CAPÍTULO QUINZE
Felizmente, Luca aparece minutos depois que eu me sento à mesa. Ele não está alterado, mas não para de falar o quanto queria continuar conversando com os produtores do documentário a quem ele me apresentou. De forma bem explícita, eu entrelacei nossos dedos porque eu precisava me acalmar e precisava dele por perto.
– Não me odeie, mas Carpentier está olhando fixamente para você desde que eu cheguei aqui – ele sussurra, mas todos na nossa mesa pensam que ele está ajeitando algo na minha roupa.
– Eu sei, eu percebi. – Pinço uma uva perdida no prato dos aperitivos. – Te conto mais sobre isso quando sairmos daqui.
– O que aconteceu? Ele fez algo? – desta vez, Luca está pronto para me defender. A culpa de não ter presenciado e me ajudado no embate da festa no começo da temporada o corroeu por semanas. E talvez Eric tenha colocado um pouco de juízo na cabeça dele.
– Não, Luca. Está tudo bem. Ele não fez nada. Eu só não quero falar sobre isto numa mesa cheia de estranhos.
Meu amigo está prestes a me responder quando eles diminuem as luzes no salão e Ziwak sobe ao palco para começar a falar. Espio o meu guia novamente e respiro aliviada: será uma longa noite de agradecimentos, apresentação dos novos projetos e um pequeno leilão para angariar fundos. Entre os momentos, eles servirão o jantar.
Um dos garçons continua me servindo gin tônicas quando os meus acabam, as palavras de Ziwak são ecoadas pelo local e cada nova pessoa no palco me deixa um pouco mais emocionada – efeito do álcool, força de suas palavras, nunca saberemos.
Entre a entrada e o prato principal, eu cogito a ideia de me inscrever para ser voluntária da fundação durante as minhas férias. Passar o dia cercada de crianças e adolescentes que recebem pouca atenção das pessoas acima delas me fez refletir no quanto eu ainda posso fazer pela sociedade. Em como o meu trabalho pode, de alguma forma, mudar tudo. Deixar as pistas e escrever sobre as estradas, os oceanos e as guerras que ofuscam os olhares de cada um deles: algo que acrescentaria ao meu olhar sobre o mundo que às vezes deixo de ver.
Na sobremesa, todos ao meu redor estão satisfeitos com tudo o que foi dito. Ziwak sobe ao palco uma última vez para anunciar que, a partir daquele momento, estamos liberados para dançar e conversar até o sol nascer – ou até além disso, já que nem ele pretende ir embora dali tão cedo.
Com todas as formalidades concluídas e o jantar finalizado, Luca se despede de mim pronto para continuar a sua jornada entre todos os rostos do salão. Ele não perdeu um segundo com os outros convidados na nossa mesa e, entre um prato e outro, eu fiquei encantada com o fato de eles serem colaboradores e contribuintes da Fundação Andrea Ziwak e terem criado uma iniciativa de apoio psicológico para adolescentes LGBTQ+ – tendo em vista que, muitas vezes, os pais são rigorosos pois aprenderam isso com seus pais e com a religião.
Despeço-me deles temporariamente para ir ao banheiro no andar inferior. Evito passar perto dos bares e de Carter Lawrence enquanto caminho até as escadas.
Carter passou pelo meu campo de visão depois que eu o abandonei com Carpentier e sorriu. Não posso dizer se era um sorriso vitorioso, um sorriso de quem se desculpa ou apenas um sorriso para disfarçar o que estava sentindo. Ele estava tão perto de mim no bar, mas meu coração não disparou como eu esperava. Atenta a todos os detalhes, eu estava lá, mas também não estava.
Desço as escadas com cuidado – intercalei a bebida com os pratos veganos que me foram servidos para me manter bem, mas confortável com a minha presença no salão cheio – e não vou em direção aos banheiros. Olho ao redor do corredor da entrada cheio de imagens da fundação e flagro o pátio que vi lá de cima. Dois homens conversam, seus cigarros queimam e deixam as cinzas para a noite atipicamente fresca da primavera londrina. As portas de vidro adornadas com o metal retorcido me convidam a fugir das paredes históricas e respirar a noite tranquila.
O espaço demonstra a presença do tempo e do clima, mas também guarda algumas flores e sinais de verde aqui e ali. Estou na penumbra, não há luz o suficiente aqui para ver tudo com clareza. As janelas ao redor e acima de mim transmitem o vulto dos que vêm e dos que vão pelo salão. E a noite me faz companhia enquanto conto as poucas estrelas.
Ao me concentrar, imagino que meu pai esteja aqui, bem ao meu lado, conversando comigo como fez durante toda a semana. Suas palavras estão gravadas na minha mente: meu lado racional tomou conta de mim nos últimos meses com a quantidade de trabalho que tive que realizar, e não que haja algo errado nisso, porém essa não sou eu. A Perrie que ele criou se expressa, não deixa seus medos tomarem conta de suas ações. A leveza que eu tinha se esvaziou depois de alguns corações partidos e dezenas de textos para revisar.
Todos os dias, eu me convenço o suficiente de que estou fazendo o que amo. Isto é verdade: eu amo estar atrás das câmeras, porém não é como se eu estivesse feliz onde estou. E a culpa não é necessariamente do trabalho. Tarde da noite, quando eu não quero mais ver uma foto não editada na minha frente, eu gostaria de ter alguém com quem me relacionar em outros níveis. Não ter um local fixo agora deixa tudo mais complicado e mais esquisito – nem em minhas folgas eu conseguiria esbarrar com alguém que acompanharia a minha vida em níveis mais íntimos.
O mesmo problema que afetou os relacionamentos de Luca nos últimos anos descansa em meus ombros, mas eu tenho tanto medo de ser abandonada que nem me envolvo mais. O meu último relacionamento me deixou em pedaços que até hoje eu não recolhi. Até hoje, eu não consegui encará-la nos olhos após tudo o que passamos. Até hoje, eu penso em quantas cicatrizes eu ainda não curei e quando estarei pronta.
A resposta para o quando estarei pronta é nunca. E sempre foi. Porque eu estou tão aterrorizada de imaginar um relacionamento agora que eu viverei apenas para observar todos os que amo se apaixonarem e partirem para suas próprias vidas.
Amor próprio sempre será tudo, mas, em algumas noites, eu não posso ser a voz que desabafa e aconselha ao mesmo tempo. Eu não posso ser a calmaria para as minhas próprias tempestades enquanto me afogo. Se eu quero me apaixonar novamente, eu vou aprender a me amar e, só depois, transparecer todas as minhas inseguranças para quem quer que tenha a atenção em mim.
Expiro em frustação porque sempre me pego presa a velha ideia de que preciso de alguém que me complete – quando eu já presenciei inúmeros relacionamentos que foram na contramão desta ideia meio que universal do amor. Eu não me permito ver o amor como dizem que é, eu aguardo pelo momento em que ele se mostrará para mim.
Porém e se eu estiver presenciando os sinais e escolhendo conscientemente não olhar?
– Noite difícil, Pêrrí?
A metros de onde estou sentada, Carpentier sorri como se atingisse o mais alto nível de satisfação ao interromper minhas divagações. Faz horas desde que nos encontramos no bar e ele não usa mais o paletó vermelho, revelando a peça que não leva nenhum botão e tem o tecido acetinado, mas levemente transparente – algo semelhante ao que Heart usou para seu vestido do baile de formatura da escola. Nas sombras, eu falaria que a cor é preta, mas os vermelhos mais profundos poderiam ser uma boa escolha para harmonizar com as peças principais. O modelo por si só é atípico com as mangas longas e a faixa certificando-se de que a camisa exponha sua pele ao longo da gola V profunda – eu acho que, com o passar do tempo, o tecido escapou da faixa e acabou expondo mais do que o previsto, mas não é como se Enric estivesse preocupado com isso.
– Eu ainda não bebi o suficiente – dou de ombros e inclino minha cabeça em direção ao céu. Deixe-me sozinha, Enric. – O que você está fazendo aqui?
– Não sabia que você reivindicou o pátio para si – ele olha ao redor. Estamos sozinhos, claro. Nenhuma testemunha para Carpentier e seus planos de me irritar.
Seus passos controlados em minha direção param e o tilintar do vidro desperta a minha curiosidade. Ele depositou ao lado da minha mão direita uma taça de gin tônica. O que esse cara quer?
– Acho que bebi o meu limite hoje. Fique com o drink para você.
– Eu não curto gin, se é que você me entende – ele ri sozinho. – Não há nada além de gin tônica, Perrie.
– Tome um gole antes – desafio-o.
– Como eu te disse, gin não é o meu destilado favorito.
– E qual seria? Na noite que nos conhecemos, você cheirava a puro uísque e nicotina.
– Eu não fumo, o odor do cigarro dos meus colegas grudou em mim. E, naquela noite, eu não estava no meu melhor momento.
– Não se explique para mim, Enric, nada mudará entre nós a essa altura do campeonato. – Institivamente, meus dedos envolvem a taça e eu sorvo mais gin tônica do que meu organismo viu em uma noite.
– Eu sei. O passado é passado, mas eu ainda me sinto frustrado com o que falei com você. Eu estava mal naquele dia e eu exagerei ao deixar de pensar antes de agir ou verbalizar. Eu fiz muitas coisas ruins naquela noite – sem ser convidado, ele se senta ao meu lado e inclina seu corpo para trás, encarando a noite.
– Guarde isto para a sua terapeuta.
Ele está próximo. É estranho estarmos assim, tão perto um do outro, com o silêncio preenchendo os espaços entre nossos pensamentos. Seus ombros estão relaxados e seu corpo inteiro se mostra o oposto do que presencio de todos os pilotos de Fórmula 1: ele não carrega consigo a preocupação do que está por vir e o arrependimento – e as memórias – do que passou. Mesmo que Carpentier tenha um histórico incrível para um piloto jovem, ele se esconde atrás do volante assim como eu me escondo atrás da câmera.
– Você trouxe um acompanhante? – ele vira o rosto em minha direção e me flagra observando-o, mas eu não desvio. Eu me recuso a demonstrar algo para ele.
– Sim, o Luca. Você não o viu por aí?
– Acho que não. Estive muito ocupado convencendo algumas pessoas a doarem para a fundação. – Ele corrige a sua postura para que seu olhar esteja sobre mim completamente. – Ziwak me trouxe aqui porque diz que sou bom o suficiente com minhas palavras.
– Não posso concordar com isso, porém espero que seu desempenho esteja acima da média pelo bem da fundação. – Aperto meus lábios um contra o outro e giro o meu corpo para me sentar com as pernas encolhidas, criando um contato visual completo com Carpentier. Acho que nós dois nunca tivemos uma conversa em que eu não estivesse vestindo a minha armadura de jornalista. Pelo menos não um conversa que foi decente.
– E onde está Luca agora? Ele te abandonou?
Meu peito pesa com o última palavra que sai dos lábios dele, porém eu não demonstro isso de forma clara.
– Com certeza ele está andando por aí como se fosse a pessoas mais importante do lugar. E não se deixe enganar, ele jamais me abandonaria ou me deixaria sozinha em uma situação desconfortável.
– Não guarde tanto rancor assim, Pêrrí.
Meu nome enrolado em sua língua me alerta de que estou próxima do limite da minha tolerância para com Carpentier. Respiro fundo algumas vezes e me recomponho. As sábias palavras de meu pai me aconselham a desacelerar antes que eu cause um acidente feio que nenhum contrato no mundo corrigiria.
– É muito tarde para um recomeço, Enric.
– Encerraremos este assunto por hoje, então.
Ele está sendo razoável e, surpreendentemente, compreensivo com o assunto: eu odeio o fato de estar presa a ele pelo resto da temporada, porém eu produzi os meus melhores trabalhos da minha carreira – sejam eles escritos, fotográficos ou audiovisuais – nos últimos meses. Eu me torno uma profissional melhor a cada semana.
– Você conhecia a fundação antes do convite?
– Hum, não. Quando eu fazia a cobertura sobre a Fórmula 1 e os pilotos do meu escritório, eu não tinha tanto tempo assim para ler além de suas vidas nas pistas – admito. Até eu conseguir esta chance única de acompanhar as corridas presencialmente, eu não ficava apenas com uma pauta para pesquisar sobre. Eu aprendi a gostar de outros esportes no trabalho, porém os carros velozes ainda têm mais destaque no meu currículo e mais tempo e dedicação da minha parte.
– Ziwak não falava muito de seu trabalho filantrópico nas pistas e ele ainda está aprendendo a fazê-lo nas redes sociais. – Ele deixa de me espiar pelo canto dos olhos e gira o corpo, sentando-se de frente para mim. Seus olhos verdes não estão mais perdidos no meu corpo, apenas em meus olhos.
– Falou o piloto que, se não tivesse um assessor, não postaria uma foto sequer nas redes sociais – implico com bom humor.
– Eu poderia muito bem viver sem elas, obrigado por perguntar. – Ele se aproxima um pouco mais de mim.
Espero pelo seu perfume amadeirado da noite em que nos conhecemos e começamos todo este caos e não o encontro. Talvez era o uísque ou uma mistura dos dois, porém a ausência me deixa alerta e curiosa. Tomo alguns segundos do nosso silêncio para detectar o que está no ar. O perfume cítrico e balanceado com frescor leve se dirige para longe das minhas expectativas para o momento. Eu nunca esperaria isso de Carpentier.
– Pelo menos um de nós não tem problemas com redes sociais – ele dá de ombros e eu o encaro, assustada. – O que foi, Perrie?
– Você está me stalkeando? – ele admite que não usa as redes e no segundo seguinte dá a entender que ele viu o que eu posto, mesmo que não esteja me seguindo ou nada do tipo. – Enric, fale a verdade.
– Eu acessei o seu site uma vez para ver o seu trabalho e você colocou os links das suas redes sociais lá. Eu olhei uma vez, lá no começo da temporada, e foi isso. – Ele percebe a minha expressão assustada e ri. – Credo, Perrie, você diz como se fosse um crime. Vale lembrar que a internet é um local público.
– Mas a ideia de você me stalkear é, no mínimo, sinistra. Você gostaria que as pessoas assistissem ao que você faz das sombras?
– Por mais que eu odeie admitir isso, Perrie, eu sou famoso, então as pessoas estão sempre à espreita, esperando para me conhecer ou me perseguir.
– Você está nos holofotes, eu apenas escrevo sobre você. – Balanço a mão em sinal para também deixarmos este assunto de lado. Fama e trabalho são duas coisas que não quero pensar sobre essa noite. Estou proibida de pensar além do momento.
– E fotografa muito bem. – Seu elogio reflete nas minhas sobrancelhas erguidas e coração acelerado. – Acho que todos os pilotos compram fotos em seu site, não compram?
– Eu acho que sim, não checo nome por nome para saber quem comprou cada foto.
– Também vi as fotos que você tirou para a fundação e é incrível como você consegue registrar a essência dos momentos, seja numa pista ou no meio de crianças incríveis. – Não importa se haja pouca luz aqui, os olhos de Carpentier brilham ao mencionar o meu trabalho e meu coração palpita tão forte que eu o sinto em minha garganta. – Você é uma jornalista incrível, uma fotógrafa com uma habilidade rara.
– Obrigada. – Minha voz vacila e eu forço uma tosse para disfarçar. – Eu não trabalho muito com fotografias centradas em pessoas, mas acho que fiz um bom trabalho.
– Ótimo trabalho, Perrie. Eu acho que vi algumas pessoas chorando com as fotos no corredor quando cheguei. Você deveria se orgulhar.
– Pelo menos uma vez na vida eu não sou a pessoa chorando com o meu trabalho. – A frustação de anos é evidente em minha voz e Carpentier se aproxima ainda mais. – Será que você pode me deixar sozinha, Enric?
– Eu tenho uma pergunta para você, Pêrrí.
– Você me deixará sozinha se eu responder? – o último gole do drink desaparece nos meus lábios. O álcool desce a minha garganta como água, e meu estômago se aperta com medo do que está por vir.
– Eu posso pensar sobre. – Ele apoia um braço entre nós e se aproxima.
Nossos rostos estão no mesmo nível, seus olhos verdes tão próximos, seu perfume me envolvendo e meu coração disparando. Estou apavorada com o que ele pode dizer. Minha vida pode descer ladeira abaixo a partir deste momento.
– Apenas fale logo, Gael.
– Você realmente me odeia?
A resposta está na ponta da minha língua e eu quero gritá-la bem aqui, mas me contenho até encontrar uma resposta que não me coloque em apuros quando o baile chegar ao fim e todo o conto de fadas se dissolver em realidade. Carpentier ainda está com seus olhos em mim.
– Clichês não são a minha área, mas odiar alguém é um sentimento muito forte. Eu apenas te suporto, Enric. – Respiro fundo e escolho minhas próximas palavras. – Não há nada que me irrite mais do que ter que ser punida por algo que outra pessoa fez. Você que deveria se odiar.
– Acho que eu o faço por mim e por você. – Ele bufa e se afasta.
Minha resposta pode ter sido esclarecedora – porque ele perguntou o óbvio para quem estava pronta para mentir como se a vida dependesse disso –, mas ele levanta com pesar nos ombros e a derrota em sua face. Ele finalmente me deixará sozinha, agradeço silenciosamente e recomponho-me. Meu coração precisa parar de bater forte, meus pensamentos disparam um lado para o outro em minha mente. A ansiedade quer assumir daqui para frente e eu respiro fundo.
Carpentier não se afasta. Ele esconde as mãos nos bolsos da calça de alfaiataria e me encara.
– Por que você não me acompanha até o salão para eu lhe apresentar para algumas pessoas importantes? – seu convite me surpreende.
Assim como a sua postura que mudou desde o Grand Prix da França. E mudou de novo quando ele me viu mais cedo. Por que Gael Carpentier parece tão focado em conseguir a minha atenção esta noite? O que ele quer de mim? Suas intenções mudaram desde a primeira vez que nos encontramos?
– Você simplesmente não consegue me deixar sozinha. – Expiro forte, fico de pé e pego o copo vazio. – Tudo bem, Enric, eu vou fingir que não nos mordemos quando estamos em frente e atrás das câmeras pelo bem da minha sanidade.
– Tão dramática como sempre, Pêrrí. Eu não estou te forçando a nada.
– Eu sei, eu sei. Eu só não estava pronta para te ver aqui.
– E o que você esperava?
– Que, pelo menos uma vez na vida, você perdesse a chance de usar vermelho em um baile.
E, depois de meses de convivência e reportagens escritas com um pouco de raiva, eu consigo tirar uma longa e sincera gargalhada de Carpentier. Seus braços apertam seu abdômen e seu nariz aponta para o céu.
– Melhor você aceitar o fato de que o universo sempre vai conspirar ao meu favor, Pêrrí. – Ele estende o braço direito. – Não tenho a noite toda.
Se o meu destino é comandado pelo universo ou por uma outra entidade que continua me colocando no mesmo caminho que Gael Carpentier, eu nunca saberei. Não sei para quem protocolar uma reclamação ou agradecimento. Porém tenho ideia do que devo fazer daqui para frente.
Aceito seu braço e o toque acetinado de sua camisa é delicado contra a minha pele nua e meus pensamentos delicados. As terminações nervosas entram em combustão com o conjunto da situação. Primeiro seu perfume gruda em minha roupa e agora, mesmo com um tecido entre nós, minha pele está queimando com a nossa proximidade.
Deixamos o pátio em silêncio, ele me guia para longe das escadas até um corredor mais aos fundos do prédio. As portas do elevador que me foi oferecido mais cedo estão abertas e nós caminhamos juntos. Devo dizê-lo que não precisava disso? Devo dizer alguma coisa?
Todas as minhas decisões oscilam entre deixá-lo sozinho e não sustentar esta farsa ou colocar em prática todos os conselhos que ouvi do meu pai nas últimas semanas. O tempo passa devagar na caixa de metal. Eu tomei a minha decisão e não serei controlada por minha ansiedade, repito até que meu corpo entenda.
As portas se abrem e estamos em um corredor vazio, mas os murmúrios dos convidados podem ser ouvidos através das paredes. Do mesmo modo como fez antes, Carpentier me guia.
– Eu preciso te dizer uma coisa antes – sua voz está baixa e eu me concentro para ouvi-lo. – Não deixe seu lado racional te controlar sempre, Perrie, às vezes ouvir nossas emoções nos tratará melhores resultados.
Não tenho a chance de responder porque logo ele está me levando de volta ao baile. Está sendo uma noite difícil para o meu coração que não para de acelerar como se estivéssemos correndo uma maratona e quer assumir a liderança de qualquer modo. Deveria ser fácil abrir mão do controle, porém eu não consigo me ver fazendo isso até perceber que Carpentier me leva para a direção oposta ao salão do baile. Ele abre uma porta e eu me acalmo quando percebo que não estamos sozinhos.
– Aí está você, novato! – Ziwak desabotoou seu paletó e seu rosto está corado, uma postura relaxada que eu nunca presenciei antes. Seus olhos brilham ao encontrar os meus e sua risada inesperada planta uma interrogação em minha mente. – Senhoria Michelle, querida, espero que este francês não esteja lhe incomodando.
– Sempre tão inconveniente, Vitor. Onde está a sua esposa? – ele olha além de Ziwak pelo salão, atrás da mulher que discursou perfeitamente sobre como a missão da fundação nunca se fez mais necessária do que no momento que estamos vivendo.
– Ela foi buscar mais champanhe. – Ele confere os arredores. – Por quê? Você não cansou de atormentá-la também não?
– Você quer terminar esta discussão nas pistas? Acho mais justo já que um de nós tem noção do que está falando – ele sorri com arrogância na ponta de seus lábios.
– Eu ainda te odeio, Carpentier. – O consultor aponta para o piloto e, mesmo que suas palavras pudessem soar como uma ameaça, ele começa a rir novamente.
– Odeia tanto que prepara as melhores estratégias para mim – rebate.
– Em algum momento, eu serei obrigado a cortar as suas asas.
– Ainda bem que eu não preciso delas para voar nas pistas. Vamos, Pêrrí.
– Crianças – Ziwak solta para ninguém em particular antes de se virar e ir conversar com outras pessoas.
Carpentier tenta me tirar do lugar, porém eu desfaço o contato de nossos corpos e levo minhas mãos até uns dos botões que prendem a capa ao meu macacão. A própria Harriette teve problemas com ele antes de sairmos, então não me surpreendo ao enfrentar certa resistência do acessório com o álcool e o medo em minhas veias.
– Droga, eu só queria tirar isso! – resmungo e flagro Carpentier me encarando.
– Posso tentar?
– Sim. Tem um botão preso sobre a lapela aqui – aponto para o local. – Você precisa soltar o elástico que o prende nos meus ombros e na minha nuca – e indico onde estão os outros
– Ok. – Ele levanta as mãos para seguir até os locais indicados.
– Mas espere! Tenha cuidado, por favor, se os elásticos arrebentarem, minha irmã me mata.
– Tudo bem, Pêrrí. Confie em mim, ok?
Não o respondo.
Mesmo sem uma resposta, Carpentier se aproxima do mim. Fecho os meus olhos e aguardo por suas mãos em meus ombros e na minha nuca. A antecipação de seu toque consciente em meu corpo explode em meu estômago e faz tudo o que eu consumi nas últimas horas se revirar. Eu quase não sinto a pressão de seus dedos contra a minha roupa, mas pode ser porque estou nervosa, bêbada e confusa.
– Pronto. – Ele passa por mim e deixa a capa dobrada nas costas de uma das cadeiras. – Não arrebentei nenhum elástico.
– Obrigada. E agora, para quem você quer me apresentar?
– Vamos voltar para o salão, Juliane muito provavelmente foi interceptada pelos convidados durante o retorno e poderemos encontrá-la mais facilmente se buscarmos por uma mulher usando um penteado cravejado de rubis. – Ele oferece seu braço e eu retomo nossa ligação.
Sim, Juliane com certeza está por aí sorrindo e conseguindo mais doações para a fundação que o marido fundou em homenagem à falecida mãe. Andrea Ziwak sempre esteve presente nas corridas do filho desde os primeiros anos dele no kart e só deixou de comparecer nos grandes eventos depois do diagnóstico de leucemia, alguns anos atrás. Ziwak conseguiu conquistar seu segundo troféu de melhor da temporada semanas antes de ela falecer e dedicou grande parte dos seus prêmios em dinheiro subsequentes à Fundação Andrea Ziwak.
Mas Juliane, como uma esposa engajada, se dedicou ao máximo pela causa. Ela é mais o rosto de toda a operação – mais do que o próprio Vitor Ziwak – do que a mente. Seu discurso foi de arrancar lágrimas de todos ao meu redor. Ela sabe escolher suas palavras e usá-las sem a necessidade de um assessor para revisar seu texto. Acho que é por isso que Ziwak deixe que ela apareça mais: as câmeras a amam.
– Pêrrí, você ouviu o que eu falei?
– Hum, não. O que foi? – viro meu rosto para encará-lo.
– Merde, Pêrrí. Como você consegue ignorar todo mundo ao seu redor e ainda parecer presente? – entre as frestas de sua máscara polida, enxergo um pouco de frustação em Carpentier.
– Você poderia repetir?
– Só esqueça que eu disse algo. – Ele murmura.
Nossos passos são cuidadosos entre as pessoas que deixam suas mesas para dançarem um pouco agora que todas as formalidades acabaram. Estamos indo contra a corrente, buscando por Juliane Ziwak em todos os cantos sem sucesso. Carpentier aparentemente desiste da busca e me leva até um dos bares mais vazios.
– Você quer algo? – ele me pergunta enquanto acena para o bartender e pede uma água para si.
– Não, eu estou bem.
– Tanto faz – ele dá de ombros e aceita a taça d'água. – Por que você está preocupada?
– Eu não estou preocupada. – Percebo que meus lábios estão pressionados um contra o outro e minha visão encontra-se em um ponto aleatório do salão. – O que você estava falando mais cedo, Carpentier?
– Então você está preocupada. – Ele deixa o bar e eu o sigo até uma das janelas.
– Por que você me trouxe aqui? Eu sou algum tipo de acessório que você quer exibir para alguém em especial? Por favor, me deixe fora de seus dramas pessoais – disparo e me posiciono entre ele e o salão. Todo o mundo ao redor pode ficar para trás enquanto eu não conseguir resgatar o que ele me disse antes de chegar aqui.
– Paciência, Pêrrí. – Ele vigia o salão por sobre o meu ombro com um sorriso no rosto.
– Eu não estou com paciência para joguinhos mentais, Enric. Desembucha.
– Você dança, Perrie?
– O que você está fazendo?
– Perguntando se você dança – nossos olhares se encontram e ele deixa suas íris esverdeadas passearem pelo meu corpo novamente. – Não podemos mais ter uma noite de trégua? É um baile de gala, todos estão aqui para encherem as taças e abrirem as carteiras.
– Uma trégua? – questiono incrédula. – Você conhece essa palavra?
– Você vai permanecer na defensiva para sempre? O que você quer, Pêrrí? Estou me esforçando aqui para tentar te agradar. – Ele recua até se sentar no parapeito da janela.
Se ele quisesse mesmo me agradar, ele quebraria a porcaria de contrato que me prende a ele pelo resto da temporada e esqueceria que eu existo. Se ele quisesse me agradar, ele não me deixaria no escuro enquanto eu vago pelos meus próprios labirintos mentais. Eu odeio como ele muda do vinho para a água em segundos perto de mim, eu perco a cabeça sempre.
Antes de deixarmos o pátio, tenho quase certeza que concordamos em dar uma trégua das alfinetadas. Por que ele quer outra confirmação de que eu posso passar o resto da noite sem esganá-lo em um canto solitário e escuro do local?
– Sim, Enric, eu danço. – Ele ainda está de novo com seu olhar passeando longe do meu. – Mas eu não estou afim de dançar hoje.
– Uma pena.
Penso em desistir de ficar próxima dele e procurar por Luca, porém assim que dou um passo para trás, Carpentier lê os meus pensamentos e deposita suas mãos em minha cintura. Ele rapidamente me puxa para mais perto dele – e eu nem tenho chances de fugir porque seus dedos estão firmes contra mim. Nossos corpos não se tocam, mas as longas pernas dele descansam uma de cada lado do meu corpo e ele continua a olhar para longe de mim.
– O que você quer de mim, Enric? Acabe logo com o suspense – cravo as minhas mãos em seus ombros.
– Eu quero que você aceite a trégua que proponho para esta noite. – Ele sussurra e inclina o rosto em direção ao meu, que está abaixo da minha linha de visão. – Trégua?
– Você venceu. – Aproximo meus lábios de seu ouvido. – Teremos uma noite de trégua apenas, depois eu vou voltar a menosprezar a sua presença quando estivermos juntos.
– Não sei se posso dizer o mesmo, Pêrrí.
Ele está perto. Agora que estamos em um local bem iluminado, posso ver reflexos do cansaço abaixo dos olhos, o desvio leve na silhueta de seu nariz e as manchas mais douradas de seus olhos. Ele carrega detalhes que as fotografias não registram quando passa em alta velocidade pelas minhas lentes.
Eu aprendi algumas coisas sobre o comportamento dele tipo quando ele cruza as mãos sobre as pernas durante as entrevistas em que está concentrado. Ou quando ele desvia o olhar ao ouvir outros repórteres perguntando sobre sua família indicando que não quer responder sobre isto. E seu pequeno sorriso quando ele parece me flagrar o fotografando no meio de outras dezenas de câmeras porque ele quer garantir que eu esteja ali para sempre, como uma forma de penitência por meus atos.
– Você já conhecia Carter Lawrence antes de hoje?
– Eu o entrevistei algumas vezes, mas nunca tínhamos conversado informalmente – dou de ombros, mas ele não está prestando atenção em mim. – Não gosta de dividir jornalistas?
– Ele não para de te olhar.
– Assim como você fez mais cedo.
– Eu queria saber quando você estaria disponível para conversar já que ele me atrapalhou antes.
– Acho que ele alegaria que você o atrapalhou. Nós não estávamos falando nada importante e você apareceu do nada pronto para iniciar uma briga.
– Culpado. – Ele estala a língua contra o céu da boca, talvez incomodado por eu estar defendendo o piloto britânico. – Carter não gosta de mim desde que corríamos nas categorias de base. Ele diz que estou sempre estragando seus momentos de ultrapassagem.
– A mentalidade de vocês não mudou muito desde então, pelo visto. – Por mais que se espere uma certa rivalidade entre os pilotos, a maioria se dá muito bem fora das pistas. Lawrence e Carpentier devem ter muitas rixas que não foram noticiadas antes deles começarem suas temporadas de estreia na Fórmula 1.
– Ele não tem tempo para pensar em algo além de si mesmo, por isso ele continua agindo como um adolescente de 18 anos com algum talento para dirigir carros velozes – dispara. – Não se deixe enganar pelo sorriso e o sotaque melódico.
– Hum, claro, porque eu pedi por um conselho seu sobre quem eu devo ou não devo falar para você.
– Você já deveria saber que jornalistas possuem um charme natural para tirar o que quiserem da boca de quem desejarem – ele me encara e encontra minhas sobrancelhas erguidas. – Apenas dizendo.
– E agora você se tornou especialista em decifrar no que as pessoas são boas. Uau, Enric, você deveria adicionar isto ao seu currículo, quem sabe até no seu perfil das redes sociais.
– Levarei o seu conselho em consideração. Por que não paramos de conversar e dançamos um pouco?
– Eu já te disse que não quero.
– Então era mais fácil você ter respondido que não dançava quando eu te perguntei.
– Pelo bem da nossa trégua, eu dançarei uma música com você. – Afasto minhas mãos dele e tento sorrir.
– E o que você vai pedir em troca?
– Por que você acha que tudo é baseado em uma relação de trocas?
– Só esqueça que eu disse algo sobre isso.
Ele balança a mão e abandona o assento improvisado na janela. Observo-o ajeitar a camisa que veste e colocar uma mecha de seu cabelo atrás da orelha. Ele sorri ao me flagrar ali, apreciando pequenos detalhes que não terei a chance de ver novamente.
– Perrie Michelle, você me concederia uma dança? – ele se curva como se estivéssemos em um baile da realeza e eu fosse uma princesa, uma mão adiante e outra atrás de suas costas. Guardo minha risada para mim e entro no personagem.
– Seria uma honra. – Descanso minha mão sobre a dele gentilmente.
Acho que Carpentier fica feliz por eu encarnar o papel que ele iniciou porque seu sorriso, dessa vez, não é nem um pouco discreto. Da mesma maneira que fez durante a noite, ele me guia entre os convidados que vêm e vão de suas mesas para a pista de dança.
Uma banda de jazz está tocando sem o vocalista neste momento e eu assumo que não há uma maneira correta de dançar. Não estamos em uma boate com luzes fluorescentes e batidas graves, a melodia dos instrumentos de sopro, de cordas e de percussão é simples e de livre interpretação. Alguns convidados estão apenas balançando o corpo de um lado ao outro, alguns casais estão dançando juntinhos, com seus sorrisos secretos e palavras sussurradas.
Somos interceptados duas vezes antes de encontrarmos um local tranquilo para dançarmos a música que se espalha pelo salão como uma trilha sonora escolhida a dedo para se encaixar numa cena de um filme.
Em sincronia, nossas mãos encontram lugares equilibrados para descansarem no corpo do outro – visto que não temos a proximidade que muitas das pessoas ao nosso redor. Carpentier parece confortável com suas mãos na minha cintura, sem muita pressão, apenas o suficiente para guiar nosso balanço, enquanto as minhas estão em seus ombros – e ficarão por lá para manter uma distância segura entre nossos rostos.
– Se você estiver guardando perguntas que quer perguntar, agora é um bom momento já que não temos nenhuma câmera apontada para nós – ele sussurra.
– Eu não passo todas as horas do meu dia pensando nisso, Gael.
– Não estou falando isto para a jornalista, Pêrrí.
Trégua significa uma brecha para eu sanar as dúvidas que eu não queria ter, mas passei todos os minutos do caminho até aqui me perguntando se deveria questioná-lo. Por onde começo? Qual detalhe que eu percebi pode ser revelado sem que eu me coloque em uma situação difícil?
Todas as entrevistas para os veículos franceses após o Grand Prix da França giraram em torno de Carpentier dedicando sua conquista para uma tal de Rose. No mesmo segundo em que eu ouvi isso, fui atrás de mais informações sobre ela. Ou ele. Ou quem quer que Rose seja. E eu me deparei com um vazio de informações por todos os lados, nenhum dos meus colegas ou correspondentes sabia me dizer quem seria Rose. O mistério me intriga porque, sinceramente, se Rose fosse alguém importante, ele não estaria aqui comigo. E se Rose for o codinome de algum parente que a mídia não conhece?
– Quem é Rose? – a dúvida foge de meus lábios e meu coração acelera, despreparado para a resposta.
– Sempre tão cheia de curiosidade sobre a minha vida, querida – seu registro vocal mais grave envia sinais de alerta para o meu corpo. – Desde quando você entende francês?
– Não sei se você conhece a ferramenta, mas eu sei ler as legendas que as emissoras internacionais adicionam aos conteúdos visuais publicados em outras línguas.
– Claro que sim, como eu sou estúpido. – Ele joga a cabeça para trás e ri.
A música deixa a paz de lado e o ritmo do jazz se eleva, com os vocalistas da banda de volta ao seus locais sob as luzes dos holofotes. Mantemos nossos corpos como estão, mas as perguntas ainda coçam a ponta da minha língua.
– Assumirei que Rose é algum tipo de tradução errônea, se você quiser.
– Mercí, Pêrrí.
– Pare de me chamar assim – peço entre dentes, mantendo o sorriso discreto em meu rosto. – É a nossa noite de trégua, lembrado?
– Força do hábito, perdoe-me.
– Se as legendas estão erradas, o que você pode dizer das imagens que saíram após a corrida?
– As do pódio? Bom, elas não chegam nem perto das que uma fotógrafa registrou assim que eu saí do meu veículo e percebi que todo o esforço valera a pena.
– Não, não. As tiradas enquanto você entrava no aeroporto, seu rosto com um grande hematoma no olho e alguns cortes. Você teve algum desentendimento após a coletiva de imprensa?
Carpentier desvia o olhar. Ele não quer responder. Eu não ligo se ele não vai abrir o jogo sobre Rose, mas eu quero uma resposta desta vez. Eu quero saber onde ele perdeu a cabeça e acabou ferido. Eu me importo com ele – é mínimo, mas eu me importo. Pilotos não são pagos para arrumarem brigas por aí, muito menos após seu primeiro pódio.
– Nada aconteceu, Perrie. Aquilo não foi nada, tudo bem? Ninguém deveria ter me visto depois da corrida. – Ele está irritado e fugindo dos meus olhos.
– Por que me deixar fazer perguntas se não conseguirei respostas, então? – disparo. – Sem joguinhos estúpidos, Carpentier. Por que você se comporta como se tivesse ódio de mim em um segundo e no seguinte está tirando sorrisos de mim?
– Perrie...
– Não, não me venha com uma desculpa esfarrapada. Eu respeitei todos os limites que você colocou entre nós durante todo esse tempo. – Tiro minhas mãos dele, mas ele não me deixa ir, apertando seus dedos contra o tecido da minha roupa. – Você age como intocável nas pistas e horas depois tem um ferimento horrendo no rosto que todos comentaram sobre, mas ninguém sabe de onde veio. Você não sabe o trabalho que dar me convencer de que temos apenas um relacionamento profissional quando eu passei a me importar com o seu bem estar. Jornalistas não são cruéis como todo mundo fala, nós realmente nos importamos com cada pessoa com quem trabalhamos e você só torna o meu trabalho mais difícil.
– Eu pensei que você apenas me suportasse – ele morde o lábio inferior e me encara com curiosidade, brincando de usar as minhas palavras contra mim em um momento confuso como este.
– Você é um ótimo piloto, mas também é uma incógnita que me intriga, algo que eu não consigo decifrar. Nos conhecemos da pior maneira e, quando me dou conta, estou atrelada a você por causa de uma oportunidade que eu teria sido idiota de deixar passar. – Bufo. – Eu espero que algum dia você ainda me prove que eu o julguei mal naquela primeira noite porque eu estou cansada de esperar.
– E você está falando isso tudo porque eu decidi não responder a sua pergunta? – pelo modo como suas sobrancelhas estão erguidas e a seriedade em seus olhos, sinto que estou passando dos limites na pior situação possível.
– Pare de usar as minhas palavras contra mim – esforço-me e rompo o contato com ele. – Eu posso estar um pouco alterada, mas eu não quero saber onde isto – aponto para ele, depois para mim – vai terminar. Aproveite o resto do baile, Carpentier.
Embasbacado é a melhor maneira de descrevê-lo enquanto eu o deixo sozinho na pista de dança. Mesmo sabendo que o salão não é um labirinto e que ele facilmente me acharia se tentasse, eu sigo para longe, atrás de qualquer coisa que me distraia. Eu acabei de vomitar palavras que nunca sairiam da minha boca em condições normais e parte de mim se arrepende, parte se sente orgulhosa.
Eu deveria ter pisado no pé de Carpentier quando tive a chance. E mantido a minha boca calada muito antes de nos aproximarmos durante a noite.
++++++
São quatro da manhã quando decido que Luca ultrapassou todos os limites. Ele já conversou com todos no baile e bebeu mais do que o suficiente para ser capaz de tropeçar no vento. Um dos fotógrafos me ajuda a carregar meu amigo até o elevador – nem louca eu tentaria descer as escadas com ele, a única pessoa capaz de fazê-lo é Eric porque ele simplesmente desiste e carrega Luca no colo.
O mundo fora além das colunas arquitetônicas e das janelas de vidro está desabando. E Anya disse que não choveria, penso enquanto aguardo por um hostess voltar à mesa para me devolver nossos celulares. Precisamos de um táxi para chegar ao hotel antes que chova o suficiente para termos que alugar um barco.
Mas parece que todo mundo resolveu ir embora ao mesmo tempo e não tem ninguém aqui para nos devolver nossos celulares.
– Perrie, me deixa aqui – Luca balbucia da poltrona em que o deixamos. – Faço seu trabalho todo.
– Jamais, Anderson. É meu dever como melhor amiga te impedir de explodir as melhores coisas que já aconteceram na sua vida – bato meu pé contra o chão na esperança de que o eco do corredor encontre alguém que possa vir aqui.
Depois de deixar Carpentier sozinho na pista de dança, eu dei um jeito de sumir da vista dele. Passei alguns minutos no banheiro, depois me escondi no canto mais escuro do pátio até a chuva começar timidamente e, quando não tive mais como fugir, voltei para o espaço menor no segundo andar, escondendo-me perto do bar e conversando com pessoas que se sentavam ao meu lado e estavam dispostas a conversar.
– Perrie Michelle, eu-te-odeio. – Luca tenta parecer ameaçador, mas as palavras que saem da sua boca estão tão emboladas que ninguém mais entenderia se não tivesse o hábito de ouvi-las.
– Sei bem, Luca. – Olho de um lado a outro do corredor. – Mas que merda, não tem ninguém disponível para me ajudar?
Meu amigo resmunga algo incompreensível enquanto eu passo pela mesa dos hostess e tento encontrar nosso aparelhos. Eu não quero ficar aqui mais nenhum minuto sequer com Carpentier propenso a aparecer no segundo em que eu virar as costas e Luca vomitar pelo chão antes de desmaiar.
– Que merda, que merda, que merda!
Escoro-me contra a parede e bufo. Eu quero a minha cama, duas aspirinas, um pijama confortável e um banho morno – não necessariamente nesta ordem. Primeiro vou ter que chutar Heart da minha cama e pedir ajuda dela para tirar o macacão, depois eu posso pensar em fazer qualquer outra coisa.
– Onde está Eric? Perrie? – e meu amigo avança para o estado mais alucinante de sua bebedeira: ele vai nomear todas as pessoas que conhece, inclusive seus pais, como se eles pudessem ajudá-lo a ficar de pé.
Em seu estado lamentável, Luca insiste em apoiar os braços na poltrona e jogar o peso de seu corpo para suas pernas. Sem sucesso algum, ele briga com o nada e tenta mais algumas vezes antes de desistir. Não consigo nem rir da cena porque estou irritada. Ninguém aparece para nos devolver nossos celulares e a tempestade só piora.
Um trovão alto o suficiente para abafar o som que foge pelas escadas espanta a minha raiva por alguns segundos antes de mais e mais relâmpagos cortarem o céu.
Eu não posso deixar Luca sozinho porque tenho medo dele se machucar ou dar um jeito de rastejar até o andar superior. Porém a impaciência irrompe cada vez mais veloz o meu limite. Eu não aguento mais esperar, eu preciso sair daqui, eu preciso deixar esse baile para trás e dormir. E processar tudo o que aconteceu porque, mesmo que eu não lembrarei exatamente o que aconteceu, eu terei certeza do que senti – e o prognóstico não é nada bom.
– Perrie...
– Luca se você não calar essa sua boca enquanto eu penso, eu juro que você volta em pedaços para Chicago. – Ameaço-o antes que ele comece as gracinhas.
– Ok. – Sua cabeça balança para frente e para trás e os olhos dele lutam ferozmente para não se fecharem. Será que eu posso deixá-lo aqui e buscá-lo mais tarde? Se bem que nem eu conseguirei sair daqui.
Imploro que uma solução caia do céu antes que fiquemos presos aqui.
Ouço passos e me viro na direção do corredor da entrada, mas meus sentidos pregaram uma peça em mim. Retorno minha atenção para as escadas e assisto ao Carpentier descendo-as quase que correndo, vestindo o blazer do terno sem prestar atenção aos degraus – combinação perfeita para uma queda, na minha opinião. Ao pisar no último degrau, ele me flagra observando-o.
– Perrie, aconteceu algo? – sua voz está esbaforida e ele tem um rubor nem um pouco discreto nas bochechas.
– Sim, eu quero ir embora e preciso de um táxi para isso, mas não tem ninguém aqui para me devolver meu celular – aponto para a mesa vazia. – Você precisa de alguma coisa?
– Luca está bem? – ele aponta para o meu amigo.
– Não.
E ele não diz mais nada. Por favor, Enric, suma da minha frente, imploro em minha mente, mas nem assim ele se toca de que não o quero perto de mim. Ele procura por algo dentro do blazer com apreensão e eu desisto da minha vigília por um hostess e ultrapasso a mesa, me dirigindo até o corredor que Carpentier me levou para usarmos o elevador.
– Ei, tem alguém aqui? Eu preciso do meu celular! – bato nas portas e não recebo uma resposta. – Olá? Preciso do meu celular de volta antes que o mundo acabe em água!
– Perrie! – Luca me grita, alongando a primeira sílaba do meu nome com vontade. – Perrie!
– Dane-se!
Refaço meu caminho de volta para onde larguei meu amigo e me surpreendo por encontrar Carpentier ali, com um celular em mãos, falando com outra pessoa enquanto eu surto. Claro, ele simplesmente vai me ignorar e mostrar que ele é capaz de burlar as regras. Ele não se cansa de jogar tudo o que eu estou passando para o alto como se fosse a única pessoa importante do mundo, não?
Ele se afasta e eu cruzo os braços. Eu não acredito que só me resta esperar pela boa vontade de alguém aparecer aqui para ir embora.
– Perrie, onde-está-Eric? – meu amigo balbucia a mesma frase seguidamente, sua boca quase não abrindo mais e sua cabeça pendendo para frente.
– Senhorita? – a hostess que recolheu nossos celulares e nos entregou os panfletos mais cedo aparece de um corredor secundário com um sorriso condescendente.
– Finalmente!
– No que posso ajudá-la? – ela se aproxima da mesa e reparo na sua roupa molhada.
– Preciso dos nossos celulares de volta para chamar um táxi.
– Claro, claro. – Ela ergue as mãos e olha para a mesa vazia. – Acho que meus colegas levaram os celulares lá para trás. Vou buscá-los, um minuto.
– Tanto faz – murmuro pelas costas dela.
Vitor Ziwak deveria contratar organizadores mais eficientes no próximo baile, anoto mentalmente uma sugestão que nunca farei e espio Carpentier por sobre o ombro. Ele termina a ligação e a hostess reaparece com os aparelhos.
– Sinto muito pela demora, estamos tendo problemas para levarmos os convidados até os carros. – Ela continua sorrindo. – Você precisa do número de algum serviço de transporte? Porque eu poderia lhe indicar alguns...
– Não, ela não precisa. – Carpentier se pronuncia e eu giro meu corpo para encará-lo. – Eu acompanharei a senhorita Michelle e seu colega até a porta quando for a hora.
A hostess suspira aliviada e pede licença para procurar mais guarda-chuvas porque, aparentemente, todos os que eles tinham foram destruídos pelo vento aterrorizador que está fazendo lá fora. Assim que ela desaparece, eu olho de Luca para Carpentier.
– Quem você acha que é para fazer as coisas por mim? – resisto ao impulso de apontar um dedo em seu peito.
– Apenas tentando lhe ajudar, Perrie. Vamos, o motorista estacionará na entrada dos fundos em dois minutos. – Ele se abaixa e joga um dos braços de Luca sobre o seu ombro, colocando meu amigo em pé e carregando-o.
Por quê? Por que, de todas as pessoas no mundo, eu tive a chance de conhecer Carpentier?
– Você não vem?
Ele me encara do final do corredor. Dane-se, a minha noite já foi ralo abaixo mesmo.
Um segurança está do outro lado da porta que Carpentier abre e ele, imediatamente, transfere para si a obrigação de carregar Luca. A chuva é branda agora, mas os trovões ainda são assustadores. Demora alguns segundos até um carro preto manobrar e parar o mais próximo o possível dos degraus e do calçamento irregular.
O segurança tem um guarda-chuva para si, mas assim que ele consegue deixar Luca dentro do carro, a ventania destrói a única maneira de me deslocar sem me encharcar em um piscar de olhos. O homem volta correndo para a segurança da construção e pede licença para buscar outro guarda-chuva.
– Minha irmã vai me matar se eu estragar minha roupa – resmungo para o universo. – Por que diabos tinha que chover no dia do baile?
– Boa pergunta, Perrí. – Carpentier, que ficou parado ao meu lado esse tempo todo, me encara. – Eu não acho que ele encontrará um guarda-chuva tão cedo.
– Por que você não vai ajudá-lo? Eu prefiro me arriscar sozinha na tempestade a permanecer mais um segundo aqui com você.
Cruzo os braços e encaro a noite escura.
– Você pode confiar em mim mais uma vez? – sinto o toque de Carpentier em meu ombro e me arrepio com a diferença de temperatura entre nossas peles.
O que ele quer agora? A nossa trégua acabou no momento em que eu surtei na frente dele e desapareci. Ele está agindo agora para me cobrar favores mais tarde, eu tenho certeza disso. De onde que um piloto que só pensa em si mesmo seria cavalheiro?
– Eu não vou voltar para o baile e deixar meu amigo sozinho, Enric. Ele mal consegue se manter de pé!
– Por favor, Perrie.
– Tanto faz. No que você está pensando?
A figura esbelta de Carpentier ao meu lado chega a ser dramática diante das condições em que nos encontramos. Ele olha para dentro do recinto, dá um passo para colocar algo lá e me encara. Rapidamente, ele retira o seu blazer e o joga por cima dos meus ombros, segurando-o acima da minha cabeça como um capuz.
Ele me puxa para a chuva sem dizer mais nada. Estou protegida o suficiente para conseguir enxergar entre as gotas torrenciais, mas meus passos falham uma vez ou outra. Ele ainda está segurando o meu antebraço, guiando-me enquanto deixa a chuva encharcá-lo.
Parece que percorremos milhares de quilômetros da porta até o carro. O céu está escuro, nenhum relâmpago cortou-o e os trovões se silenciaram para dar espaço ao meu coração acelerado e aos gritos de Carpentier para que eu segure o tecido com mais força. Estou tentando, estou tentando não me perder no meio do conflito entre as tempestades que mais temo.
O vento passa a soprar contra o meu rosto e eu fecho os olhos. Eu estou confiando completamente no Carpentier para chegar em segurança no carro. Mal posso ouvi-lo agora que a chuva explode, mesmo que abafada, contra meus ouvidos.
– Perrie! – ele grita a tempo de, em um impulso, me colocar próxima do veículo.
Espero pelo metal frio da lataria, mas, quando me dou conta, estou sã e salva com a maior parte do meu corpo no destino final.
Carpentier me encarando, molhado dos pés à cabeça, é um recorte visual que eu nunca pensei que veria. Por segundos, ele parece... vulnerável. Seus lábios abertos e a respiração entrecortada, o corpo levemente inclinado para proteger as minhas pernas – que ainda não tive tempo de colocar para dentro do carro – e seus longos dedos ao redor do meu pulso.
Preparo minhas palavras para me despedir e, antes que elas se tornem realidade, um relâmpago corta o céu – e eu juro que eu o vi em câmera lenta. Por longos segundos, eu me perco nos detalhes do rosto de Carpentier, em seu olhos verdes e no espanto que ele demonstra. O toque entre nós se desloca pelo meu braço até nossos dedos se entrelaçarem. Consumo todos os detalhes como se eles tivessem acontecido enquanto a luz cortava o céu.
Palavras confusas ecoam em meus ouvidos. Encaro os lábios de Carpentier mais uma vez para tentar processar o que ele diz – porém nada entendo, ele deve estar resmungando o quanto se arrepende de estar na chuva por mim.
– Au revoir, Enric. – Digo e desfaço o contato entre nós.
– Au revoir, Pêrrí. – Ele fecha a porta.
O motorista tira o carro do ponto morto e diz que nos levará até nosso hotel. Agradeço, mas minha atenção está em Carpentier parado na chuva, encarando o nada. Mais um relâmpago e a boca dele se move. Nossos olhos parecem estar conectados mesmo com o vidro e toda a tempestade entre nós. Meu corpo se vira no banco para manter o contato mesmo quando só consigo vê-lo pelo vidro traseiro – estou tal qual uma criança
Ele permanece como se tivesse visto um fantasma. Está congelado no meio do caos. Eu quero mandar o motorista parar o carro e correr para perguntar o que se passa em sua cabeça. Ele é uma maldita incógnita que eu não almejo decifrar, mas não consigo achar a resposta para a primeira de muitas camadas.
Deixamos Carpentier para trás e eu aceito a dúvida eterna.
– Coup de foudre – o motorista resmunga e me tira de meus devaneios.
– Perdão?
– Você também não sabe o que significa, senhorita? – ele me olha através do retrovisor e sorri.
– Não, eu não falo francês. – Confiro se Luca está com cinto de segurança e afivelo o meu.
Espero por algum lamento do motorista por também ficar curioso com o que foi dito – agora que ele aparentemente me revelou o que foi dito enquanto eu estava em transe –, porém a atenção dele volta para as ruas londrinas e o seu dever de nos levar em segurança até o hotel.
++++++
O sol já nasceu há tempos e todos estão dormindo. Menos eu, a minha mente não desacelerou mesmo depois de um banho quente e um pouco de chá.
Jogo os cobertores para o lado de Luca, abaixo mais um pouco a temperatura da refrigeração e espio Harriette e Anya dormindo profundamente. Eu poderia abrir as cortinas e fingir que fechei os olhos em algum momento anterior, mas isso seria declarar a minha própria tortura. Assim que acordarem, serei bombardeada com perguntar sobre o baile e eu ainda não sei como respondê-las. Principalmente como estou com um blazer que não pertence a Luca estendido nas costas de uma das cadeiras.
Saio da cama com o corpo dormente: a minha mente não para, mas todos os meus músculos doem de andar para todos os lados com o macacão, a capa e as milhares de pedras preciosas... Droga, como eu vou contar para Heart que esqueci a capa em algum lugar no baile? Provavelmente os organizadores acharam e devem me procurar durante a semana. Ou não.
Se o pior acontecer, eu serei uma jornalista morta.
Ando com cuidado pelo quarto escuro até encontrar meu celular e usar a lanterna para preparar mais chá gelado. Ouço alguns passos no corredor, mas provavelmente são os outros hóspedes indo ou vindo de seus compromissos. Dou de ombros, adiciono um saquinho de chá no copo de vidro e aguardo enquanto olho minhas mensagens.
Mais ruídos no corredor e dois toques na minha porta. Meu corpo vai de sonolento a alerta em segundos. Espio seu meus amigos ainda estão dormindo e vou até a porta.
Quando abro-a, não há ninguém. Será que se enganaram? Olho de um lado ao outro e só então me dou conta que deixaram uma caixa branca e um laço vermelho no chão. Meu nome está escrito no envelope e a minha curiosidade age ordenando meus braços a pegar o que quer que tenham deixado para mim e espiar.
Corro para o banheiro, encosto a porta, acendo a luz e retiro o cartão antes de desfazer o laço. Embrulhada em papel seda, a capa desaparecida parece em perfeito estado. Meu peito até afrouxa com a exclusão da possibilidade de que não conseguir viver mais algumas horas neste mundo.
O cartão, no entanto, tem uma caligrafia familiar. Não encontro nenhuma resistência ao tirar o cartão do envelope e abri-lo.
Perrie,
Você deixou sua capa para trás, mas ninguém encostou nela, eu juro. Não se preocupe com nada, muito menos com Rose. Nos vemos na próxima corrida.
G.C.
+++
Amantes da velocidade,
Demorei mais de duas semanas, mas publiquei um capítulo GIGANTESCO (10 mil palavras, sim, maior que o anterior)!
Eu queria que tudo estivesse o mais próximo o possível do que imaginei, com todos os detalhes certos nos lugares certos, para que vocês identificassem o momento.
Ok, vou parar de falar de maneira complicada, mas aqui estamos, com a segunda parte do baile.
O que vocês acharam?
Amor,
Isadora — Gorro Vermelho
Atualização sobre a minha vida: minhas aulas voltaram e eu tenho um trabalho enorme para escrever e entregar em duas semanas, ou seja, não esperem uma atualização tão cedo assim.
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