CAPÍTULO DOIS
– Você já sabe da novidade? – Luca deixa seu copo d'água ao lado de seu notebook e dispara seus olhos escuros para os meus com duas sobrancelhas erguidas.
– Descobriram que foi você quem vazou as fotos de ontem? Porque eu já sabia – beberico meu café e volto a digitar.
As mesas estão lotadas de jornalistas. É a primeira coletiva, o burburinho me atinge como uma brisa fresca. Cada emissora tem seu espaço para estudar uma pergunta que pode ou não ser selecionada. A batalha já começou e, se pudessem, alguns nos atropelariam vinte vezes para conseguir todas as exclusivas.
– Você não deixa passar uma, Perrie! – Luca se joga na cadeira ao meu lado. – O novo piloto da Ferrari desembarcou no início da semana, mas eu não o vi na festa. Olhe o dossiê que eu lhe encaminhei.
A preparação para a temporada envolve horas de pesquisa sobre os pilotos, suas equipes e estratégias. Um piloto novo criaria um caos em todas as pautas. Abro o e-mail de Luca e não posso evitar as palpitações do meu coração e boca seca quando meus olhos correm pelas linhas dos recortes de sites esportivos.
NOVA APOSTA DA FERRARI DESEMBARCA NA TERRA DOS CANGURUS
O francês Gael Carpentier, de 23 anos, vem de uma sequência de vitórias nas categorias de base pronto para sua primeira temporada na Fórmula 1. Assumindo o lugar do veterano Victor Ziwak, Carpentier desembarcou em Melbourne, Austrália, depois de semanas se reunindo com sua nova equipe em segredo.
Ziwak assume agora seu lugar como consultor da equipe e prevê muitas surpresas logo na primeira corrida. "Ele [Carpentier] é um garoto muito experiente mesmo com a pouca idade. Suas escolhas na pista são arriscadas, mas inteligentes" comentou em uma recente entrevista a USN. A equipe da Ferrari deve oficializar o anúncio na coletiva de imprensa que ocorre nesta semana.
– Você só pode estar de brincadeira com a minha cara.
– O que foi? Já sabíamos que o Vitor se aposentaria, não há nada de surpreendente ou complicado no currículo e...
– Ele estava na festa.
– Bom, todos estavam. Eu posso não tê-lo visto porque carne fresca sempre chama mais atenção dos outros.
– Luca, eu derramei gin de propósito nele.
– Você o que?! – meu colega quase dá um pulo da cadeira. – Nosso combinado envolvia você entrevistar os pilotos pós corrida e esse cara não pode ficar de fora da lista!
– E eu não sei? Merda, a USN vai acabar comigo, o Cameron vai me matar.
– Calma, talvez não seja tão ruim assim... talvez ele nem se lembre mais do ocorrido.
– Não acho que ele vá se esquecer da mulher que estragou seu terno e orgulho.
– Eu posso fazer a coletiva hoje, mas você vai ter que pensar em como se desculpar com ele. – Luca está sussurrando e falando consigo mesmo, atrás de um plano para consertar algo que um idiota causou a si mesmo.
– Ele foi um escroto comigo! Eu não sou paga para ouvir comentários machistas! O errado da história é ele!
– Mas, Perrie, nós não estamos aqui a passeio! Viemos trabalhar e esse cara é a nossa mina de ouro. Precisamos da simpatia dele.
– Você precisa, eu estou fora. Posso entrevistar todo mundo, menos ele.
– Meu Deus, eu mando a cesta de flores no seu lugar. Melhor, vou comprar alguns chocolates australianos para parecer menos desesperado. Tudo o que você precisa fazer é entrevistá-lo! O seu rosto fica mais bonito nos vídeos e todo mundo sabe disso.
– Cale a boca antes que eu corte a sua língua fora – desisto de encarar a expressão assustada de Luca e volto minha atenção para o notebook. – Eu não farei nenhuma entrevista com ele, como retribuição ao seu tempo, eu cuidarei da edição de todas as matérias pela temporada.
– Este acordo está começando a ficar interessante.
Bufo, jogo a cabeça para trás e assopro uma mecha do meu cabelo para longe do alcance da minha frustração.
– Pedirei a Harriette para fazer aquele casaco que você não conseguiu comprar.
– Em vermelho, por favor.
– Achei que a sua cor favorita fosse laranja.
– Ainda é, mas eu quero andar por aí com a cor do piloto campeão.
++++++
Luca está na primeira cadeira da sala da coletiva, registrando tudo com sua caderneta e guardando os detalhes com seu gravador de bolso. Cada equipe tem vinte minutos para expor suas expectativas e responder algumas perguntas. Sempre há muito otimismo na primeira parte da temporada.
A Ferrari é a última a falar com a mídia hoje. E está atrasada. Estrelismo está no sangue, não estou surpresa.
Saio do salão com a câmera pendurada no pescoço. A mesa de coffee break comum não foi reabastecida depois que o grupo de jornalistas enlouquecidos se atirou para enfiar algo em seus estômagos retorcidos. Passo pelas portas duplas no final do corredor e mostro meu crachá para o segurança. Puxo algumas uvas da bandeja mais próxima e abro uma garrafa d'água agradecendo pelos privilégios que a USN tem nos eventos veteranos. Os sussurros de empolgação atravessam as finas paredes, é hora do grande espetáculo. Engulo as frutas, ligo a câmera e corrijo o meu crachá.
– Droga! Cuidado por onde anda – sibilo para quem quer que tenha esbarrado em meu corpo enquanto eu checava as configurações.
Ergo meu olhar além do logo da Ferrari nas costas do desconhecido. Por sobre seu ombro, nossos olhos se encontram e um reflexo de raiva brinca em seus olhos verdes. O assessor pede para que ele entre e a briga eminente se apaga.
Corro para dentro do salão e registro a entrada fria de Carpentier. Mesmo com os aplausos, não há nenhum sorriso para os jornalistas. Seus olhos vagam, mas não me encontram já que estou escondida atrás da minha câmera. Seu maxilar trava ao ouvir seu nome sair da boca de Vitor Ziwak, seus olhos verdes guardam admiração pelo veterano. Mas, ainda sim, nenhuma simpatia por nós, apenas seu ego estúpido preenchendo a sala.
Eles pulam a introdução da equipe. Todos estão muito fervorosos, carne nova sempre deixa os jornalistas malucos e os assessores loucos por divulgação.
– Luca Anderson, do Chicago X. Qual a perspectiva da Ferrari para a temporada? Honan não se destacou na temporada passada e um novato não é a melhor escolha para o Grand Prix de 2020.
– A escolha de Carpentier para a temporada partiu de mim – Ziwak toma os olhares e lentes para si. Sua pose dura se suaviza para algo mais paternal. – Não é um tiro no escuro ou uma aposta vazia, sabemos os riscos, mas todos precisamos de uma primeira chance antes de alcançarmos o topo.
Já imagino a postura de Luca, sua caneta batendo contra o papel e sua face enrugada por uma resposta tão vazia.
– Arthur Stonegate, da LA Sports. De acordo com fontes confiáveis, Carpentier foi flagrado dirigindo alcoolizado. A Ferrari não tem medo de que seu piloto seja seu maior concorrente e inimigo nas pistas?
– Se eu tivesse sido acusado de alguma coisa, o mundo inteiro saberia. – Carpentier está zangado. – Não sou uma estrela qualquer para alimentar vocês com fofocas, quero minhas manchetes de vitória mais do que qualquer um. Eu não estou dedicando o meu tempo precioso em uma sala com um bando de idiotas que mal sabem escrever uma matéria.
Ele se levanta em uma onda de raiva e deixa a sala. O assessor o segue. Os múrmuros se intensificam. Ziwak pede por silêncio e, para evitar o elefante na sala, por mais perguntas.
E como ótimo atores, os jornalistas se calam enquanto seus dedos digitam a notícia das próximas horas.
++++++
– Quem você acha que leva o primeiro lugar?
Luca e eu estamos no meu quarto dividindo uma pizza margerita quando a pergunta clássica da noite anterior à primeira corrida surge.
– Rambert é o meu favorito para a temporada. Ele está no auge.
– Acho que colocarei as minhas fichas no Carpentier, ele é selvagem – meu amigo me passa seu celular com alguns dos melhores momentos do novo piloto rodando.
– Só por conta do ego dele? Sério, não vi nada demais nas corridas dele. Homens são babacas por natureza mesmo. – Deixo a pequena tela de lado. E daí que ele é excepcional? Eu não ligo.
– Assisti a todas as corridas anteriores, até as amadoras. O homem sabe o que faz na pista.
– E eu com isso?
– Deus, Perrie, por que você sempre tem que ser tão mal humorada?
– Talvez porque eu tive que correr mais do que qualquer homem para conseguir uma entrevista exclusiva, para conquistar um salário decente em um ambiente machista e para fazer tudo isso em menos da metade do tempo que a primeira mulher do ramo conseguiu. – O queijo escorre pela minha fatia e eu rio. – O mundo é muito mais complicado para mim do que para você.
– Será que quando eu sair do armário publicamente eles irão me demitir?
– Se o fizerem, eu sou a primeira a incendiar aqueles escritórios estúpidos. – Mordo um pedaço da massa robusta e sorrio. – Dois anos ouvindo que somos um casal muito bonito e contando. Serei a madrinha do seu casamento, certo?
– Só se Harriette produzir nossos ternos.
– Achei que fossemos amigos.
– E somos. Mas eu vejo uma troca mútua, sua irmãzinha conseguiria alguma publicidade do evento.
– Porque você é tão famoso quanto esses pilotos. Sei bem.
– Talvez eu e o Carpentier nos tornemos grandes amigos até lá e ele te faça companhia na entrada dos padrinhos.
– Você é tão maligno e interesseiro que chega dói.
Descanso meu corpo e estômago cheios de pizza na pilha de travesseiros e fecho os meus olhos. Luca é incrível, mas ele não me entende como meu padrasto.
Minha mãe não se casou com meu pai e muito menos me contou algo sobre ele antes de morrer. Quando eu tinha quatro anos, ela trouxe Jefferson para nossa casa e eu achei que eles eram apenas amigos. Todo o contexto de padrastos ruins não aconteceu: Jeff se casou com a minha mãe no final do verão daquele ano, Harriette nasceu... e perdemos a minha mãe no meu aniversário de onze anos.
Acidente de carro, aquele bom e velho clichê do motorista bêbado em alta velocidade num cruzamento. Ela ficou em coma por alguns dias antes dos médicos decretarem que ela teve morte cerebral. Fizemos o que achamos que ela gostaria: deixamos os médicos desligarem os aparelhos e doamos os órgãos.
Vendo isso agora, parece uma história fácil de se superar. Talvez a minha relação com carros em alta velocidade não seja tão boa quando estou dentro deles. Do lado de fora, eu posso assistir a tudo. Meus olhos não se fecham mais quando colisões acontecem, mas ainda penso na minha mãe quando as consequências são fatais.
– Você tem certeza que vai conseguir aguentar essa temporada, Perrie?
– Pergunta isso por causa da minha mãe, da minha família ou do meu temperamento?
– Todas as alternativas. – Ele se deita ao meu lado. – Você está ligando para eles diariamente?
– Mandando algumas mensagens e fotos, o fuso horário não é o melhor neste momento. – Sacudo os ombros. – Eu vou ficar bem, sério. A reta final da temporada passada foi complicada por outros motivos, confie em mim.
– Ok, eu confio em você. Agora, se me der licença, eu vou tirar um cochilo enquanto você prepara as câmeras para a primeira corrida.
Luca faz o que promete: seu corpo enorme se petrifica na cama do meu quarto. Suas longas pernas ocupam mais do que o aceitável do meu espaço, então eu pulo do meu lugar, ligo meu notebook e diminuo as luzes para deixá-lo descansar.
Assim como estar longe da família é complicado para mim, Luca abriu mão de vários relacionamentos por conta do nosso tipo de trabalho. Temos que viajar e não podemos dizer não. Muitos caras tiveram a coragem de abandonar Luca enquanto ele estava fora por conta do trabalho. Babacas, eu sei, homens continuam sendo idiotas mesmo se eles forem gays.
Fecho a porta do banheiro, ligo o chuveiro na temperatura mais elevada o possível e tiro o roupão que eu trouxe. Deixo a água tirar a fuligem do meu corpo, uso um dos sabonetes orgânicos que Harriette me presenteou no Natal para sumir com o odor de gasolina e respiro fundo.
O espelho está embaçado quando termino de esfregar toda a sujeira para fora. Eu não mudaria de nicho esportivo nem por um milhão de dólares hoje, mas os resíduos dos bastidores são impossíveis de evitar. Esfolio o meu rosto com mais um dos cremes de Harriette e rio quando percebo que pareço a própria Bruxa Má do Oeste.
Volto para o quarto, levo meu notebook para a cama e empurro Luca com meus pés. Ele resmunga, boceja, mas não abre o olho para decidir que ele precisa ir para a própria cama. Edito mais algumas fotos que não chegaram a ser escolhidas para a cobertura de hoje e envio-as para o site de vendas. Nem todas as emissoras podem mandar fotógrafos para acompanhar as corridas, nem todos os fotógrafos são como eu... Bem que Luca me disse, antes de aceitarmos nossos empregos atuais, que eu deveria largar tudo para seguir apenas a fotografia.
Apenas as fotos não pagariam as minhas contas e me realizariam pessoalmente.
Meu e-mail indica que uma das fotos foi adquirida e o comprador anônimo ofereceu dez vezes o valor que sugeri por ela. Abro o site rapidamente para conferir se não subi alguma foto errada e seguro a risada quando me dou conta: a foto de Carpentier saindo de seu carro, tirando o capacete e rindo ao saber que conseguirá largar entre os dez primeiros, mesmo com a pole position ainda estando longe de seus dedos.
Envio um e-mail ao comprador agradecendo pela preferência – e a quantidade absurda de dinheiro por um mísero clique. Confiro se esvaziei meus cartões de memória, guardo-os em seus slots e desligo o notebook. Já passa do meu horário habitual de sono, ou seja, ainda estou sofrendo com resquícios do jetlag.
Lavo meu rosto e visto meu pijama. Ajoelho-me no que restou da minha cama e cutuco meu amigo.
– Ei, Luca, chega um pouco para lá. – Seu resmungo é horrível e eu preciso tentar de novo. – Luca, sério, eu preciso dormir.
– Deite aqui logo e não reclame, Perrie. Não é como se não tivéssemos dividido a cama antes. – Ele bate no colchão e exibe um sorriso irritante. – Vem logo, eu estou muito cansado.
Antes dos hotéis caros, dos quartos com duas camas e dos voos em horários diferentes, Luca e eu dividimos muitas sonecas espremidos nos aviões e ônibus, dormimos na mesma cama. Arrisco dizer que ele é o meu melhor amigo desde a faculdade – as brigas e cobranças às vezes nos afastam por, no máximo, duas horas – e eu sei que ele é gay desde o primeiro dia. Foi estranho nas primeiras noites, mas nos acostumamos.
Deito-me ao seu lado e não reclamo quando sou usada de urso de pelúcia. Acho que todos nós sentimos falta de alguém, afinal das contas.
Caio no sono e, na manhã seguinte, Luca não está mais aqui.
Hora de me preparar para a corrida.
———
Olá, queridos leitores!
Eu fiquei bem feliz com a resposta de vocês ao primeiro capítulo e, juro, estou me segurando para não publicar tudo o que eu já tenho escrito. Estou na reta final do semestre, então é uma correria sem precedentes que me impede de escrever e revisar.
Explicações a parte, o que estão achando da história? Sintam-se à vontade para comentar aqui ou nas minhas mensagens privadas!
Isadora — Gorro Vermelho
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