CAPÍTULO UM
Todas as minhas juntas estalam quando eu desço do táxi e puxo minha bagagem para terra firme. Agradeço ao taxista com um sorriso simpático e uma gorjeta padrão – minha emissora não me permitiu tantos luxos quanto os homens que realizam o mesmo trabalho que eu.
Pela primeira vez em vinte e seis anos de história, a United Sports Network – também conhecida como USN – escalou uma mulher para acompanhar a temporada de Fórmula 1 ao redor do globo. O que ninguém sabe é que os bastidores são lotados de fuligem, odor de gasolina no cabelo por semanas e assentos na classe econômica porque o glamour fica apenas para os comentaristas e pilotos.
Limpo os fios rebeldes da minha franja que caem sobre meu óculos escuros e respiro fundo. Pelo menos as despesas com estadia estão sendo pagas pelo evento. Tenho direito a uma cama digna e um local com internet rápida o suficiente para enviar todas as atualizações que eu tiver sobre os pilotos, as equipes e os treinos. Infelizmente, a corrida ainda é de responsabilidade dos cabeças brancas sentados do outro lado do mundo em suas cadeiras caríssimas.
Uma corrida de cada vez, Perrie. Meu padrasto repetiu isso depois de eu desabar no sofá de sua casa chorando que tinha conseguido algo, mas não o que eu passei a faculdade toda almejando. Maldito universo dos esportes. Maldito esporte dominado por homens. Maldito mundo idiota.
Faço o check in, confiro a agenda do dia em meu celular e me dou o luxo de deitar por alguns minutos antes de começar a me preparar para a festa de abertura da temporada. O quarto não é o melhor de todos, mas vai servir para essa primeira semana. Há uma mesa grande o suficiente para meu equipamento de produção e edição, uma vista de Melbourne de tirar o fôlego ao lado da cama e uma banheira decente para usufruir depois de coletivas estressantes.
Meu celular toca assim que meus olhos se fecham e meu corpo abraça o colchão.
– O que você quer, Luca? – murmuro sem me dar o trabalho de ser cordial.
– Oi para você também, princesa. – Ele ri do outro lado da linha. – Que horas você quer que eu passe em seu quarto para irmos juntos à festa?
– Que tal quando o relógio marcar vai se ferrar? Estou cansada, as conexões me mataram.
– Cinco para as oito está bom para mim também. – Ele ignora minhas reclamações como sempre faz. – O que aconteceu com a Perrie Michelle que era imbatível ao se tratar de longas viagens?
– Ela não pode vir porque está morta – minha lufada de ar estala o microfone do celular. – Tem mais alguma besteira que você não pode esperar para me perguntar mais tarde?
– Não, eu só queria me certificar de que a minha colega não desistiu de última hora.
– Eu não desistiria disso nem se me colocassem sete palmos abaixo do chão que te suporta, Luca. Até mais tarde, idiota.
Luca diz algo, mas eu imediatamente desligo. Conhecemo-nos na faculdade de jornalismo em Chicago, trilhamos caminhos parecidos em emissoras diferentes – ele trabalha na CX, uma parceira da USN – e fomos escalados para uma parceria durante a temporada. Ele cuida do texto sobre as corridas de classificação e da atualização em tempo real da corrida oficial, eu cuido das imagens e das perguntas para as entrevistas de coletivas antes e depois que os vencedores são parabenizados.
Tirando o fato de que Luca pode ser bem irritante por natureza, ele nunca me diminuiu por ser uma mulher num espaço majoritamente masculino. Somos colabores quase que caricatos com as equipes organizadoras de eventos. Passamos da Stock Car para a Fórmula 1 em tempo recorde – dois anos e meio. Se os carros não fossem a maior parte de nossas paixões, com certeza teríamos sido ótimos jornalistas de basquete. Ou de futebol americano. Somos uma dupla poderosa em qualquer ramo. Ele com os comentários e previsões precisas, eu com as fotos e perguntas exemplares. Deixamos os veteranos no chinelo.
Minha mente divaga e o que eu espero que seja um cochilo de uma hora acaba durando metade disso. A equipe de redação e atualização da sede me liga informando que um novo piloto estava criando uma multidão ao seu redor no aeroporto, porém não há nada que eu possa fazer. Estou a uma longa distância do aeroporto e eu perderia qualquer manchete.
Um novo piloto, assim, uma semana antes da primeira corrida parece arriscado. O fato de todo mundo saber disso em cima da hora cheira mais a jogada de marketing do que estratégia. E seja lá ele quem for não deve ser tão bom, se ficou nas sombras esse tempo todo é porque foi uma escolha desesperada.
Desisto de tentar recuperar o sono que eu não tive nos aviões e espreguiço-me. Mudo de roupa, desço para a academia do hotel e faço uma hora na esteira, atualizando-me através das mensagens de áudios dos meus colegas de trabalho. Reina conseguiu sua primeira entrevista exclusiva com o novo casal prodígio da patinação artística. Hugo está sendo negociado entre a USN e uma emissora britânica gigante. Bee largou o emprego para fundar seu próprio canal multiplataforma e quer nós como seus contribuintes – caso nossos contratos não nos impeçam, claro.
Os esportes foram criados para unir as pessoas, mas tudo o que eu vejo é a mídia brigando por migalhas e criando intrigas desnecessárias. Minha mãe dissera que eu me arrependeria do jornalismo antes dos quarenta. Bom, ainda há muito caminho antes de eu pensar em cuspir no prato em que comi.
Deixo o hotel, ando algumas ruas e compro algumas barrinhas de cereal e frutas para guardar no frigobar. A máquina de café do hotel é de uso livre para hóspedes, mas as refeições não estão inclusas. Ou seja, em vez de gastar uma fortuna com pouca comida, eu vou sair e almoçar em lugares diferentes – ou apenas pedir uma pizza.
Porém não nesta noite. O buffet e os drinks da festa de abertura da temporada me aguardam ansiosos. Uma noite inteira sem ter que pensar em entregar o texto final de uma reportagem na sala do editor chefe. As revistas de fofoca se esgueiram nas frestas para saber quem ficou com quem, deixo-as com suas manchetes sensacionalistas. A mesa de canapés é minha.
Dizem que essas festas são tão boas quanto as organizadas pelos grandes patrocinadores da NFL. Confirmarei o rumor hoje, com certeza.
Às seis horas, começo a me arrumar. Harriette, minha meia irmã mais nova, foi a responsável pela confecção do meu vestido para hoje. Alegando que eu não possuía nada interessante para um evento de alto nível e aproveitando o início de seu trabalho como estilista de sua própria marca de roupas vegana, ela desenhou um vestido de cetim sintético simples azul royal. E a forma de pagamento é citá-la caso alguém pergunte quem desenhou uma peça tão fina e charmosa – palavras dela, não minhas.
Harriette também me convenceu a aderir ao estilo de vida vegano. Como estou viajando e não posso contar com tempo e disposição para procurar os produtos que ela me mostrou, estou diminuindo o consumo da carne gradativamente. Um pequeno passo capaz de fazê-la parar de comentar que eu estou matando animais toda vez que como um hambúrguer.
Um banho longo e frio termina de eliminar o cansaço do voo cheio de conexões de Atlanta até Melbourne. Espalho a minha maquiagem pela bancada do banheiro, ligo a minha playlist de aquecimento para a festa e danço mais do que me arrumo. Só me dou conta de que está quase na hora de sair quando Luca liga para o meu celular e interrompe a música.
Abro a porta e dou-lhe as costas para terminar de passar o meu batom.
– Ainda bem que meu namorado insistiu que eu trouxesse um blazer caso você decidisse roubar toda a atenção da festa.
Os olhos de Luca passeiam pelas curvas não tão proporcionais assim do meu corpo e voltam para o meu rosto. Se qualquer outra pessoas fizesse isso, eu me incomodaria muito. Mas como somos amigos há anos, Luca sabe das minhas inseguranças quanto à minha aparência. Em pleno século XXI, a maior parte da sociedade espera que as pessoas passem fome para obterem medidas irreais.
– Ele me conhece melhor do que eu mesma, temos que admitir – resmungo e estalo os lábios. – Só preciso pegar os meus sapatos e nós podemos ir.
– Você trouxe essa belezinha aqui para nossas primeiras semanas? – Luca manipula a câmera profissional que eu adquiri no último inverno para essa nova temporada. – Você deveria esquecer os jornais e trabalhar só com fotografia. Eu pagaria uma grana para ter as suas fotos.
– Somente elas não pagam as minhas contas – dou a volta na cama e pego o par de saltos sob a mesa. – Temos que pedir um táxi?
– Isso. E como eu prometi para o Eric que eu não me divertiria tanto assim sem ele, eu não estarei bebendo esta noite.
– Hum, que desperdício de álcool. – Afivelo as tiras de couro sintético e sorrio. – Pareço pronta para pisar no pé de alguns pilotos?
– E, com certeza, pisar nos corações deles. Agora vamos, eu quero arrumar um bom lugar para passar a festa inteira sentado rindo dos bêbados.
++++++
É, o rumor sobre essas festas serem extremamente chiques foi confirmado com muito suor, canapés e drinks não alcoólicos para mim e Luca. Foi um acordo mútuo de nos mantermos sóbrios para dançarmos e rirmos juntos. Os pilotos, suas acompanhantes, seus chefes e assessores vem e vão pelo salão ao ar livre e nós estamos observando todos os seus passos para sabermos quem será mais fácil de conseguir uma exclusiva caso acidentes aconteçam.
E, vão por mim, eles acontecem o tempo todo.
Não há nenhum tipo de decoração extravagante espalhada. Música eletrônica, luzes brilhantes, comida boa e drinks bem feitos. É uma boa maneira de começar a semana mais agitada do mês. Luxos? Apenas a oportunidade de trabalhar de pijama enquanto edito as fotos que irão para o site.
– Ei, eu preciso mesmo de uma bebida – grito no ouvido de Luca para que ele entenda aonde vou. – Quer algo?
– Uma água, por favor.
– Sem graça!
Três horas de festa e eu ainda estou de salto alto porque não estou dançando ou bebendo além do limite. Mesmo nosso hotel sendo a dez minutos daqui, quero manter a dignidade. Meus tempos de voltar dormindo em um táxi após uma festa não existem mais. Mas eu posso me permitir um pouco de gin tônica para suportar o sufocamento causado pelos egos inflados ao meu redor.
Aceno para o bartender mais próximo e faço meu pedido. Ele diz algo sobre estar sem fatias de limão e sai para buscar mais na cozinha. Minha bochecha escorrega sobre os nós dos meus dedos e eu reviro os olhos por não encontrar nenhuma banqueta disponível para descansar meu corpo.
A música está mais abafada aqui, porém não deixo de mover meu corpo como se eu não tivesse que trabalhar assim que o sol nascer. É fácil acreditar, na teoria, que o trabalho de um jornalista é regrado. A coisa mais próxima que eu tive de uma rotina foi quando eu estagiei. Depois disso, ladeira abaixo com as revisões e edições de madrugada ou antes da matéria ir ao ar.
Alguns outros jornalistas que eu conheço estão nessa festa, uma moça da Inglaterra me parabeniza pela minha promoção enquanto o bartender não volta. Ela disse que eu sou uma inspiração para as jovens garotas que querem fazer o que gostam sem se prender aos rótulos. Ela está há trinta anos dentro do ramo e nunca viu uma carreira florescer em tão pouco tempo.
A moça se vai e nada da minha bebida.
– Então, você é a acompanhante de qual piloto? Porque uma mulher bonita como você só pode ter conquistado alguém – a voz masculina está tão próxima que eu posso sentir sua respiração na minha nuca.
– Que bom que você acha isso – apoio-me de costas para o bar com um sorriso travesso nos lábios vermelhos. – Mesmo se eu estivesse com alguém, não seria da sua conta.
O bartender chama por mim e entrega a minha bebida e uma garrafa d'água com um sorriso exagerado demais para ser apenas um flerte. Viro de volta para o homem de smoking preto e percebo que ele não parou de encarar o vale logo abaixo do meu colo.
– Eles deixam garotas de luxo entrarem nessas festas? Melhor para...
– Volte para a corrida de kart antes de falar uma besteira dessas! – meu braço toma impulso e derrama todo o gin na camisa branca do idiota à minha frente. – Agora, se você me der licença.
Ele pisa para o lado ainda um pouco confuso do que acabou de acontecer. Se sua confiança e masculinidade foram abaladas, melhor para mim. Ele não parece com um piloto com aquele sorriso idiota, cabelo loiro ondulado e longo e um smoking barato. Garota de luxo... em que século esse cara acha que estamos? Fórmula 1 passou a usar carroças e eu não fui avisada?
Faço meu caminho até o outro bar que montaram no evento e peço o gin. Dessa vez, consigo chegar com ele intacto no sofá em que deixei Luca. Entrego-lhe sua água e não comento nada quando ele diz que estou com cara de quem chupou uma dúzia de limões azedos antes de uma coletiva de empresa. Seus olhos vigiam todas as minhas reações quando figurinhas carimbadas nos nossos currículos nos cumprimentam e perguntam sobre nossas expectativas para a temporada.
O loiro retrógrado não passa nem perto de mim. Eu poderia sentir o cheiro de seu perfume amadeirado misturado com gin tônica de longe. E, graças a Deus, eu não tenho que encarar aqueles olhos marcantes.
Luca e eu dançamos um pouco antes da meia noite e vamos embora quando a animação se transforma em bebedeira. Pedimos um táxi, subimos para nosso quartos e eu tomo um banho para tirar o suor da minha pele. Mando uma foto minha produzida para Harriette imprimir e colar no mural que há ao lado de sua escrivaninha na loja.
Respiro fundo e penso na longa semana que terei fingindo ser um fantasma perto de pessoas tão exibidas.
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