Nove
ANTES DE MAIS NADA...
Tem livrinho novo na área!
Se chama INEVITÁVEL e já está disponível aqui no meu perfil. Apesar de ainda não ter uma data de estreia, adicione ele na sua biblioteca para não perder futuras atualizações! Bjinhos e boa leitura. S2
“A verdade está escondida nos seus olhos e está pendurada na sua língua, apenas fervendo no meu sangue.”
Paramore | Decode
25 de julho de 2000,
terça-feira.
O Made's Burger está lotado quando adentro o local à procura de Emma Rei. Avisto seus cabelos loiros por trás do cardápio chamativo e colorido da lanchonete. Seus olhos azuis vêm de encontro aos meus e ela acena, apontando para uma latinha de refrigerante de uva sobre a mesa. Estreito os olhos, não é bem a pessoa que eu esperava que me contasse sobre as novidades dos últimos dois anos, mas ninguém além dela se disponibilizou para me dizer a verdade, então preciso dar uma chance as suas tentativas de me deixar confortável em sua presença. Afinal, seu sorriso animado e doce indica que a sua companhia não é tão intolerável como eu havia pintado em minha mente.
Caminho até a última mesa, um pouco escondida atrás do palco improvisado de karaokê e de algumas folhagens artificiais. Felizmente, ninguém está disposto a cantar hoje – assim, poderei prestar atenção em nossa conversa. Emma não está maquiada como ontem a noite; na verdade, parece que acordou há poucos minutos e veio diretamente para cá. Usa um shorts jeans escuro com uma camiseta larga do Tom & Jerry, e para completar seu estilo despojado esta manhã, seus cabelos praticamente brancos estão amontoados no topo de sua cabeça. Sorrio ao parar em sua frente, jogando minha bolsa no banco estofado vermelho ao meu lado e largando as chaves do meu carro sobre a mesa — ele chegou hoje de manhã, para a minha extrema felicidade.
— Como você sabe que o meu refrigerante favorito é o de uva? — Indago, unindo as sobrancelhas ao abrir o lacre da minha latinha gelada.
— Eu contei — A voz de Helena chama minha atenção. Está de pé ao lado da nossa mesa, vestindo o uniforme xadrez característico do Made's Burger e calçando patins branco. Ela retira um bloquinho de anotações do avental, segurando uma caneta entre os dedos.
— Você trabalha aqui?
— Comecei ano retrasado — sorri, orgulhosa. — É razoavelmente perto de casa e até que paga bem — balança os ombros. — O que vão pedir?
— Quero dois hambúrgueres. Um de frango e outro de cheddar duplo. Quero uma cestinha média com batata-frita e nuggets — Emma lista com os dedos, enquanto Helena corre com a caneta no papel. — Você pode pedir o que quiser. É por minha conta!
— Quanta generosidade — sorrio, dando uma breve conferida no cardápio. — Vou querer um hambúrguer triplo com molho barbecue e uma cestinha igual a da Emma.
— Misericórdia — Helena arregala os olhos. — O pedido de vocês chega em torno de quinze minutos — anuímos e ela se retira, deslizando sobre os patins.
— Desde que eu cheguei aqui… — arranho a garganta, ganhando a atenção da loira em minha frente. — As pessoas têm me perguntado se estou bem. Eu digo que sim, mas na verdade não estou. Então… podemos pular essa parte?
— Como quiser — Emma levanta as mãos na altura do rosto, concordando. — Mas ainda sim, quero saber como foi ter visto todo mundo outra vez?
— Foi triste e bom ao mesmo tempo. Fico feliz em saber que estão todos bem e triste por não fazer mais parte da vida deles — solto uma leve risada sem humor, encarando os sachês de mostarda. — Mas é bom estar de volta.
— O que te fez voltar? — Pergunta, curiosa, enquanto ingere sua Coca-Cola light. É meio contraditório se comparar com seu pedido, mas decido ignorar.
— Meu amigo Dalton. A saudade que senti das pessoas daqui — fecho os olhos, engolindo as lágrimas. — A morte da minha avó.
— Oh, sinto muito, Ana — seus ombros caem para baixo e ela assume uma expressão banhada de compaixão.
— Tudo bem. Já passou — sorrio, tentando parecer convincente como estou habitualmente acostumada a fazer. Diante de seu olhar apreensivo, emendo: — É sério — faço uma cara de tédio, vendo-a apertar os cílios longos em minha direção. — Não precisa fingir se importar, Emma.
— Não estou fingindo, estou realmente preocupada com você — solta um suspiro, coçando a testa. — Está perdida, afrontando um Scott Summer muito diferente do garoto que você deixou para trás.
— É mais um daqueles avisos de “fique longe dele para o seu próprio bem”? — Faço aspas com os dedos, arrancando um revirar de olhos da parte dela.
— Sim, é um desses avisos. Mas dessa vez não envolve também meus sentimentos por Scott, pois não sinto mais nada em relação a ele — revela, cruzando os braços sobre a mesa. — Isso tem a ver com você e o quanto ainda pode se machucar ficando na mira dele…
— Emma — a interrompo, rindo. — Não tenho a mínima intenção de ficar perto dele ou qualquer coisa do tipo, mas, se por um acaso acabarmos no mesmo ambiente juntos e ele vier me provocar, eu não ficarei calada escutando todas as merdas que ele se acha no direito de me falar!
— Caramba! Você pode me deixar terminar? — Relutante, consinto. — Como eu estava dizendo, isso tem a ver com você e o quanto ainda pode se machucar ficando na mira dele sem saber a verdade. O ódio de vocês é sem sentido e causado por terceiros. Percebi isso ontem no pequeno showzinho de vocês dois, pela forma como você destilava sua raiva pra cima dele como se não soubesse de nada.
— Bem… — relaxo as mãos sobre minhas coxas, pronta para ouvir qualquer coisa que saia de seus lábios. — Então me conte a verdade. Estamos aqui para isso.
Emma Rei me analisa com seus olhos azuis cristalinos, como se suas próximas palavras fossem capazes de causar a terceira guerra mundial dentro de mim. Naquela altura do campeonato, eu poderia encarar um furacão de escala cinco e, ainda assim, suportaria enfrentar mais uns vinte tsunamis e uns dez terremotos.
Minha vida é repleta de tempestades, mas eu sempre resistirei firmemente a cada uma delas.
— Na noite da nossa formatura, eu e minha mãe fomos presas, assim como Scott e o pai dele. Felipe e o tio também estavam envolvidos, mas conseguiram fugir e estão foragidos até hoje. Não vi você na delegacia, mas seus pais estavam lá — sua voz é calma, como se estivesse testando minhas armaduras antes de lançar as bombas. — Você se mudou quando?
— Uma semana depois — respondo, pegando minha latinha. Daria tudo para esse refrigerante de uva ser uma dose de tequila ou qualquer coisa que anestesiasse o baque que virá a seguir.
— Bem, duas semanas depois da formatura, Scott e eu fomos inocentados. Não tínhamos nenhum envolvimento com o esquema sujo de plágio e roubo de Kahill Summer — faz uma pausa, respirando fundo. — Scott é inocente, Anastásia. Assim como eu.
O quê? Não!
Não podia ser possível!
Meu corpo enrijece e meu mundo para. É como se o chão sob meus pés se abrisse e me sugasse diretamente para o seu interior. Sinto a bile subir em minha garganta, a incredulidade estampada nos traços do meu rosto. Meu coração se parte. Tudo desmorona pela milionésima vez. As peças do quebra-cabeça, aos poucos, vão finalmente se encaixando; mostrando a verdade escondida bem debaixo do meu nariz. Recosto-me no banco, massageando o espaço entre minhas sobrancelhas e tentando digerir as palavras de Emma; Scott e eu fomos inocentados. Como meus próprios pais foram capazes de me esconder isso? Como eles conseguem deitar a cabeça em seus travesseiros sabendo que eu acredito cegamente até hoje que fui usada pelo meu melhor amigo?
Sinto vontade de vomitar.
Engulo o sabor amargo da traição, sentindo a verdade raspar minha garganta como se eu estivesse engolindo o caule de uma rosa abarrotado de espinhos. Volto meus olhos ardidos e turvos pelas lágrimas até Emma Rei. Ela solta um suspiro cabisbaixo, parecendo tão chateada quanto eu.
Doía.
Doía descobrir que eu não podia contar com os meus próprios pais. Doía saber que as pessoas que mais deveriam me proteger de todo o mal, contribuiam para ele. Doía. Doía e doía como se milhares de flechas fossem lançadas em direção ao meu peito, dilacerando meu coração pouco a pouco.
— Sinto muito que você tenha ouvido outra versão dessa história. Sinto muito mesmo — lamenta e eu rapidamente pego alguns guardanapos, secando minhas lágrimas descontroladas e angustiadas.
— Na nossa formatura, você chamou o Scott de Tyler. Por quê? — Consigo perguntar com a voz vacilante.
— Scott realmente se chama Tyler. Esse é o primeiro nome dele; Tyler Scott — me explica e é como se uma luz estivesse acesa bem na minha frente, clareando minha mente e finalmente respondendo todas as minhas perguntas.
— Como vocês se conheceram? E se você é inocente, como acabou parando no meio disso tudo?
É a vez de Emma engolir em seco. A lanchonete parece diminuir, sufocando nós duas.
— Meu pai batia em mim e na minha mãe — sua voz é carregada de mágoa e repulsa. — Kennedy Summer, como ele se apresentou para nós no dia, encontrou a gente perto de um bar lá em Londres. Minha mãe estava indo atrás do meu pai e eu atrás dela, chorando e implorando que não confrontasse meu pai bêbado num bar repleto de caras agressores como ele. O pai do Scott parou o carro ao nosso lado, perguntando o que estava acontecendo. Eu não tinha ninguém para recorrer, então acabei contando a ele — Emma desvia o olhar, tentando manter a postura forte, mesmo mexendo em algo extremamente doloroso. — Na época, lembro-me de ter o visto como um anjo em nossas vidas. Ele deu um cartão para nós, disse que estava se mudando para o estado de Bellis e que precisava de uma secretária. Conversei muito com a minha mãe nesse dia e ela concordou em se mudar. Fizemos as malas e fugimos na madrugada seguinte, quando meu pai estava podre de bêbado desmaiado sobre o sofá da sala — inspira profundamente, voltando seus olhos molhados para mim. — Quando descobrimos as reais intenções de Kahill Summer, já era tarde demais. Estávamos aqui, tínhamos uma casa, eu estava em uma escola particular e… e minha mãe não queria voltar para a vida miserável que tínhamos — uma lágrima solitária escorre por sua bochecha e, sem perceber, também estou chorando. — Então ela concordou com essa coisa suja dele e eu tive que engolir calada. Minha única função era ficar quieta e não contar nada para ninguém, nem mesmo ao Scott. E assim o fiz — balança os ombros, bebericando seu refrigerante. — Me desculpe, mas às vezes, precisamos ser egoístas para o nosso próprio bem.
Levanto do meu lugar, dando a volta na nossa mesa e me sentando ao seu lado. Deslizo meus braços em volta de seu corpo, esquecendo completamente os olhares enviesados que ela me lançava no último ano do ensino médio, pois qualquer desavença que tivemos, ficou enterrada no passado. Emma me abraça com força e afunda seu rosto entre meus cabelos. Sinto-a soluçar baixinho, como se não suportasse relembrar das circunstâncias que levaram ela e sua mãe até essa cidade. Nesse momento, me arrependo de nunca ter me aproximado. A loira poderia ter uma personalidade um pouco questionável na época, mas eu não estava muito atrás dela para julgá-la.
No fundo, somos duas garotas com feridas de tamanhos, formas e em lugares diferentes, tentando costurá-las com o passar do tempo na esperança das cicatrizes serem um pouco menos dolorosas futuramente.
— Obrigada — agradeço, fechando meus olhos. — Por ter me contado a verdade — me afasto, pegando alguns guardanapos e secando suas lágrimas. — E sinto muito por tudo que você passou.
— Devo admitir que ver você secando as minhas lágrimas era a última coisa que eu esperava vivenciar na minha vida — confessa e nós duas gargalhamos, mudando completamente a atmosfera tensa que nos rondava a poucos segundos. — O que você vai fazer agora que te contei a verdade?
Amasso as folhas de papel, reflexiva.
— Não consigo descrever em palavras o quão magoada eu estou — sou sincera. — Meus pais realmente estavam me evitando nos últimos dias, mas eu não entendia o motivo. Nem sei como vou conversar com eles sabendo sobre tudo isso.
— Você está ficando na casa de algum deles?
— Sim, na da minha mãe — minha voz soa rancorosa.
— Olha, eu sei que você não me conhece tão bem e muito menos eu, mas se você não aguentar a pressão, pode ficar no meu apartamento — sugere.
— Meu amigo Dalton também está lá. Não posso deixá-lo sozinho.
— É melhor ainda! Pago o aluguel do meu apartamento com o dinheiro que recebo como dançarina no Red Snakes, assim como a luz, água, comida e ainda preciso juntar para pagar um bom advogado para a minha mãe. Se dividirmos o aluguel, ficará muito mais fácil! Você, eu e seu amigo sairíamos ganhando — sorri, como se essa fosse a ideia mais brilhante de todos os tempos. Também sorrio, pois ela é realmente tentadora. — Desde que seu amigo não seja um tarado e fique dando em cima de mim.
— Quanto a isso pode ficar tranquila, a fruta que nós duas gostamos o Dalton chupa até o caroço — Emma solta uma risada engraçada, imitando o ronco de um porco no final. Gargalho ainda mais, pois esse é o tipo de risada que faz qualquer um se contorcer em um ataque de risos.
— Então é perfeito! — Comenta após se recuperar.
— Quando eu arrumar um emprego, te aviso. Meu carro chegou de Paris hoje, então a partir de amanhã Dalton e eu vamos começar a largar currículos.
— Maick está procurando uma nova hostess para o Red Snakes. Uma das funcionárias pediu demissão ontem de madrugada — arqueia as sobrancelhas, sugestiva. — Antes que pergunte, você entraria no meu horário: das oito até a meia-noite. Da meia-noite até às quatro da manhã é o turno do Scott, então, provavelmente, vocês quase não se esbarrariam. Na maioria das vezes, quando Scott chega cedo, ele se tranca no escritório e não sai de lá.
É uma oportunidade excelente, mas estou hesitando como se estivesse prestes a encarar meu maior pesadelo, de uma maneira completamente diferente agora. São muitas coisas para processar em pouco tempo e, como se lesse meus pensamentos, Emma emenda:
— Sei que você tem muitas coisas para resolver agora, e talvez seja muita pressão, mas Snowdalle infelizmente não tem muitas oportunidades de emprego. Conseguir uma vaga é como achar uma agulha no palheiro! — Comenta calmamente e assinto, pois sei que é verdade. — Mas se você me disser agora mesmo que quer essa vaga, pode ter certeza que farei de tudo para Maick segurá-la até as coisas se ajeitarem para você.
Cogito. Com a verdade exposta de bandeja diante dos meus olhos, a imagem ruim e suja que eu havia pintado de Scott Summer nos últimos dois anos desapareceu no ar como fumaça. Agora, tudo o que eu enxergo novamente é o garoto sarcástico e doce por quem me apaixonei. Durante todo esse tempo, varri meus sentimentos por ele para baixo do tapete. Acreditei fielmente que eu o odiava, pois uma parte minha realmente sentia repulsa ao recordar de suas supostas mentiras. Contudo, eu sempre soube que a outra parte ainda o amava. Sinto medo dos sentimentos bons voltarem todos de uma vez só, com intensidade máxima e alastrando seu fogo ao meu redor como se eu estivesse presa em uma fogueira.
Vê-lo novamente após saber a verdade será um castigo impiedoso.
Engulo meu lado emocional.
— Tudo bem. Eu quero essa vaga.
Solto uma rajada forte de ar, inspirando o oxigênio puro do quintal antes de adentrar a mansão. Ao fechar a porta, sinto a poluição das mentiras invadir meus pulmões. A casa está silenciosa, exceto pela cantoria de alguém na cozinha. Largo minha bolsa no sofá, exausta de todas as formas possíveis, e caminho na direção do barulho. Me encosto no caixilho de madeira, observando Francis White cortar rodelas de tomates e pimentões animadamente. Me pergunto se ele sabe a verdade, ou se minha mãe também escondeu isso dele. Pela primeira vez na vida, o pensamento de que meu padrasto é bom demais para ela me ocorre. Fico analisando-o por cinco ou dez minutos, e somente quando ele termina de decorar a pizza é que seus olhos castanhos recaem sobre mim.
— Ana! — Sorri em minha direção. Parece radiante e feliz, então tento me esforçar para retribuir o gesto. — Há quanto tempo você está aí?
— Tempo o suficiente para ver você usando essa colher — pego o objeto, apontando para ele. — Como microfone em uma performance barata do Michael Jackson!
Assisto suas bochechas atingirem matizes avermelhadas e rio, achando graça de seu rubor ao ser pego no flagra cantando Billie Jean.
— Para a sua informação — pega a colher da minha mão, arqueando uma das sobrancelhas. — Fiz quatro meses de aula de canto quando eu tinha dezesseis anos.
— Só quatro meses?
— Minha voz não melhorou, então achei melhor me poupar da vergonha e desisti — solta um suspiro teatralmente cabisbaixo. — Me conformei que eu era simplesmente implacável em jogos de tabuleiro e segui minha vida. É uma pena para o mundo da música, pois eu garanto que se tivesse permanecido por mais alguns meses nas aulas, minha voz seria tão boa quanto a do Michael Jackson.
— Claro — concordo, como se fosse a coisa mais certeira do mundo. — Quem seria Michael Jackson, o rei do rock, perto de Francis White?
— Ninguém! — Respondemos em uníssono e caímos na gargalhada em seguida. — Gostou do visual da minha pizza? Peguei um dos cadernos de receitas da Bella e decidi preparar um jantar especial para nós quatro — meu sorriso se torna forçado e um tanto triste, pois não tenho a mínima intenção de jantar na presença de minha mãe hoje. — Aconteceu alguma coisa?
Francis estala os dedos em frente ao meu rosto, despertando-me de meu transe. Decido ir direto ao ponto, fazendo um joguinho para testar sua sinceridade.
— Scott Summer é realmente inocente, né? — A pergunta o pega de surpresa, mas seus olhos não vacilam e a resposta vem rápida:
— Claro. Por quê? — Meu padrasto fala naturalmente, como se a verdade estivesse mesmo bem debaixo do meu nariz esse tempo todo. Isso faz meu sangue ferver.
— Vi ele aqui ontem. Fiquei com medo de do nada ele decidir seguir os mesmos passos do pai — minto, apenas para não soltar totalmente o fio de esperança que me resta; o fio que não me faz ter repulsa dos meus próprios pais.
— Oh, não! — Ri, como se eu tivesse contado uma piada muito boa. — Scott é um garoto bom, sinto isso. Veio até aqui ontem pegar a roupa do desfile, pois seus pais precisavam de um modelo para substituir o que havia faltado. Scott não é modelo, mas…
Não o escuto mais depois disso, pois já estou saindo da cozinha com o inferno flamejando em minhas íris. Meu coração retumba em todas as partes do meu corpo, a adrenalina pulsando em minhas veias e me guiando até o escritório de Marina Green. Não estou raciocinando direito, apenas deixando que a raiva me guie pelo corredor extenso até o fim dele.
Até o fim das mentiras.
Até o fim dos resquícios do meu coração.
Até o fim da pequena conexão que eu achei que tinha com a mulher que me colocou no mundo.
Até o fim de uma relação entre mãe e filha.
Abro a porta de seu escritório – sem me importar em bater – e a observo atrás de sua mesa, concentrada em papeladas e tecidos. Nem na merda da própria casa deixa o trabalho de lado por um instante! Seus olhos castanhos se direcionam até mim sob os óculos empoleirados na ponta de seu nariz arrebitado. Ela os retira calmamente, se levantando e apoiando as mãos abertas em sua mesa de carvalho.
— Não te ensinei a bater na porta antes de entrar, Anastásia? — Sua voz é amarga. Céus! Quando minha mãe se tornou esse ser sórdido e sem sentimentos em minha frente? — O que você quer?
— Conversar — minha voz soa tão amarga quanto e comemoro internamente por conseguir me controlar.
— Estou…
— Ocupada? — Me afasto da porta, dando dois passos para frente e soltando uma risada banhada de incredulidade. — Está mesmo ocupada ou só está me evitando, mamãe?
— Não sei sobre o que você está falando, Anastásia — endireita a postura, voltando a se sentar. — Agora, se me der licença…
— Não! Eu não vou a lugar algum até você me contar o motivo de ter escondido de mim, por longos dois anos, que o Scott e a Emma eram inocentes!
Posso jurar que sua pele fica ainda mais pálida. As orbes surpresas passeiam pelo meu rosto e, aos poucos, se tornam embebidas pela cólera crescente em seu interior. Como uma vilã de desenhos animados, minha mãe sorri com os olhos, embora sua boca continue tensa em uma linha reta. O escritório se torna pequeno demais para mim, me estrangulando com seu silêncio.
— Não era uma informação relevante — diz, apenas.
Deixo escapar um riso de escárnio.
— Quem deveria decidir isso era eu. Quando perguntei a você, um mês depois de ter me mudado para Paris, se o Scott era realmente um criminoso, você me disse com todas as letras que sim, ele era e permaneceria preso na cadeia até que cumprisse sua pena! A troco de quê? — Inquiro, se passam dez segundos, a resposta não vem, minha ira cresce, então grito: — A TROCO DE QUÊ?!
Marina Green se levanta da poltrona com furor, dando a volta na mesa e parando a apenas alguns passos de mim. Seu rosto enrubesce, meu coração pulsa euforicamente dentro do peito e ela cospe:
— Não seja tola! Você teve uma nova chance em Paris. A chance de uma vida nova e de conhecer caras novos. Aquele miserável não teria nada a te oferecer! Talvez uma carteira de cigarros? Uma garrafa de Bourbon? Uma casa em cima de um bar sujo no meio do nada? — Ri. Se eu me esforçar, consigo ver o veneno escorrendo pelos cantos de sua boca. Meu estômago dá um giro completo. Não consigo acreditar nisso. — Eu poupei você de um relacionamento sem futuro algum, deveria me agradecer!
— Você está escutando as merdas que está falando? — Indago, cética diante de tudo isso. — Você veio de baixo também, mamãe. Nunca se esqueça disso. Você não nasceu nadando no dinheiro, muito pelo contrário! A One Enterprise Fashion foi construída com o salário mixuruca que você e o papai ganhavam vendendo pães e servindo gente rica e mesquinha como você é agora! Morávamos em uma casa pequena, que mal cabia um sofá de dois lugares na sala! — Vomito as palavras, me aproximando mais dois passos. Tamanha é a minha fúria no momento. — A fama está te apodrecendo! Você está se tornando uma mulher amarga e egoísta! Não sinto mais orgulho de você, sinto nojo e vergonha!
Meu rosto vira para o lado com violência, devido ao tapa estalado e carregado de ódio em minha bochecha. Minha pele arde e minhas lágrimas despencam como uma cachoeira; não pela ardência do tapa, mas por perceber no que minha mãe se tornou por conta do sucesso e do dinheiro. Agora, ela é o tipo de mãe que prefere ver a filha sofrendo, mas casada com um milionário, ao invés de vê-la feliz com um miserável. Massageio o lado do meu rosto atingido, mas não me afasto. Não cedo. Sustento seu olhar furioso, sem vacilar minha postura.
— Nunca mais levante o seu tom de voz dessa maneira comigo! Eu sou sua mãe!
— Mãe? — Rio, sentindo o rancor rasgar minha garganta diante da sua última frase. — Uma mãe transforma a formatura de sua única filha em um verdadeiro inferno? Uma mãe mente por dois anos sem se importar em como a filha lidaria com a verdade mais tarde? — Vejo-a engolir em seco, então continuo: — Você foi mãe quando eu saí daquele salão e vomitei na calçada? Você foi mãe nas noites que eu passei em claro chorando, achando que eu não era boa o suficiente e me perguntando o que raios eu havia feito para o universo jogar tão sujo comigo me colocando no caminho de uma pessoa que me usou de todas as formas possíveis? — A cada mísera palavra, meu coração se estilhaça e minha garganta dói. — Minha mãe desapareceu no dia da minha formatura. Essa pessoa na minha frente é uma desconhecida e eu só quero distância dela.
Espero receber outro tapa, ou outra frase que fará tudo dentro de mim ruir, mas nada vem. Marina Green respira fundo e apenas isso. Diante de seu silêncio, me afasto calmamente até a porta de seu escritório novamente. Meus dedos tocam a maçaneta fria de sua sala, assim como o coração dela, e antes de dar esse assunto totalmente como encerrado, mais palavras saltam da minha boca:
— E só pra constar, eu sou totalmente contra o casamento de vocês — seus olhos castanhos fervem em minha direção. — Você não merece o homem incrível que Francis White é. Você não merece nem mesmo o ódio dele, caso um dia ele te odeie. Você não merece nada. Nem de seu noivo, nem de mim e nem de ninguém. Nada disso estará ao seu lado se um dia parar na cama de um hospital, doente e velha — faço um gesto com meu indicador para a sua sala, seus papéis e os tecidos das roupas. — Se continuar assim, priorizando coisas vazias ao invés da sua própria família, vai acabar sozinha e sem o amor de ninguém. Quando morremos, não levamos nada para dentro do caixão, mãe. Pense bem nisso.
Dirijo por uma hora e meia até encontrar um motel na cidade de Darenwood. Minha cabeça está cheia, meu humor está péssimo e a única coisa que desejo no momento é dormir para esquecer por algumas horas esse dia. Estaciono meu carro em frente ao portão vermelho, desligando o rádio no mesmo instante em que Natalie Imbruglia canta "Nothing's fine, I'm torn".
Pois é, Natalie. Nada está bem e eu estou despedaçada.
Respiro fundo, limpando minhas mãos trêmulas e suadas em minha saia jeans. Eu nunca entrei em um motel!
— Olha só — Dalton me encara, fazendo uma bolha de chiclete e estourando-a em seguida. — Você me tirou da cama às dez horas da noite. Quero a suíte Big Super Luxo. É o mínimo!
Reviro os olhos, mas concordo no fim. Estendo minha mão até o interfone, sendo atendida por uma mulher presumivelmente simpática pela voz — já que os vidros escuros da pequena guarita impossibilitam a visão para dentro da recepção. Entrego nossas identidades para ela conferir se não somos menores de idade e recebemos a chave da nossa suíte. Me encolho no banco, completamente constrangida e aguardo o portão ser completamente aberto para nós. Tentamos encontrar um hotel, mas Snowdalle e Darenwood aparentemente receberam o maior número de turistas esse mês. Então, aqui estamos nós.
Dirijo até a suíte quatorze, como o chaveiro vermelho indica, e a garagem abre automaticamente.
— Será que treze pessoas neste exato momento estão transando nas outras suítes? — Dalton inquire, curioso. Aperto meus olhos, entrando na garagem mais rápido do que pretendia e lançando nossos corpos para frente.
— Por favor, não torne essa situação ainda mais constrangedora — peço, saindo do carro e abrindo o porta-malas. Meu melhor amigo me ajuda com a bagagem.
— Tenho absoluta certeza de que ninguém veio até aqui apenas com a intenção de dormir como nós dois — ele arqueia as sobrancelhas. Aciono o alarme do meu carro e travo o portão da garagem individual.
— Quem disse que nós vamos apenas dormir? — Meus lábios se projetam em um sorriso provocante, mas não demora muito tempo, pois começo a gargalhar diante da feição apavorada de Dalton Williams. — Nós vamos pedir pizza, porções e vinho! Podemos entrar na banheira e fofocar até o dia amanhecer! Não é tão ruim assim, vai?
— Com certeza. Minha primeira vez em um motel é com a minha melhor amiga e não com o meio-irmão dela. Com certeza, não é tão ruim assim — abro a boca, chocada.
Caminhamos até a porta de madeira ao nosso lado direito e coloco a chave na fechadura, destrancando-a. Adentro a suíte, completamente encantada com o tamanho e o luxo dela. Isso vai sair muito, muito e muito caro. As paredes são estofadas com couro sintético vermelho, as luzes são do mesmo tom e o teto é espelhado. Meus olhos se arregalam ao ver o formato da cama; redonda e imensa. Dalton vai direto para o cardápio em cima de uma mesa de canto e eu corro para o banheiro, completamente realizada ao ver a banheira de hidromassagem.
— Fala sério, olha o que tem no cardápio! — Dalton gargalha, se aproximando de mim. — Gel estimulante, dadinhos eróticos, pecado gostoso excitante — ele projeta o lábio inferior para baixo, parecendo pasmo. — Aqui diz que excita, esquenta e hidrata. Muito interessante — balança a cabeça positivamente, como se aprovasse os benefícios do produto. — Calcinhas e cuecas comestíveis — arregala os olhos, perplexo. — Tudo bem. A única coisa que eu conheço daqui é o preservativo — atira o cardápio em cima da cama, cruzando os braços e virando-se em minha direção. Estou tão boquiaberta quanto ele. — Vou querer uma pizza de calabresa e vinho. Estarei na banheira.
Acompanho com os olhos Dalton Williams se afastar e pego o cardápio novamente, indo até o telefone pregado na parede e passando nosso pedido para a atendente. Em menos de quinze minutos, nossa pizza e o vinho com as taças sobem por um pequeno elevador. Estou impressionada com a privacidade do lugar. Retiro minha blusa e a saia jeans, colocando meu pijama de seda e indo até o banheiro. Dalton parece uma criança curiosa e encantada com os sais de banho, despejando tudo que consegue dentro da água. Coloco nossos pedidos sobre uma mesinha de vidro ao lado da banheira e entro na água morna, sorrindo satisfeita com a temperatura perfeita.
— Beleza, você não me contou ainda o que aconteceu entre você e a sua mãe — ele estica o braço até a garrafa de vinho, servindo nossas taças e me entregando uma.
— Meus pais mentiram para mim — afundo ainda mais na banheira, brincando com a espuma e encarando o conteúdo da minha taça. — Sobre o Scott.
— Como assim?
— Pois é — solto uma risada sem humor. — Scott Summer é inocente. Aparentemente, minha mãe me deu uma nova oportunidade de encontrar caras ricos em Paris, ao invés de me contar a verdade e evitar todo esse sofrimento. A cabeça dela funciona de uma maneira completamente estranha — engulo em seco, tentando desmanchar o nó em minha garganta. — Desculpa te colocar no meio dessa tempestade.
— Não acredito nisso — murmura, espantado. — Você vai fazer o quê?
— Pensei em falar com o Scott sobre tudo isso, mas…
— Mas? — Encaro Dalton, soltando um suspiro pesado.
— Quando Scott foi preso e descobri que ele estava me usando, uma parte minha ficou aliviada.
— Aliviada? — Suas sobrancelhas se unem em confusão.
— Eu não fui uma boa amiga para ele, Dalton. Eu o usei, mesmo sabendo dos sentimentos dele por mim, eu o usei e descartei. Na minha cabeça, tudo bem ele ter me usado, já que eu também o usei de alguma forma — admitir isso é constrangedor, mas meu amigo não parece me julgar secretamente em sua mente. — Mas agora… ele é o herói da história e eu voltei a ser a vadia má.
— Ei, não pense assim! — Dalton deposita sua taça na mesinha, me fitando seriamente. — Você era ingênua e imatura na época. Não pode se culpar a vida inteira por erros que cometeu aos dezoito anos. Tipo, fala sério! — Ri, sacudindo a cabeça. — Antes dos trinta ainda somos jovens baderneiros com os hormônios à flor da pele, tentando se encaixar em algum lugar no mundo e pagando uma de adulto. Ninguém é perfeito, estamos todos propícios a falhar em algum momento da vida — sorrio diante da sua forma doce de falar, sentindo seu polegar acariciar o dorso da minha mão. — E sobre você ser a vadia má da história, a única vilã aqui é a sua mãe. Não tinha como você saber sobre isso estando a horas de distância daqui. Ela mentiu. Ela escondeu a verdade. Se sua mãe não tivesse mentido, provavelmente você teria voltado para ele.
— Sim. Eu teria voltado — limpo uma lágrima solitária, abraçando minhas próprias pernas. — Mas agora é tarde, Dalton. Scott está diferente e não é tão simples como eu gostaria que fosse. No final das contas, algumas palavras não são capazes de dissolver dois anos de raiva e angústia sobre mim.
— Um dia, vocês dois vão estar casados e com filhos. Eu vou olhar bem para a sua cara e dizer: eu avisei — gargalho, jogando espuma em seu rosto. — Aliás, quem te contou tudo isso?
— Emma Rei. Ela também foi presa, mas era inocente. Enfim, longa história — aspiro o ar profundamente. — E falando nela, provavelmente ficaremos no apartamento dela até ajeitarmos os papéis da faculdade e procurarmos um loft ou um apartamento para nós — meu amigo balança a cabeça, concordando. — Acho que nunca estive tão perdida.
— Com o tempo, tudo vai se resolver — sorri para mim, pegando a taça novamente e levantando-a para um brinde.
— Vamos brindar o quê?
— Seus dias ensolarados. De agora em diante, vamos dizer adeus às tempestades!
— Tempestades sempre voltam, Dalton — reviro os olhos, mas brindo com ele mesmo assim e bebo um gole.
— E você será resiliente, como a tatuagem em seu ombro diz, e enfrentará cada uma delas com maestria.
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