CAPÍTULO OITO
A ressaca é uma vadia e eu não deveria ter ido na onda das meninas.
Luca mandou eu não acordá-lo se eu quisesse continuar viva para cobrir esta temporada. Então eu e a minha cara de quem caiu da cama e rolou até o banheiro pedimos café da manhã e usamos a máquina de expresso que temos a disposição no quarto.
Os ovos esfriaram e eu não consigo mais colocar nenhuma torrada para dentro sem pensar que já são onze horas e eu nem passei da metade da revisão final do editorial. Se eu deixar isso para depois, o trabalho vai se acumular com a cobertura da corrida de classificação. E se eu fizer isso agora, a minha cabeça vai estourar e Luca terá que cantar os pedaços de cérebro quando acordar.
– Sim, Cameron, eu estou finalizando. – Meu chefe insiste em me interromper, e eu devolvo o gesto. – O que eu achei da edição geral? Está muito boa, bem coesa quanto as cores e tipografia. Ok, eu entendo. Já estou terminando, não tenho muito a acrescentar, só estou revisando as suas anotações.
– Nos falamos mais tarde, Michelle.
Jogo o celular na minha cama e termino mais uma xícara de café. Faltam apenas três pilotos e todas as horas que eu investi na organização e no desenvolvimento são muito satisfatórias ao ver o resultado bem a minha frente. Meu nome está em destaque na ficha técnica e talvez eu o enquadre. E meu pai vai colocar uma edição de cada editorial nas mesas do restaurante. E a Heart vai postar sobre isso todo dia nas redes sociais.
O sol atinge o alto do céu, eu envio um e-mail para Cameron dizendo que está tudo muito bom e que quero receber uma edição enquanto estou na estrada, assim posso colecionar alguns autógrafos dos pilotos que eu admiro. Essa é a minha versão de fã surtada no auge dos vinte e seis anos em um esporte que é rotulado como o preferido de homens de meia idade.
Ligo para o serviço de quarto e peço o meu almoço – salada, vitamina de frutas da época e uma tortinha de ricota. Ouço a porta do quarto de Luca abrir e tento espiar o estado de vida em que está meu amigo. Ele murmura algo antes de entrar no meu quarto e cair de cara no colchão.
– Preciso ligar para Eric e avisá-lo de alguma besteira em potencial? – acaricio o alto da cabeça do meu amigo, ajeitando os fios rebeldes. – Luca, você está vivo?
– Não, eu ainda amo aquele homem e não fiz nada de errado. Alguém estava batendo na porta do nosso quarto, você não ouviu?
– Acho que não, eu estava no telefone com o serviço de quarto. Você quer que eu peça algo?
– Não, eu ficarei só na água e nos analgésicos. Será que eu sonhei com as batidas?
– Não sei, eu vou conferir. Fique aqui e grite se precisar de mim.
Mesmo ao me aproximar da porta, não ouço nada. Espio pelo olho mágico, nada. Recolho as torradas que sobraram e encho um copo d'água para Luca. Preciso recolocá-lo nos trilhos para a corrida de classificação: é como voltar para a faculdade e acordá-lo depois de um longa festa de fraternidade para fazer a prova final do semestre.
– Luca, a bebida atingiu o seu cérebro.
Volto ao quarto e ele está falando com alguém no meu celular.
– É Eric? – ele foge de mim e eu não compreendo. – Luca, o que você está fazendo?
– Não, tudo bem, ela comparecerá para essa entrevista de última hora, Cisti. Tenha um ótimo dia. – Ele desliga e a minha mente começa a processar as palavras ditas. – Não fique brava comigo, mas seu celular estava no silencioso e eu o atendi por você. Era Arthur Cisti.
– E ele não te odiou por atender meu celular com essa voz de quem gritou a noite inteira pela boyband favorita?
– Calada, Michelle. Entrevista pré corrida de classificação com o Carpentier na sala de imprensa no box da Ferrari.
– Eu odeio os italianos que pagam para esse francês maldito me importunar. – Grito para as paredes. – Uma entrevista antes das classificatórias? Estou sendo paga para perder o meu tempo com o ego enorme do Carpentier. Universo, me leve agora!
– Larga de exagero, Perrie. Ele disse que é apenas uma entrevista de áudio, algo mais descontraído para o público simpatizar com o novo garoto de ouro da Ferrari.
– E eu fui rebaixada a entrevistadora de marmanjo. – Meus braços se chocam contra as laterais do meu corpo.
– Ele é tão ruim assim? Porque nas entrevistas ele parece tão tranquilo. E nas coletivas, bom, ele nem dá o ar da graça mais. – Se eu apertar os meus olhos, posso enxergar os dois últimos neurônios trabalhando. – Boa sorte, Perrie.
– Eu vou chamá-lo de Enric antes da entrevista começar apenas para arranhá-lo. Luca, você está com o seu microfone de lapela carregado?
– Sim, está na minha mochila. Pode pegar o que precisar lá, a sua cama parece mais confortável que a minha.
– Que horas Arthur falou que eu devo estar lá?
– Em menos de duas horas. Que horas são agora mesmo?
– Porra! Como eu vou ir daqui até o autódromo neste tempo?
– Não sei, não quero nem saber. Agora fique quietinha, Michelle, e me deixe dormir. Lembre-se de que você ainda vai cobrir a classificatória com as imagens.
– Se recomponha e apareça naquela autódromo, ou eu vou te enviar em pedaços para Eric.
– Também te amo, esquentadinha.
++++++
Eu não tive muito tempo para tentar parecer decente depois de uma longa noite. É uma entrevista de áudio, então estou livre de usar o uniforme da USN. Se Arthur Cisti falar qualquer coisa, eu o mandarei me avisar de suas ideias estúpidas com mais antecedência.
O taxista me deixou na entrada dos bastidores e eu tive que esperar o assessor mal humorado da Ferrari me liberar para entrar. Caminhar no meio das equipes que fazem os últimos ajustes é tão caótico como andar no meio da imprensa assim que o primeiro colocado cruza a linha de chegada. Coloco esses imprevistos como os culpados do meu atraso.
– Perrie Michelle, jornalista da United Sports Network. – O segurança na porta do box da Scuderia Ferrari me anuncia em seu rádio e recebe uma resposta em italiano. – Segunda porta à direita, senhorita.
– Obrigada.
Para um quartel general temporário da Ferrari, esse lugar não tem todos os luxos que eu imaginei. Definitivamente não se compara com algumas coisas que vi antes de passar a trabalhar com a Fórmula 1, mas ainda assim eu esperava alguns móveis caros e tapeçarias vermelhas por todos os lados. É a Scuderia Ferrari, o que eu deveria esperar?
A porta indicada está entreaberta, então apenas me coloco para dentro do cômodo porque não tenho tempo a perder. Há um sofá, uma mesa de reunião para quatro pessoas e alguns pertences espalhados por aí. Deposito a minha mochila com os equipamentos no chão, ligo meu notebook e me preparo para não matar o piloto egocêntrico quando ele passar por aquela porta.
Uma das produtoras dos podcasts da USN me enviou um roteiro base no caminho até aqui e eu adicionei o que sei sobre a trajetória de Carpentier a partir das pesquisas que fiz para o editorial. Há um belo buraco sobre a adolescência dele, as fotos da infância são bem comuns e ele não tem nenhum parente que esteve nas pistas como inspiração.
Em minha opinião, eu acho que o pai dele pagou alguma equipe para que o filho realizasse o sonho de ser piloto, mas nem em entrevistas antes da Fórmula Um Carpentier menciona os pais, a infância ou a paixão pelos carros.
Gael Enric Carpentier é um rostinho bonito por fora, e uma folha em branco amassada por dentro. Porém, no mundo das corridas, se você é bom o suficiente para chegar ao pódio nada disso importa.
O que reforça a minha pergunta: por que eu tenho que gravar um podcast com Carpentier se ele pode muito bem tirar alguns suspiros e prêmios por conta própria?
A porta à esquerda range e a minha mente flagra o exato momento em que Carpentier aparece como se tivesse acabado de sair do banho. Os cabelos molhados, os cílios contornando as íris verdes e...
Ele não está vestido, muito menos tentando se esconder. Penso em gritar, mas meus olhos se fecham antes que eu possa esboçar qualquer coisa além da confusão e vergonha.
– Que inferno! – tapo meus olhos. – Enric, você não sabe sair do banho usando uma roupa como pessoas normais fazem, não?
Eu nunca mais vou conseguir tirar essa imagem da minha cabeça, lamento silenciosamente.
– Eu deixei a minha roupa do lado de fora. Perrie, pare com esse drama, tem uma toalha na minha frente esse tempo todo!
– Em minha defesa, eu cheguei antes do horário que o seu assessor informou.
A minha mão desce mais devagar que os meus batimentos cardíacos e, sim, Carpentier segura a toalha na frente da virilha. Por que ele não podia tê-la amarrado ao redor do quadril como uma pessoal normal? Por que ele não gritou para alguém pegar sua roupa?
Carpentier tem dificuldades de alcançar um conjunto de roupas depositadas sobre uma das mesas espalhadas pela sala. Seu corpo se projeta, um passo é dado e, merda, ele está de costas para mim e a toalha não está ao redor de sua cintura para cobrir seu traseiro.
– Merda, Enric. Será que você pode adiantar aí? – fecho meus olhos.
– O que foi, querida? Não gosta do que vê ou não quer ver porque não pode ter?
– Qual o seu propósito em irritar a pessoa que você está chantageando para cuidar das suas entrevistas? Se você acha que eu estou com medo do seu assessor, eu posso mudar as regras desse jogo agora.
– Com o que, senhorita Michelle? Dois minutos e eu estarei pronto para nossa entrevista.
Passa pela minha cabeça a ideia de insinuar que ele é gay, porém não faz sentido eu abaixar o meu nível e me tornar uma jornalista de fofocas que não respeita a privacidade dos pilotos. Meu melhor amigo não sai a público porque tem medo da repercussão na realidade atrás das câmeras. Para alguém na frente delas, seria imensamente pior.
Ele fecha a porta e nossa convivência vergonhosa se encerra. Confiro se os microfones estão ligados e conectados ao aplicativo de mixagem – assim eu posso conferir se o áudio está sendo captado como deveria. Sem câmeras, sem dores de cabeça.
Estudo a sala mais uma vez pensando se não seria melhor tentar algo mais descontraído. A minha voz não vai entregar o clima que existe, mas eu sempre tento deixar os entrevistados o mais confortáveis o possível – mesmo que eu os odeie por algum motivo além do meu trabalho. Mas acabo permanecendo na mesa de reuniões, sentada próxima à porta de saída.
Carpentier retorna vestindo uma camiseta branca sob o macacão vermelho de seu time. Ele não se senta na mesma hora, o calor parece incomodá-lo e ele decide apenas amarrar as mangas do macacão ao redor do quadril. O cabelo ainda está molhado e ele não está cansado como eu.
– Este é o seu microfone, preciso testá-lo antes de começarmos – empurro o aparelho em sua direção. É um simples microfone de mesa e Carpentier ergue as sobrancelhas. – Só diga algo tipo, conte até dez.
– Em inglês?
– Tanto faz, pode ser.
Faço um sinal de positivo para ele e ouço sua voz através dos fones de ouvido enquanto ele pronuncia os números em francês. Um ajuste simples e estou pronta para começar a entrevista.
– Você gostaria de ler as perguntas antes, Enric?
– Espera, eu esqueci uma coisa. – Ele se levanta da mesa e a primeira coisa que passa pela minha cabeça é que ele vai desistir da entrevista e mandar todas as provas que ele tem contra mim para algum site de fofoca. – Você aceita água ou prefere outra coisa?
– Só água, por favor.
Ao lado de onde estava suas roupas minutos atrás, Carpentier busca alguns anéis e se apoia contra o frigobar antes de qualquer coisa. Não há pressa em seus movimentos e ele finaliza a sua preparação com um cordão de couro. Dois círculos, um em prata e outro em um material escurecido e fosco, contrastam com a camiseta branca. Tento ler o que está gravado no prateado, porém Carpentier logo se senta à minha frente, empurra uma garrafa d'água para mim e eu preciso disfarçar todo o meu foco nele.
– Como você descobriu sobre o meu nome do meio? – eu deveria iniciar a entrevista, mas não existe planejamento quase se trata de Carpentier. – Nem mesmo a equipe da Ferrari sabe disso.
– A minha emissora encomendou um editorial sobre os pilotos dessa temporada e eu faço um ótimo trabalho como jornalista. Porém não estamos aqui para isso. E não se preocupe, seu nome do meio está a salvo comigo.
– Muito obrigado pela consideração. Você quer começar agora?
– Claro. Antes eu preciso fazer uma breve introdução já que o áudio irá ao ar em formato de podcast. Comporte-se ou eu serei obrigada a lhe dar um banho. – Balanço a água e ele revira os olhos.
Aja com naturalidade e tudo dará certo, repito o conselho de Luca para mim antes do mesmo cair no sono e na ressaca eterna. Prefiro trabalhar com imagens e textos longos a gravar entrevistas de áudio. Em vídeo eu consigo editar e colocar uma narração caso eu esteja muito nervosa na filmagem. Mas em um podcast não há como editar o nervosismo em minha voz.
A introdução não é a melhor de todas, porém eu passo a minha mensagem: estou com Gael Carpentier do outro lado da mesa e vamos conversar como duas pessoas normais. O ódio tem que ser deixado de lado ou todos vão perceber. A postura dele é tão dura e não me ajuda nem um pouco a cogitar a ideia de relaxar durante a entrevista.
– Acho que todos os fãs da Fórmula Um ficaram curiosos e preocupados quando a sua participação na temporada da Ferrari foi anunciada em cima da hora. Por favor, para aqueles que ainda não internalizaram a ideia de que você veio para ficar, conte um pouco mais da sua trajetória nas pistas.
Ele se aproxima do microfone e sorri para mim. Graças a Deus o meu microfone não consegue captar o pequeno suspiro que foge de mim.
– Entendo que talvez os torcedores da Scuderia Ferrari não estejam felizes com o início da minha temporada, porém eu acabei de chegar. As corridas de base nos últimos quatro anos e os campeonatos infantis de kart durante a minha adolescência me prepararam para esse momento. Ganhei vários prêmios, perdi o dobro de corridas, o importante foi não desistir e insistir. Quando eu entrei em um carro de Fórmula Um pela primeira vez, eu sabia que era isso o que eu queria para mim.
– E quem o incentivou a tentar uma vida nas pistas? Todos os grandes pilotos sempre tiveram alguém para se inspirar ou quem torcesse por eles das arquibancadas.
– Meus pais são divorciados, então entre uma casa e outra, eu tinha que encontrar meus próprios sonhos. Algumas tentativas foram em vão, mas a primeira corrida de kart com os colegas do colégio sempre estará na minha memória.
– Eu me lembro da primeira vez em que pensei em me tornar jornalista. – Preciso tirar a estrutura monótona da entrevista e adicionar minha visão é uma das formas que o roteiro base da equipe me deu como opção. – Sabe aquelas vans de reportagem? Eu vi uma na esquina da minha casa após um acidente de carro e sabia que queria fazer o que aquela mulher estava fazendo.
– Eu não ganhei minha primeira corrida de kart e sou grato a isso, para ser sincero. Era verão, meus colegas não paravam de falar das garotas que queriam beijar e nós tínhamos dez anos, no máximo onze. Eu saí encharcado de suor da pista, me amaldiçoando por ter ficado em terceiro lugar e com a adrenalina nas alturas. Eu queria continuar ali pelo resto da minha vida. – A postura dele se desmancha um pouco. – Mas foi a minha irmã que reacendeu a adrenalina em mim depois que eu desisti das pistas.
– Nossos irmãos podem ser os nosso maiores fãs e, acredite em mim, eu jamais reclamaria do apoio que a minha irmã me dá. – Sorrio ao pensar na reação de Harriette ao ouvir esse podcast. – Como é a sua relação com a sua irmã? Eu estou ligeiramente surpresa porque eu o imaginava como filho único.
– A maior parte da minha vida eu me senti como o filho único, ter pais divorciados foi um grande agravante para a solidão que senti, porém a minha irmã mais nova sempre me apoiou quando eu precisei de coragem para voltar a seguir meus sonhos. Ela não pode estar sempre presente nos grand prix, no entanto ela sempre faz questão de me ligar e me desejar boa sorte.
– A sua irmã está envolvida em sua vida até que ponto? Como é a relação de vocês? Ela te influenciou a correr nas grandes pistas, aposto que ela lhe ajudou em algo mais.
– Eu não quero comentar sobre isso, senhorita Michelle. – O tom de voz sombrio dele me avisa de que talvez eu não possa passar dessa linha.
– Tudo bem. Eu só preciso – clico em alguns indicadores na tela do meu notebook – manter o tom como se tivéssemos passado naturalmente de um tópico a outro.
– Ok.
– Não é segredo de que a sua jornada não é comum a muitos pilotos e que você inspira a nova geração de amantes de Fórmula Um ao redor do mundo. A sua irmã esteve ao seu lado para lhe apoiar e muitos adolescentes e até mesmo adultos buscam inspiração no que você está fazendo. Existe algum recado que você gostaria que eles ouvissem? Muitos não possuem um irmão ou uma família que os apoie e seus ídolos são suas inspirações.
Meus devaneios me levam para outra realidade enquanto Carpentier discursa sobre como é importante persistir. Nada de folha em branco para Carpentier, ele é um livro escondido na prateleira mais afastada de uma biblioteca gigantesca. Não espero que ele me conte tudo, porém eu sei que as suas palavras são medidas antes de saírem de sua boca.
– Perrie? Você está bem?
– Sim, estou. Perdoe-me, eu me distraí pensando em um problema pessoal. Você já terminou de falar?
– Estou há alguns minutos te encarando, você estava em outro mundo.
– Podemos continuar, então.
– Você quer mesmo continuar?
– Eu não preciso da sua compaixão, Enric. Estou bem. – Respiro fundo. – É um discurso bem inspirador, acredito que mesmo quem não pretende seguir a vida nas pistas vai se aproveitar de seus conselhos. Porém nem sempre podemos evitar de pensar em como seria a nossa vida se não tivéssemos conquistado nossos sonhos. O que você teria estudado na faculdade, Gael?
– As pessoas esperam que eu fale em alguma coisa relacionada a carros, como engenharia mecânica e automotiva, porém a arte sempre foi uma paixão que eu cultivei ao viajar de um país para outro, de uma cultura para outra, com essa vida de pais divorciados.
– Entusiasta nas aulas de arte, então?
– Não, apenas um colecionador. Mas isso não é um emprego de verdade, ou é? – nós rimos e talvez a entrevista melhore a partir de agora. Eu espero.
– Se você conseguisse vender os quadros com uma margem boa no valor que você pagou, talvez desse para pagar as contas.
– É, não, acho que não daria certo, porque eu jamais venderia minha coleção. – Ele se debruça na mesa e nossos olhares se conectam além da relação jornalista-piloto. – Uma sala com algumas plantas, duas ou três obras de arte, duas poltronas e um paciente. Eu seria um ótimo psicanalista.
Meu Deus, ele é uma piada ambulante, só pode, reprimo a ideia de me sentar de frente para ele e deixar todos os meus problemas fluírem como se não fosse nada demais. Eu jamais o imaginaria como psicólogo. Muito provável que a personalidade dele se encaixaria perfeitamente como o trabalho em hospícios.
– É uma alternativa bem distinta, por assim dizer. Além de colecionar arte e conquistar os pódios nas corridas que estão por vir, qual o seu maior objetivo?
– Há um mundo de culturas e histórias que eu ainda não explorei e pretendo fazê-lo muito em breve. Não há nada mais belo do que reconhecer que talvez eu tenha a visão errada de muitas narrativas que me foram contadas.
A leveza da entrevista permanece mesmo quando os tópicos mais pessoais acabam e eu passo para as perguntas mais estratégicas sobre o Gael Carpentier piloto e sua vida na Ferrari. É monótono e previsível: ele não me conta muito sobre a dinâmica do time, rasga alguns elogios para Ziwak mesmo tendo uma certa repulsa do ex piloto e se reserva ao direito de manter o suspense para o resto da temporada.
– É isso, amantes da velocidade e das pistas. Obrigada, Gael, pelo seu tempo. Todos os ouvintes da USN estão torcendo por você. Que a sua primeira vitória não tarde a chegar.
Desligo os microfones e expiro alto.
– Acabamos por hoje, eu acho. – Desligo o meu notebook e puxo o microfone da frente de Carpentier. – Não, se você ficar entre os dez primeiros eu ainda tenho que entrevistá-lo.
– Você ainda acha que isso tudo é uma punição eterna?
E a postura dele muda como se eu tivesse desligado o holofote. Eu posso ter desligado a gravação no meu notebook, mas meu microfone ainda está gravando a nossa conversa – Eric não me deixa esquecer de juntar alguma prova capaz de me livrar desse contrato maldito.
Gael Carpentier estica suas longas pernas e apoia seus braços tensos nas cadeiras ao redor. Ele está tão acostumado a ter o mundo ao seus pés que me aguentar é um pesadelo.
– Sim. Eu não faço podcasts ou trabalho com o formato ou ideia que o seu assessor me ligar propondo. Eu sou uma jornalista de esportes com foco em fotografia, se você ainda não se deu conta – a minha mochila quase cai do sofá com meus equipamentos. – Quando você se cansar de mim, eu tenho certeza que qualquer um assumiria meu lugar aqui facilmente. Talvez se torne menos maçante para ambas as partes.
– Você está irritada?
– Não, claro que não – confiro se peguei tudo e jogo a alça da minha mochila sobre o ombro. – Seu assessor disse se eu precisava falar com ele antes de ir?
– Ele teve que voltar ao hotel para resolver um problema. Eu o aviso que tudo ocorreu dentro do previsto.
– Não derrame elogios demais para mim ou ele desconfiará. – Dou passos determinados para a porta e estendo meu braço para ir embora da minha cela.
– Você realmente se acha tão imponente e inabalável, Perrie? – ele se levanta e se aproxima.
– Eu deveria me ajoelhar e pedir perdão por ter me defendido naquela noite? – viro-me com pressa para encará-lo e deixá-lo entender que não o temo. – Eu já lhe disse, isso nunca vai acontecer. Eu não tenho a facilidade que pessoas como você têm, Enric, então eu saio por aí como se ninguém pudesse pisar em mim porque eu não mereço estar na sola de seus sapatos. – Meu peito se infla, minha respiração se torna superficial. – Quem precisa descer do pedestal é você.
Ele pisca. Palavras não podem ser jogadas entre nós agora: um passo em falso dele e eu posso sair desse contrato ridículo. Eu posso acusá-lo de tudo, eu não sou a merda da vilã dessa história. Se ele não sabe admitir que errou, que não pense em armar mais problemas para mim. Eu farei as entrevistas, porém não vou rastejar por pena.
Suas pálpebras se fecham e suas íris verdes ainda tentam me convencer do contrário.
– Guarde seu charme para os outros, Enric. Eu estou indo. Tenha uma boa corrida.
Abro a porta e, antes de fechá-la, ouço-o dizer:
– Até logo, Pêrrí.
– Do que você me chamou? – não posso evitar, meu corpo já está de volta à sala que eu acabei de deixar e eu estou pronta para socar Carpentier bem no olho.
O sorriso que repuxa seus traços afiados me irrita tanto, como se ele não tivesse nada a temer e fosse um prazer para ele me ver assim. Irritada, exausta das baboseiras dele, doida para socá-lo.
– Gael, você não disse se vai ao baile ou não!
Ziwak adentra na sala e a tensão se vai por poucos segundos. Ele olha de Carpentier para mim, processa a cena da maneira que melhor entende e dá um passo para o lado.
– Tenha uma boa corrida, Carpentier. Ziwak – cumprimento-o e saio.
++++++
– Toque esse diálogo no funeral do Carpentier – Luca me devolve os fones de ouvido e sorri. – Caramba, Perrie, eu não sabia que você era capaz de ser tão cruel assim.
– Menos, Luca. – Guardo meu notebook e começo a minha preparação para registrar a corrida de classificação. – Nem quando eu estou a um fio de estourar, o cara não reage.
– Ele é frio, calculista, cínico... todas as boas características de um piloto.
– Você entendeu do que ele me chamou quando eu estava para sair da sala?
– Ele falou o seu nome. – Meu amigo me encara como se eu fosse idiota. – Como assim você não entendeu?
– Não, ele com certeza me xingou em francês.
– Presta atenção aqui. Perrie – isso eu entendo porque todos parecem gostam de gritar meu nome. – E Pêrrí.
– Paris?
– Não, não. Pêrrí. Ele está arrastando seu nome em francês. Acho que é a jogada dele contra o Enric. – Luca ri. – Vocês brigam como duas crianças.
A sala de imprensa é bem próxima a linha de largada e nós temos uma visão limpa para as equipes do pit trabalhando do lado de fora dos boxes. Luca e eu temos a melhor mesa, no canto esquerdo da varanda, bem onde ainda existe um pouco de sombra.
– O Ziwak viu tudo. – Encaixo a lente da câmera e reviso as configurações. – Por que eu não posso ter um minuto de paz quando se trata do Carpentier? Ele me fez observá-lo quase nu.
– Nu? – meu amigo grita, mas ninguém o entende completamente porque a agitação nas arquibancadas é absurda. – O que você está escondendo de mim, Perrie?
– Você não prestou atenção quando eu disse que cheguei na sala, arrumei meu equipamento e ele saiu do banho praticamente nu para buscar as roupas?
– Praticamente nu não é nu! Preciso desenhar isso para você entender? E o que mais aconteceu? – ele se debruça sobre a nossa pequena mesa e apoia o queixo nas mãos. Uma vez fofoqueiro e curioso, para sempre fofoqueiro e curioso.
– Ele se virou para pegar as roupas, a toalha estava só na parte da frente e, sei lá, eu vi a bunda dele enquanto ele pisava mais para frente com uma das pernas.
– Repete.
– Repetir o que? Ele se virou e eu vi a bunda dele.
– Mas ele foi para o lado, não foi? – ergo uma sobrancelha para ele. – Ele abriu as pernas, não abriu?
Aceno positivamente e Luca grita. Eu coloco as minhas mãos sobre a boca dele e olho ao redor. Agora sim todos estão nos encarando e eu me pergunto se uma queda seria capaz de me poupar da vergonha que meu amigo me faz passar. Espero ele se acalmar antes de liberá-lo.
– Perrie, feche os olhos. Por favor, faça o que eu mandar – bufo. Não sou capaz de ganhar de um Luca desesperado por alguma informação que eu não reparei. – Imagine o momento em que ele pisou para pegar as roupas, o que você vê?
– A sala branca, um piloto sem pudor nenhum e a bunda dele.
– E o que mais?
– Como assim, Luca? Ele mal estava fazendo questão de esconder e...
– Você é lerda demais! Você viu o tamanho daquele homem?
– Sim, ele é alto, mas e daí?
– Eu desisto de você! – ele pega o celular e, por alguns segundos, finge que está bravo comigo. – Perrie, você teve a chance de ver se o Carpentier tem um câmbio muito grande.
– Do que você está falando?
– O câmbio mecânico, a transmissão manual. – Ele se aproxima e sussurra. – O pênis dele.
– Luca Anderson, cale a sua boca se você pretende chegar vivo ao hotel!
Não me permito continuar com o assunto de Luca. Fecho a minha boca grande, engulo todos os xingamentos que eu poderia usar e escondo-me atrás da minha câmera. O pit da Ferrari está energético, mas não vejo nenhum dos pilotos por ali. Seus carros estão sendo preparados, os técnicos conferem todos os últimos detalhes.
Quando a corrida começa, a última coisa em que eu penso é em Carpentier e a transição de sua postura durante a entrevista. Será que eu consegui atravessar uma das barreiras que ele levantou?
E se eu consegui, por que diabos há uma barreira ali?
———
Amantes da velocidade,
Prontos para as emoções que virão? Não quero dar muito spoiler, maaaaaas o circo vai pegar fogo.
E aí, sacaram o Pêrrí? É um jeito francês de dizer Perrie que o Gael pode ou não usar para irritar a nossa jornalista favorita.
Caso queiram entender como acontece a pronúncia do Gael, tem um link no comentário aqui.
Lembrem-se de ficar em casa, ok?
Amor,
Isadora — Gorro Vermelho
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