Mudança
Quando fitei o horizonte, contemplei o surgir de mais um alvorecer. Logo a luz cobriria a ilha da magia, iluminando mais um dinâmico dia de trabalho, estudo e lazer.
O nascer do sol naquele lugar era tão esplêndido quanto poderia ser, trazendo todas as cores, brilhantes, ao mesmo tempo suaves, exalando as vontades da natureza abençoada pelas mãos das tantas deidades que guardavam o chão sagrado conhecido como O Pomar. Aspirei ao aroma homogêneo da segurança daquele lugar longe do mundo dos homens, o mundo comum. Ali tínhamos nosso próprio tempo e espaço, assim como regras singulares.
Com os olhos agraciados pela presença dos primeiros raios de sol, já ouvindo os iniciais cânticos do dia, aspirei do profundo ar fresco e orvalhado, que harmonizava a coexistência pacífica e miraculosa de todas as pessoas habitantes da ilha. As Fadas do Ocaso tinham uma árvore apenas para si, onde dispunham de aposentos muito mais que confortáveis. Não eram luxuosos, no sentido de ostentar além do necessário, mas eram mais que suficientes para uma pessoa descansar com tranquilidade. Em um desses aposentos, eu, Diana Dandara, vivia desde muito tempo antes, quando era ainda outra pessoa. Advinda de um passado quase totalmente morto. Assim como as outras Fadas do Ocaso, meu sobrenome anterior fora substituído para que eu pudesse seguir adiante assumindo a vida que sempre deveria ter sido minha. Tornei-me Diana Dandara do Ocaso, ou Danda do Ocaso.
Quem escolheu o "Ocaso" para nós foi a senhora Élora Le Fey, Fada suprema da ilha, responsável pelas vidas que ali coabitavam. Segundo Élora - ela fazia questão de que a chamássemos pelo primeiro nome -, o ocaso era uma hora sagrada, que encerrava um dia para que a noite misteriosa pudesse deitar seu véu sombrio sobre o mundo. O ocaso tinha sua própria magia de iniciar um ciclo, assim como o alvorecer.
Apesar de Élora ser a senhora suprema, cada parte da ilha tinha sua organização, para que corresse bem. Dispúnhamos de uma comandante chamada Belladona, era quem nos direcionava aos treinos e cuidava de nossas necessidades.
Sentei-me na cama composta de folhas largas e macias que ao toque pareciam plumas, e após um bocejo preguiçoso, pus-me a esfregar os olhos. Quando levantei as pálpebras, vi meu reflexo no espelho, a estrutura desnuda. A pele negra como o chocolate com leite feito por Elizaberta - a chefe das cozinhas -, olhos grandes e castanhos, cabelos cacheados e de mesma cor. Nada demais à primeira vista. Eu gostava de mim, de toda aquela aparência que ganhei primitiva ao renascer e se tinha desenvolvido com o tempo, apenas um detalhe me causava ainda algum desgosto.
O Pomar recebia apenas mulheres e homens efeminados.
Recordei de minha chegada quando eu era outra pessoa, que então já não existia mais. Apenas aquele detalhe me fazia lembrar o passado, quando eu não habitava o verdadeiro corpo que a mim pertencia, quando estava aprisionada em um lugar sem grades, mas tão claustrofóbico quanto qualquer cela.
Minha prisão e eu fugimos de casa com a idade de treze anos, após tomar uma surra por usar o carmim de nossa mãe. Era uma ação que manifestava no físico todo meu desejo de liberdade, de viver plenamente, sendo aquilo que eu sentia... Que eu sabia que era. Não que fosse a maquiagem, mas eu sentia que era como aquelas pessoas que a usavam sobre lábios e bochechas, como um artifício para expressar algo que só a elas pertencia, e que, todavia, eu também compreendia. Mais que a dor de não poder usar o carmim, no coração de minha prisão senti a dolente pontada, manifestação física e genuína de minha dor. Quando as mãos ficaram trêmulas e a garganta seca, percebi que minha verdadeira prisão não era aquela pessoa, mas as convenções que seguravam a existência dela. Aquela pessoa tinha outro nome, ganhado no batismo em uma fé que ela nem mesmo escolhera, e com a qual nenhuma de nós concordava. Nada naquela vida refletia a verdade.
Toda a dor fez com que eu tomasse o controle do que tinha sido minha prisão, então me aproveitando disso, e da coragem que surgiu da mágoa, corri para o mais longe que pude a toda velocidade. Embrenhei-me em uma mata fechada e vaguei sem rumo, por dias, vivendo somente com a água que recolhia nas folhas de algumas plantas. As noites foram frias e os dias exaustivos, até que não consegui mais andar.
Quando Élora Le Fey me encontrou, eu estava febril, encolhida em posição fetal sobre as folhas secas do chão da floresta. Sentia que o sopro da morte já tocava meu rosto.
Com sua imensa sabedoria, e poder, Élora me resgatou tendo ciência exata do que fazer comigo. Dessa forma, me trouxe para Avalon. Segundo A Fada - assim chamavam a grandiosa Élora Le Fey -, eu era especial como aquelas que pertenciam a um dos destacamentos do exército d'O Pomar e ali teria um bom lugar onde viver. Dito e feito. Quando cheguei, quase desmaiada nos braços da grande Fada, fui levada direto para as Fadas do Ocaso, mulheres que assim como eu não tinham nascido em corpos condizentes com sua verdadeira identidade. A intenção de Élora não era me apartar, como se eu fosse estranha, mas me fortalecer, colocando-me com minhas iguais, que entenderiam meus sentimentos e cuidariam de mim até que eu pudesse ser introduzida às demais pessoas.
Em minha opinião foi uma decisão acertada, pois permitia que eu me sentisse confortável, distante de olhos que me encheriam pelo medo de julgamentos e condenações.
Enquanto me recuperava, percebi que perto de algumas eu tivera sorte na vida. Muitas daquelas mulheres foram maltratadas por anos, obrigadas a viver como homens, ver no espelho algo que não eram, sofrer violências, mutilações, tentativas de exorcismo e de suicídio, até que se encontraram com Élora. Depois de recuperada, fui apresentada às demais pessoas da ilha. Elas não eram terríveis como imaginei. Fiquei encantada com toda a magia do ambiente.
Fui informada de que existia ali uma flor muito rara, chamada de Muda-Carne. Alquimistas e botânicos, usando de toda sua engenhosidade, conseguiram fazer uma planta, cuja poção, administrada em doses certas, e no tempo correto, era capaz de mudar quase toda a estrutura das fadas, assim seus corpos reais se revelavam. Deram a mim o poder de escolha, mas eu já tinha escolhido quando fugi. Eu queria sair de minha prisão e tomar totalmente aquele corpo. Como citei, mudava quase todo o corpo. A poção conseguia fazer crescer partes no corpo, mas não era capaz de encolher outras. Magias que podiam fazer isso eram invasivas demais, então ainda não tínhamos uma opção segura. Muitas escolhiam se arriscar. Após muito refletir decidi que não precisava disso. Os alquimistas não paravam, suas pesquisas continuavam na busca de um meio para nos dar escolhas completas. Muitas de minhas pares, as que tinham maiores problemas com o detalhe, se prontificavam para ser cobaias. Eu não era dessas, apesar de não estar totalmente satisfeita. Eu podia viver com aquilo.
Levantei-me do colchão e vesti minhas roupas enquanto observava uma cicatriz que adquiri quando lutei na grande batalha de Lira. Foi meu dia de maior destaque em todo meu tempo de existência, eu me orgulhava dele. Fui treinada como uma guerreira de Avalon, para suportar as batalhas exaustivas que os seres mágicos enfrentavam, resistindo com bravura, ombro a ombro com fadas, bruxas, Elementais e outros seres.
Meu reflexo no espelho parecia insignificante, mas meu nome estava em uma canção epica que muitas vezes era cantada para aquelas que precisavam de coragem para enfrentar o desconhecido. Meu nome e minha imagem foram gravados em um volume da biblioteca, onde minhas qualidades de guerreira eram destacadas para que a posteridade soubesse de meus esforços, e para que eu mesma entendesse minha importância, pois faz mais sentido do que enaltecer somente aqueles que morrem.
Eu tinha até minha própria tela em uma das inúmeras salas do grande Castelo, onde aparecia em meus trajes de guerra, no auge da luta contra as forças de Katuryna.
Minha vida em Avalon era feliz, mas eu, naquele momento, precisava de mais que a rotina segura e perfeita dali. Meu desejo era mudança. Sentia em meu coração uma insistente vontade de desbravar o cruel mundo dos homens em busca de uma satisfação sem nome ou endereço.
Quando anunciei essa vontade para Élora, ela me fitou os olhos por alguns segundos e então sorriu de forma misteriosa. Contrariando todas as apostas, A Fada permitiu que eu partisse rumo ao desconhecido.
"- Ela é uma lendária guerreira que aqui sempre terá um lar, deixe que vá rumo ao desconhecido." - A senhora Le Fey respondeu quando Belladona contestou.
Dias depois eu estava pronta para partir. Coloquei meus pertences em uma mala bonita e resistente, marrom com detalhes dourados que eram feitos de ouro maciço, tinha sido presente de Lira Merak. Não éramos próximas ou algo assim, mas certo dia o presente chegou junto a uma missiva onde ela indicava que aquela mala parecia ter meu nome escrito nela, por isso a enviou. Quando abri o presente vi que, de fato, meu nome tinha sido gravado na parte de dentro. Eu nem mesmo imaginava que Lira sabia de minha existência, mas ela sabia meu nome e até me enviara um presente.
Quando o recebi, eu ri. Achei bonito, mas inútil, já que eu não tinha intenções de sair de Avalon. Se pudesse voltar ao passado eu engoliria aquele riso presunçoso de quem não sabe como funciona o jogo das possibilidades da vida. Era portando aquela mala, que julgara que jamais usaria, que eu desbravaria o mundo.
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Mais detalhes na obra Lira Merak - Harmonia Elemental.
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