na entrada me encara. O uniforme dela combina com a estética refinada do local, e o cabelo dela é do mesmo tom do metal retorcido que compõe as janelas. A arquitetura antiga se mistura com os traços modernos, não há um detalhe fora de harmonia com o conjunto.
– Eu... – Esqueço o que vim fazer aqui ao encarar a beleza completa do lugar.
– Ela está comigo, Priscila. – A voz de Carpentier atrás de mim me desperta. Olho por sobre o ombro para ele, e começo a me questionar se me vesti de acordo com a situação.
Gael consegue fazer uma calça preta e uma blusa branca – um modelo bem soltinho, tão ousada quanto a blusa que ele usou no baile – parecem a última moda em seu corpo definido. Ele não tem medo de deixar primeiro botões abertos e alguns colares que eu já o vi usando em algumas fotos se destacam contra sua pele.
– Ah, claro, senhor Carpentier. Por favor, fiquem à vontade.
Ela dá um passo para o lado como se a presença de Gael ali fosse assustadora. Repenso se realmente foi uma boa ideia aceitar o convite, mas o restaurante vazio e meu estômago feroz não me deixam recuar para o meu quarto.
– Ma chérie, você está estonteante. – Ele estende seus longos dedos em minha direção, criando um show ainda maior para a hostess observar.
Minha boca não consegue emitir palavra alguma para respondê-lo. Estou embasbacada pela beleza do lugar... e de Gael. Não há um neurônio trabalhando para formar uma frase em agradecimento, eles estão todos ocupados com o homem me guiando até nosso lugar.
Nossa mesa é a mais próxima das portas para o jardim. Gael solta a minha mão para puxar minha cadeira, nossas peles entram em contato por menos de alguns segundos e eu desejo que ele repita isso. Que sua pele toque a minha novamente, que nossas bocas se encontrem.
– Obrigada pelo convite. – Olho ao redor, ainda absorvendo os detalhes do lugar.
– Não precisa agradecer, Perrie. – Ele se senta à minha frente e acena para alguém além de mim. – Como foi o seu dia?
– Cansativo. – Eu desvio o olhar porque encará-lo me distrai completamente. Como eu consigo ignorar isso quando estou trabalhando?, reflito. – E você?
– Não há nada de interessante nas reuniões que eu tive. Mal posso esperar para dirigir um pouco amanhã.
– Será a sua primeira vez no carro em específico?
– Não, eu fiz alguns testes privados antes de entrar oficialmente para o time. – Por mais que eu tente, a jornada de Gael pelo mundo do automobilismo é um pouco confusa. Ele tem esse vazio das competições por alguns anos e depois ele retorna como se nunca tivesse deixado. – Será divertido.
– Se eu não tiver mais entrevistas com a equipe, com certeza assistirei.
Um garçom se aproxima da mesa e serve um gin tônica para mim e água com gás para Gael. Ele nos informa que nossas entradas estarão prontas em breve, Gael agradece em um italiano ritmado, e o homem volta para o balcão do bar.
– Podemos não falar de trabalho? – ele propõe.
– Claro. Sobre o que você quer falar?
Saboreio o gin tônica mais perfumado que tive a chance de experimentar enquanto observo Gael esfregar a própria nuca e esboçar um sorriso torto. Ainda é estranho vê-lo sem o uniforme, e ainda mais estranho não tratá-lo com um pouco de indiferença para mantê-lo afastado de mim.
– Sobre o que você gosta de falar? – A hesitação é aparente em seu tom. Nosso início de relacionamento é um território perigoso, e eu aprecio o cuidado. O que aconteceu antes ainda está fresco em nossas memórias, mas não voltará a se repetir já que estamos sendo honestos um com o outro.
– Que tal uma pergunta por outra pergunta? – O desastre no baile volta à minha mente, mas as coisas mudaram desde então. Eu não insistirei em perguntas que ainda estão longe do meu alcance. – Se você não quiser responder honestamente, tudo bem, eu aceitarei suas respostas confusas. E se eu não quiser responder, lide com isso como quiser.
– Primeiro algo simples. Você é vegetariana? Algum motivo específico?
– Sou. A minha irmã mais nova, Harriette, me influenciou a mudar o meu estilo de vida. – Em qualquer outra situação, eu não falaria sobre a minha família, mas eu sinto que sei demais sobre Gael, e ele sabe pouco sobre mim. – Ela tem para si que, mesmo que não mude o mundo, ela pode contribuir de alguma forma. Na semana passada, ela expandiu o ateliê e passou a oferecer cursos de corte e costura para moradores de Chicago que têm interesse na área e desejam explorar o universo da moda, seja por diversão ou como uma forma de renda.
– Que interessante.
– Ela deve apresentar uma pequena coleção na Semana de Moda de Paris daqui uns meses, eu não poderia estar mais orgulhosa. – Deixo a informação escapar. Agora é mais que oficial: como parte da iniciativa por uma moda mais sustentável e humana, Heart desfilará sua coleção em um pequeno show para outros estilistas renomados, personalidades mundiais e diversos investidores.
– Você já foi à Paris?
– Acho que hoje eu não farei nenhuma pergunta – provoco Gael. Ele faz menção em retirar o que disse, mas eu aceno. – Não, eu nunca fui a Paris. Se eu conseguir, quero estar lá para apoiar a minha irmã.
Ele não comenta nada, porém seu olhar indica que seus pensamentos estão longe. Levo um tempo para buscar uma pergunta que não esteja ligada ao nosso passado ou ao trabalho. O que eu observei nele e ainda não tenho uma resposta?
– Nos pódios, você nunca toma um gole do champanhe. Nas festas após nosso pequeno incidente, eu também nunca te vi com nenhuma bebida alcoólica em mãos. Tem algum motivo para isso?
– Aquela noite em que nos encontramos foi um erro e uma exceção.
– Está tudo bem, Gael. A gente não precisa mais explicar cada confronto que surgiu após aquela noite, e se você não quiser falar, tudo bem por mim – adiciono. Meu coração palpita, talvez eu tenha ido longe demais.
– Não, isso não é mais um pedido de desculpas. – Gael passa a mão pelo cabelo e me encara, a expressão tomada pela seriedade. – Na adolescência, eu tive problemas com álcool. Eu poderia ter iniciado a minha carreira profissional antes, mas eu passei um ano na reabilitação por causa do meu vício.
– Eu sinto muito. De verdade. Eu não fazia ideia.
– Ninguém faz ideia. Meu pai fez questão de esconder tudo para não manchar o meu futuro, mas ele mesmo não me ajudou a sair do buraco que ele ajudou a cavar. – Ele vira o rosto, completamente ressentido com seu passado. – Eu não bebo, Perrie, mas naquele dia eu tive uma recaída por conta do estresse de estrear na Fórmula 1. Eu me culpei todos os dias por aquilo, eu estava completamente fora de mim.
Fico em silêncio. As altas velocidades e o efeito entorpecente do álcool nunca formaram uma boa combinação. Junto as peças aos poucos, formando uma linha do tempo com os acontecimentos que Chloe me contou: Gael a deixou com a mãe para ter melhores oportunidades, e nesse meio tempo ele passou por um período complicado. Então é por isso que a jornada dele no automobilismo é diferente da maioria, eu nunca pensei que algo ruim tivesse acontecido a ponto de arriscar a carreira que ele construía.
– Eu estou sóbrio desde aquela noite – ele admite, encontrando o meu olhar preocupado. – Não há espaço para erros agora que consegui a oportunidade que tanto sonhei. Eu sempre quis isso para mim, e tenho a oportunidade de provar para todos que, mesmo com uma trajetória diferente, eu mereço meu lugar entre os melhores.
– Tenho certeza que ninguém se importa com o que aconteceu agora que você está dominando em sua temporada de estreia. – Estico o meu braço sobre a mesa, tocando a mão dele para transmitir um pouco de conforto. – Você tem o talento e a habilidade para provar a todos que um dia duvidaram de você que eles estavam errados.
– Incluindo você?
– Eu nunca duvidei do seu talento nas pistas, Gael. Eu sei reconhecer um talento quando vejo – sorrio. – Se você não fosse o melhor, você não estaria aqui.
A postura de Gael relaxa. Ele entrelaça nossos dedos e permanece em silêncio. Não há nada garantido no mundo das corridas: você pode iniciar cedo e nunca conseguir a tão sonhada vaga na Fórmula 1, assim como pode levar mais tempo para amadurecer nas pistas das categorias de base e ter times disputando por você. Cada carreira é uma carreira, e Carpentier ter sido capaz de se reerguer depois de um vício tão complicado só o prova o quanto ele lutou por isso.
O garçom se aproxima e serve nossas entradas. Observo minha salada atentamente, as fatias de tomate intercaladas com queijo no centro do prato e adornadas com manjericão. É, Gael fez um bom trabalho. E o piloto fica com algumas bruschettas – assumo eu – para si.
– A muçarela é vegana – ele comenta assim que o garçom se vai. Eu fico boquiaberta porque não esperava que eles tivessem essa opção aqui. – Eu também achei surpreendente.
– Obrigada pelo cuidado.
Desfrutamos os sabores das entradas em silêncio. Secretamente, eu espio Gael quando ele está distraído demais empurrando os tomates de volta para o pão. Espero que eu não me acostume com a visão dele fazendo coisas simples, o piloto Gael Carpentier está distante da pessoa sentada à minha frente. Eu termino a salada e confiro o meu celular para passar o tempo, ignorando as mensagens dos meus amigos.
– Trabalho? – ele aponta para o meu celular.
– Não exatamente. Estava respondendo algumas mensagens enquanto você terminava. – Reparo o quanto isso pode ter parecido rude e deixo o aparelho de lado. – Desculpe-me, eu não sei onde estou com a cabeça.
– Está tudo bem. Você quer fazer outra pergunta?
– Nunca pensei que diria isso, mas eu cansei de fazer perguntas. – Apoio meu queixo na minha mão e o encaro. – O que você gostaria de saber sobre mim?
– Como você se sente sabendo que é uma das melhores fotógrafas do paddock?
– Segundo qual veículo de mídia? – Gargalhamos da minha resposta. – Não me diga que você acompanha o meu trabalho.
– Culpado. São belas fotos, Perrie. Eu enquadraria todas e colocaria em uma exposição. – Ele leva a taça de água aos lábios na tentativa de esconder o sorriso travesso.
– Por favor, não me diga que você comprou algumas fotos. – Quero tirar essa possibilidade da longa lista de suposições que Luca compartilhou comigo.
Porém o silêncio de Gael entrega a resposta de bandeja.
– Você é o comprador anônimo que adicionava um pagamento extra exorbitante?
– Culpado. – Ele ergue a taça, orgulhoso do que fez. Eu pensei que fosse algum admirador do trabalho dele, mas parece que Luca estava certo.
– O que mais você fez? – A lista de suposições se desdobra em minha mente. – Os convites para o baile?
– Nada que uma doação generosa não consiga.
– O jantar em Marselha oferecido pelo time?
– Cisti quase pediu demissão quando eu disse para ele organizar a reserva. E eu não teria reclamado se ele tivesse desaparecido depois daquilo.
– Por que sempre para duas pessoas?
– De que adianta te proporcionar uma experiência se você vai aproveitar sozinha? E, claro, eu sabia que o seu amigo jornalista também não gostava muito de mim, então foi o meu jeito de ganhar simpatia.
– Por Deus, ele vai surtar quando souber disso. – Balanço a cabeça e me divirto só de imaginar Luca gritando "Eu te avisei!". – Você é muito perspicaz, Enric.
– Não me diga que você não gostou de cada presente.
– Eu não deveria te falar isso, mas a minha carreira como jornalista pode decolar a qualquer momento por causa do nosso contrato, então os presentes eu considero como um bônus merecido por todo o meu trabalho. – Jogo uma mecha do meu cabelo para trás. – Devemos brindar à noite que nos esbarramos? Sem ressentimentos, sem mágoas, sem arrependimentos.
– Você está pronta para deixar aquela noite para trás de vez? – ele me questiona, receio de levantar a taça para selar o gesto. Entre nós, sou eu quem sempre trago a tona a fatídica noite e uso isso como justificativa para tudo. Bom, usava, porque várias horas de voo e de conexões me obrigaram a refletir sobre isso e tomar uma postura mais madura.
– Eu aceitei as consequências de meus atos e aprendi que talvez eu tenha sido dura demais com você. Então sim, eu estou pronta.
Ergo a minha taça meio cheia de gin, e brindamos. Como eu deixei a minha razão trancada no quarto, estou agindo com o coração. O que eu quero agora é desfrutar das minhas noites em Milão com Gael. Se nos encontraremos para jantar amanhã ou apenas conversaremos para mim não faz diferença. Eu não quero mais ficar presa ao passado e aos meus medos.
A conversa é deixada de lado quando servem nossos pratos principais. Eu poderia me mudar para a Itália e viver de massas e de queijos pelo resto da minha vida e ainda agradeceria se isso me deixasse mais perto das corridas, porém eu não sei um pingo de italiano para sobreviver aqui. Melhor que eu fique em Chicago, aproveitando a comida do meu pai e viajando a cada quinze dias.
Termino o meu penne ao molho pesto e recuso educadamente a oferta de sobremesa. Acho que meu cansaço após um longo dia de trabalho começa a transparecer depois de uma taça de gin e uma noite mal dormida. Tento esconder meu bocejo com a mão, mas Gael percebe e balança a cabeça.
– Cansada?
– Aham. Acho que vou subir para o meu quarto. – Empurro a cadeira para trás, pego meu celular e sorrio. Ele também se coloca de pé e dá a volta na mesa para se aproximar de mim. – Muito obrigada pelo convite, Gael.
– Não há de que, Perrie. – Ele segura o meu braço antes que eu me afaste. – Posso acompanhá-la até seu quarto?
– Claro. – Eu olho para o ambiente e os poucos funcionários no estabelecimento e, delicadamente, afasto o meu braço. No fundo da minha mente, eu ainda quero me proteger e evitar qualquer problema com a mídia.
Deixamos o restaurante, atravessamos o salão e entramos no elevador – mantendo uma distância segura entre nossos corpos sempre. Eu aperto o número do meu andar e encaro as portas metálicas. Devo falar algo? Devo continuar com as perguntas? Será que eu fui rude ao afastá-lo de mim para nos proteger diante de um grupo de desconhecidos?
Viro meu rosto, com o pedido de desculpas na ponta da língua, mas parece que Gael leu a minha mente e decidiu me responder sem usar palavras. O toque dele no dorso da minha mão é tão leve que eu levo alguns segundos para reagir. A expressão dele se mantém firme e distante, mas os dedos dele exploram a minha pele até encontrarem a palma da minha mão e se agarrarem a mim, entrelaçando nossos dedos.
Aperto a mão dele. Deixo um suspiro aliviado escapar de meus lábios.
Quando chegamos ao nosso destino, eu não deixo que ele se afaste. Guio-o pelo corredor, destranco a porta com meu cartão e tomo cuidado para não expor o caos que deixei após procurar algo adequado para o jantar. Mesmo assim, percebo a curiosidade de Gael e a resistência em me deixar ir.
– Merci, Gael. – A minha tentativa de falar francês parece diverti-lo.
– Avec plaisir, ma chérie. – Ele desfaz a simples, mas significativa conexão de nossos corpos.
Mal nos despedimos e eu já sinto falta da companhia dele.
Coloco meu corpo para dentro do quarto, mas Gael não se mexe um centímetro. Seus lábios querem falar algo, seus olhos se direcionam ao chão, ele nem parece o piloto irreverente que eu conheço.
– Gael, eu...
Antes que eu possa me desculpar por qualquer mal estar que a minha pergunta sobre a bebida possa ter causado, Gael se aproxima e eu deixo que as mãos dele tomem o meu rosto para um beijo que me tira o fôlego do mesmo modo que as colisões nas corridas.
Mas, dessa vez, não há ninguém em perigo além de mim e meu pobre coração.
A parede contra minhas costas não é tão brutal quanto as mãos de Gael em meu rosto. Não há espaço para respirarmos ou pensarmos no que estamos fazendo. Ele não pediu por esse beijo e nem pediria, nossos corpos cantaram a mesma canção a noite toda.
Permito minhas mãos deslizarem pelas laterais de seus braços e tronco. Sua língua se enrosca a minha, o calor escala meu corpo e dita os movimentos da minha boca. O baque da porta batendo me desperta e eu abro meus olhos.
– Gael – suspiro contra os lábios dele.
– Você não sabe o quanto eu esperei por uma chance. – Ele sussurra, tomado pelo desejo. – Você quer que eu vá embora, Pêrrí?– Balanço a cabeça negativamente. Eu quero este momento tanto quanto ele.
Sua língua enrola e seus lábios desenrolam bem abaixo da minha orelha. Inclino a cabeça, quero que ele beije ali até... Um gemido muito satisfatório escapa tão alto como as batidas do meu coração e eu não posso fazer nada além de agarrar os fios dourados mais próximos de mim.
Enrosco a minha perna contra o corpo dele, mantenho-o próximo. Sua boca escorreu pelas curvas do meu pescoço e está próxima do meu peito. Ele pode ouvir meu coração se fechar os olhos. Eu posso sentir os olhos dele passeando pela pele que é revelada aos poucos.
O impulso me embala e me devolve o que eu desejo. Beijo Gael com afinco, deixo-o saborear o sabor do gin na ponta da minha língua e no céu da minha boca, quero que a minha ânsia por mais infeste a mente dele tanto quanto infestou a minha.
Ele poderia me pedir milhares de vezes para me beijar.
E a minha resposta seria apenas uma.
Cada parte de mim quer tocá-lo. Assim como ele está me colocando contra a parede, eu o quero tão perto. Aproximo meu quadril, tento não perder o equilíbrio enquanto pressiono meus dedos em seu queixo. Perco-me nos detalhes dos traços únicos de seu rosto. O maxilar dele se ergue para que meus lábios toquem-no. Seu gemido vibra contra mim, sinto o esforço de seus músculos para não me pressionar mais forte.
Não ouço nada além de nossas respirações e é engraçado como não estamos prontos para parar. Solto um breve suspiro e ele se afasta quase nada. Os braços dele estão apoiados ao lado da minha cabeça, seu corpo inteiro se inclina para ficar próximo.
Retorno para seus lábios. Mordo-os. Gael está na palma da minha mão, na ponta da minha língua, no limite da minha carne. Deixamos a parede e seguimos, ainda consumidos pelo desejo, até a cama. Ficamos meses fazendo joguinhos um com o outro, e agora que temos a chance, vamos resolver tudo enquanto estamos sozinhos.
Eu não consigo tirar meus olhos dele. Ele não consegue não tocar no meu corpo, disparando meu coração e testando meu limite como se ele fosse o motor de um carro. Não há razão para me controlar, e não há sentimento que não esteja sendo externado.
Quando nossos corpos se desconectam, eu continuo buscando pelo conforto na pele dele. Aconchego-me ao lado dele, passo meu braço sobre seu corpo e fecho os olhos. Desejo baixinho que ele não se vá durante a noite porque não quero que isso acabe.
++++++
Encaro o estacionamento vazio do circuito. Nenhum sinal do SUV que me buscou no hotel esta manhã. Não há nenhum segurança ou funcionário num raio de duzentos metros porque praticamente todo mundo da equipe foi embora há alguns minutos. E eu? Bom, eu fiquei ocupada demais com minhas anotações que nem percebi que eles tinham ido.
Mas mesmo assim, eu deveria ter uma carona para o hotel. Ninguém me falou nada sobre atrasos não serem tolerados. Estou trabalhando, e não de férias! Eu sou a única pessoa recolhendo material, e às vezes as pessoas falam demais.
Tiro meu celular do bolso e abro um dos aplicativos de transporte que uso quando não há outro meio de locomoção. Rezo para que um motorista disponível esteja disposto a dirigir quase duas horas até Milão. Paralelamente à minha espera, eu tento entrar em contato com Eduardo, um dos colaboradores da equipe da Ferrari que está me auxiliando e guiando esta semana. Ele está no coração do time, logo ficou responsável por me apresentar aos mecânicos e me acompanhar nos testes e na garagem. Que ele saiba me ajudar, por favor, universo.
Pneus cantam ao leste, e a minha cabeça é atraída pela curiosidade de vivenciar um momento dramático – tanto para bem quanto para mal. A posição alta do sol no céu dificulta a identificação do veículo de onde eu estou. Aperto meus olhos e levo minha mão sobre as sobrancelhas para conferir se não é a minha carona.
Com muito mais imprudência do que eu espero de um motorista, o veículo prateado com design e linhas esportivas canta pneus novamente. O som não é nem um pouco agradável. Recuo alguns passos, saindo do caminho caso o pior tenha a mínima chance de acontecer, e observo atentamente o carro se aproximar de mim. O vidro da janela abaixa e eu respiro aliviada.
– Precisando de uma carona? – Gael se inclina sobre o banco livre. Ele veste roupas casuais e óculos escuros. Realmente, os macacões que os pilotos usam muitas vezes não fazem jus à beleza e ao estilo deles.
– Não, estou bem. – Desvio meu olhar para o estacionamento vazio. – Meu motorista já deve estar chegando.
– Não tem mais ninguém aqui, Perrie. – Ele sorri como quem sabe que eu estou sem minha carona e provavelmente teve algo a ver com isso. – Só entre no carro logo.
– Tudo bem, não precisa pedir duas vezes – resmungo. Com o meu estado exausto, tudo o que eu queria era duas horas de paz no carro, sem precisar pensar muito sobre Gael ou sobre o trabalho.
Estendo a minha mochila, e Gael a pega e a coloca atrás do banco. Ele tamborila os dedos no volante, impaciente. Sento-me, afivelo o cinto e fecho a porta do carro.
Meu coração dispara assim que Gael força o acelerador. Preciso de todo o controle do mundo para não demonstrar meu nervosismo. Eu deveria me sentir segura porque ele é um piloto profissional, mas nem isso me acalma. O mundo ao redor vira um borrão ao passo que o carro ganha velocidade.
A pressão da aceleração aperta o meu peito, meu corpo acompanha as forças ao meu redor quando Carpentier realiza um cavalo-de-pau com o carro ainda no estacionamento. Grito de desespero, e as minhas costas colam no banco.
– Pare o carro! Enric, pare o carro! – grito.
Ele obedece. Minhas mãos destravam e empurram a porta, eu arranco o cinto e saio desesperada do veículo. Meu coração vai explodir. Eu mal consigo respirar. A risada de Carpentier está distante. Fico de costas para esconder meu nervosismo.
Levo alguns segundos para recuperar uma parte da minha compostura. Normalmente, eu não me sinto mal em um carro, eu só tenho medo e evito ao máximo viajar longas distâncias. Mas eu ainda não consegui retomar o controle depois da manobra.
– Vamos, Perrie, volte para o carro. – Ele ainda está rindo.
– Eu não vou entrar no carro.
– Perrie, não tem mais ninguém aqui e você não vai conseguir um táxi agora.
– Eu já disse que não vou entrar! – Bato o pé e me viro, ciente de que as lágrimas de medo escorrem sem que eu tenha controle. Merda, eu deveria ter previsto isso.
– Foi só uma brincadeira. Vamos, entre no carro.
– Eu não vou entrar no carro enquanto você estiver ao volante!
– Você quer que o carro se dirija sozinho? – ele ri de mim, alheio ao meu terror. Claro, pilotos como ele fazem hot laps com jornalistas por diversão. – Dirija você então.
Ele solta o cinto de segurança, abre a porta e se levanta.
– Não.
– E como você quer sair daqui? Pode dirigir, esse carro nem é meu mesmo. – Ele dá de ombros. – Pode dirigir, Pêrrí.
– Eu não sei dirigir e eu tenho pavor de carros! – admito. A surpresa no olhar dele seria divertida se eu ainda não estivesse apavorada. – Está feliz? Eu não vou entrar no carro se você for dirigir como se você quisesse desafiar todas as leis da física!
As minhas palavras o atingem, e ele compreende que meu desespero é real, e não um fingimento. Dou alguns passos para trás quando ele vem em minha direção pedindo desculpas, empurro-o para longe porque preciso do meu espaço. Preciso respirar fundo e enfrentar meus medos de entrar em um carro que pode ir muito além do que um modelo convencional.
Gael se apoia contra o automóvel e me observa. Como ele pode ficar tão calmo? Pior, como ele consegue confiar sua vida aos carros em alta velocidade e competições insanas? Ele pode estar acostumado com tudo isso, mas eu não. E eu nunca estarei porque a velocidade e os carros são meus maiores inimigos.
Recomponho-me e me aproximo da porta do passageiro. Gael ainda está em pé, aguardando.
– Perrie, eu sinto muito. – Ele segura meus ombros. – Eu pensei que seria divertido e que...
– Não foi divertido. Nunca mais faça isso. – Viro o meu rosto, indiferente com o arrependimento dele. Qualquer coisa poderia ter acontecido, e se ele não tivesse feito isso agora, teria sido algo na estrada. Odeio pensar nisso, porque só me traz mais ansiedade, e Gael é a minha única carona.
– Tudo bem.
Ele sai do meu caminho e assume sua posição ao volante. Eu respiro fundo, me convencendo de que nada de ruim vai acontecer nas próximas duas horas. Entro no carro e antes de colocar meu cinto de segurança, eu pego meus fones de ouvido e a minha garrafa d'água na mochila. Firmo meu olhar no horizonte e deixo a música tranquila inundar meus pensamentos.
Quase não percebo quando Gael se inclina para conferir se eu realmente afivelei o cinto e se ainda estou respirando. Não consigo olhá-lo, mas espio através da minha visão periférica. Ele dá a partida no carro e, dessa vez, não acelera como se o mundo dependesse disso.
A adrenalina e o medo se estabilizam com o passar da estrada – eu só percebo que percorremos metade do caminho quando reconheço os nomes nas placas. Tento buscar um pouco da razão depois do surto: mesmo que tenha sido assustador, estávamos sozinhos no estacionamento. Gael é um piloto profissional, ele jamais nos colocaria em risco. Porém eu não consigo aceitar isso porque, a todo momento, eu relembro o dia em que...
– Perrie, você está me ouvindo? – Gael agita uma mão na minha frente.
– O que foi? – Pauso a música e guardo os fones.
– Eu te perguntei se você está melhor.
– Sim, eu estou. – Olho para a esquerda. – Por favor, não comece a falar sobre como é irônico que uma jornalista e fotógrafa de Fórmula 1 tenha medo de carros, eu já ouvi isso antes.
– Eu não ia falar isso – ele murmura. – Você se envolveu em algum acidente quando era criança?
– Minha mãe morreu em uma colisão. – A cada vez que conto essa história, eu sinto algo novo. Quando eu era menor e o acontecimento era recente, eu me sentia triste. Com a adolescência, a revolta tomava conta do meu discurso. E agora, já adulta, eu sinto que nunca vou conseguir entrar num carro e dirigir porque a narrativa do acidente sempre me inunda.
– Eu sinto muito. Você estava junto?
– Não. Ela estava sozinha, voltando para casa depois de um longo plantão no hospital. – Eu consigo me lembrar de quando ouvimos a notícia pela manhã. Achávamos que ela estava presa em alguma emergência, mas quando nos ligaram do hospital, sabíamos que o pior tinha acontecido. – Era um cruzamento como qualquer outro, o semáforo estava aberto para ela, mas o outro motorista estava sob a influência do álcool e de drogas, ele não parou e colidiu diretamente com ela. Quando a ambulância chegou, os socorristas conseguiram tirá-la do carro, mas o dano interno foi grave. Ela ficou em coma por alguns dias até decretarem a morte cerebral.
O silêncio de Gael não me incomoda. O que você diria para alguém que perdeu a mãe em um acidente causado por alguém imprudente?
Ela tinha trocado de turno com uma outra enfermeira para passar o dia inteiro conosco porque era meu aniversário. Ela já tinha voltado para casa de madrugada centenas de outras vezes, sempre tomando o cuidado necessário no trânsito e em qualquer situação que oferecesse risco. O acidente deixou sequelas internas irreversíveis. Não havia nada que pudéssemos fazer para trazê-la de volta, então nós a deixamos ir.
Eu perdi a minha mãe no dia do meu aniversário de onze anos. Mesmo que a morte tenha sido decretada dias depois, ela não estava mais com a gente quando a visitamos no hospital, horas depois. Os tubos e aparelhos ligados ao corpo dela cobriam o que restou da mulher que sacrificaria tudo para cuidar de sua família. Os médicos nos deixaram vê-la na esperança de que, com o passar dos dias e com o aumento dos estímulos, ela reagisse. Mas não, nada funcionou. Ela estava morta.
Depois disso, eu associei os carros ao perigo, à minha mãe morta, e passei meses sem conseguir entrar em um veículo sem chorar. Todos os meus amigos aprenderam a dirigir assim que fizeram dezesseis anos, eu apenas observei suas conquistas de longe. Eu adoro as corridas, mas mesmo com todos os avanços de segurança eu tenho medo. Medo de que alguém perca o controle e o pior aconteça.
– Você não precisa falar mais nada se não quiser. – Ele desvia o olhar da pista rapidamente para me encarar. – Droga, Perrie, eu sinto muito.
– Eu não consigo dirigir porque eu sempre imagino que o que aconteceu com ela acontecerá comigo – admito. – Eu não me sinto mais triste quando menciono o acidente, eu só fiquei traumatizada. Eu tento não pensar muito nisso quando estou no banco do passageiro, mas eu sei que nem aqui estou segura.
– Aconteceu algo com você depois que ela... – a palavra desaparece dos lábios dele.
– A minha ex namorada foi me buscar no trabalho uma vez. Eu estava fotografando um jogo de futebol americano, ela disse que iria me buscar ao final do jogo. – Conto sobre esse dia de forma objetiva, mas com a sensação de que isso aconteceu ontem. – O que Savanna não me contou era que estava bebendo com alguns amigos em um bar. Eu estava cansada demais para perceber os sinais, e quase que eu passei pelo menos que a minha mãe. Por sorte, foi uma colisão leve, o que não deixa de ser assustador. – É involuntário quando as minhas mãos apertam a minha pele. O carro rodou do mesmo jeito que na manobra de Gael, e eu fui transportada para aquele dia na hora.
– E ela sabia?
– Sobre a minha mãe? Aham. – Não é como se eu contasse para todos que me conhecem, mas eu estava num relacionamento e eu não aguentava mais ouvi-la falar que eu precisava aprender a dirigir. – E mesmo assim ela não se importou quando discutimos sobre a irresponsabilidade dela depois que eu quase fui parar no hospital com uma crise de pânico generalizada. A gente terminou logo depois disso, foi bem conturbado. – Dou de ombros, porque o relacionamento em si não significa mais nada para mim.
– Eu fui um idiota com aquela manobra – ele admite. – Eu nunca teria feito aquilo se soubesse isso.
– Eu acredito em você. – Aperto meus lábios e volto a olhar para a estrada a nossa frente. Não quero que a atmosfera no carro continue pesada, então tento mudar de assunto. – Eu preciso de um longo banho, foi um dia cansativo.
– Nenhuma chance de convidá-la para jantar comigo hoje?
– Desculpe-me, eu preciso muito resolver algumas pendências da redação e de algumas horas de sono. – O jantar da noite passada e tudo o que aconteceu depois dele está fresco na minha mente. Quero que o momento se repita, mas não hoje.
– Está tudo bem. Estamos quase chegando em Milão – ele liga o rádio do carro e sorri. – Quando você vai embora?
– Meu voo é sábado na hora do almoço. Por quê?
– Por que você não fica aqui? Quer dizer, você precisa mesmo voltar para os Estados Unidos?
– Sim, na próxima semana eu tenho algumas reuniões e preciso me preparar para a próxima corrida. – Pressiono as minhas têmporas ao me lembrar da minha agenda cheia. – O que você tem em mente?
– É besteira.
– Aposto que não é. Vamos, Gael, no que você pensou?
– Você poderia passar algum tempo em Paris comigo – ele propõe como se não fosse nada de mais. – Eu posso te mostrar a cidade, te levar nos melhores lugares, podemos esquecer a nossa realidade por alguns dias e apenas curtir o momento.
– Que tal depois da Bélgica? Eu dou algum jeito de fazer o trabalho remotamente, ninguém nem sentiria a minha falta no escritório. – Penso na minha agenda e ela parece tranquila, pelo menos na teoria. – Posso te confirmar na próxima semana?
– Claro, me mande uma mensagem assim que souber.
A minha agenda só fica complicada com a aproximação do final da temporada. Eu irei com a equipe da emissora parceira britânica da USN para Singapura, a emissora de Luca mandará uma equipe para acompanhá-lo na Rússia – e cada um receberá, assim, uma semana de folga da loucura do paddock antes de embarcarmos para as corridas finais – uma em Mônaco, e o restante do outro lado do oceano, com o Brasil, o México e, claro, os Estados Unidos.
Logo entramos na parte urbana de Milão e chegamos ao hotel. Eu desço do carro assim que Gael estaciona na entrada, um manobrista já se aproximando para levar o carro.
– Obrigada pela carona, Carpentier. Até amanhã! – despeço-me com um aceno, incapaz de me aproximar dele com medo dos olhares curiosos na rua.
– Bonsoir, ma chérie.
O cansaço começa a cobrar seu preço com meus passos lentos e pensamentos confusos. Enumero o que farei antes de abrir a porta do quarto e tento agir de acordo com o ritmo do meu corpo. Tomo um longo e relaxante banho, visto meu pijama mais confortável e me sento à escrivaninha para começar a trabalhar.
Ouço duas batidas na porta e interrompo a edição do texto para atender quem quer que seja.
– Boa noite, senhorita Michelle. – O concierge me cumprimenta e aponta para o carrinho de serviço ao seu lado. – Seu pedido de jantar está aqui. Você deseja que eu entre e prepare a mesa?
– Eu não... – bufo antes de terminar a frase. Enric, claro. – Não, não precisa. Só – abro mais a porta para que ele entre – deixe o carrinho aqui.
Ele o faz e se vai após me desejar uma boa noite e um bom jantar. O aroma do que quer que esteja ocultado pela cloche tomou conta do meu quarto em poucos segundos. Há uma jarra de suco de um lado, e um bilhete do outro. Minha curiosidade aguçada coloca o bilhete como prioridade, e um sorriso toma conta do meu rosto quando reconheço a caligrafia.
Perrie,
Não acho justo que você não aproveite ao máximo o seu tempo em Milão, mesmo que esteja aqui a trabalho. Espero que este jantar seja do seu agrado. Nos vemos amanhã na pista.
G.C.
Se em algum momento eu pensei que não fosse capaz de sentir algo por ele, eu estava completamente enganada.
———
Olá, amantes das corridas!
Falei que os mimos iam chegar (demoraram um pouco, mas chegaram)! Eu gosto de pensar que esta parte da história poderia servir uns 8 capítulos de muito mimos dos acontecimentos em Milão, mas eu selecionei os melhores momentos para vocês!
Claro, como nem tudo são flores, tivemos algumas revelações importantes aqui... Vocês precisaram de lencinhos? Porque eu usei uma caixa toda (a culpada é a minha rinite).
E, claro, eu não poderia deixar de dedicar um capítulo lindo desses a Arda, a amiga que está comigo desde o início da escrita de Dangerous Races. Feliz aniversário, Arda! Espero que você goste desse mimo ❤️
Sem mais delongas, até o próximo capítulo! Milão ainda guarda muitas surpresas pra Garrie (Gael+Perrie)!
Amor,
Isa
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