Estrelas
Era já tarde da noite e quase todos os marujos dormiam. Estava cansada de ficar na cabine abafada, mesmo que cheirasse melhor que antes. Era desconfortável dormir, principalmente com toda aquela roupa suntuosa. O espartilho me apertava e espetava com as extremidades de suas barbatanas. Meus ossos estavam todos tortos de ficar deitada de mau jeito. Minha paciência findou quando tive uma terrível cãibra na coxa esquerda, que me fez retorcer rolando pelo chão com os olhos marejados enquanto abafava um grito de raiva. Quando minha perna se viu livre aquela mão invisível que fincava as unhas em meus nervos, levantei de vez e arrisquei sair para tomar ar fresco.
Caminhei na ponta dos pés, abri a porta com movimentos furtivos e saí como uma gatuna.
Andei alguns passos, sentindo o coração acelerar como se eu tivesse feito algo grave. Talvez, bem no fundo, eu sentisse medos que não tinha coragem de deixar subirem à superfície para que tomassem formas racionalizadas. Meu ouvido zunia, mas o ar da noite estava fantástico, compensava a aventura. Úmido, um pouco abafado, com cheiro de maresia e algo mais que eu não saberia definir. Algumas sensações na vida são intranscritíveis, por isso é necessário viver e não somente imaginar. Uma mente que imagina é afortunada tanto quanto um corpo que vive é experiente.
Trombei em algo, desequilibrei e quase caí. Poderia ser o mastro? Sim. No entanto era Martin, de braços cruzados.
— Onde pretende ir? — O homem questionou de cara amarrada enquanto nossos olhares se encontravam na penumbra. Parecia exausto e irritado. Soberbo até.
— Você não dorme? — Limpei a garganta e desviei o olhar. Meu coração estava mais acelerado que antes, mais um pouco e eu desaprenderia como respirar.
— Responda a minha pergunta. — Ele insistiu. Não largaria o osso com tanta facilidade.
Olhei-o de cima a baixo. Estava tão despenteado quanto durante o dia. Pela deusa, o homem não conhecia pente? Mantive silêncio. Não havia uma resposta certa para a pergunta dele, na verdade, eu só queria respirar algo que não fosse mofo e chulé. Seria arriscado dizer os fatos.
Martin soltou um suspiro cansado.
— Por que você não pode simplesmente se comportar? — Questionou em tom nervoso, não com raiva, mas com certo temor.
— E por acaso estou atrapalhando sua nobre pessoa? — Devolvi uma pergunta rebelde enquanto olhava para o céu cheio de estrelas muito brilhantes. O mundo comum tinha seus encantos.
Martin lançou sobre mim um olhar incrédulo.
— Sim, está. Eu gostaria de dormir, mas minha função delegada é cuidar de vossa digníssima figura. Senhorita Senuvem. — As últimas palavras dele saíram cheias de sarcasmo.
Sendo muito honesta, me senti um pouco mal por ser um peso.
— Apenas alguns minutos de ar fresco, por favor. — Solicitei com o máximo de gentileza que podia. Sim, eu ainda sabia me portar como alguém decente. Um dia em um navio pirata não era o suficiente para que eu me corrompesse.
Ele relaxou o maxilar diante do pedido.
— Apenas alguns minutos. — As palavras saíram com frouxo ar de grosseria.
Ele tentava manter sua pose de sujeito inatingível, não suportei a graça em meu interior e sorri.
— Vamos... Você pode fazer melhor que isso, vigilante. — Provoquei ultrapassando os limites pressupostos por minha posição.
Ele descruzou os braços e encostou uma mão na amurada do navio, apoiando o peso do corpo.
— Não seja traquina, mulher. — Asseverou erguendo uma sobrancelha e me fitando nos olhos. — Você não sabe com quem está lidando.
— Pareço ser fraca? — A questão saiu antes que eu pudesse pensar nela. Eu e minha boca gigantesca não cessávamos quietas.
Ele manteve silêncio enquanto trocava de posição. Encostou os cotovelos na amurada, entrelaçou os dedos e apoiou o queixo sobre eles.
Olhei para o mar que ondeava lento enquanto respeitava seu silêncio.
— Minhas desculpas por ser inconveniente. — ofereci arrependimento após algum tempo observando as águas calmas.
— Se quer ser desculpada, não repita seus descuidos. — Ele finalmente falou. O ponto final seguido de um suspiro exausto.
— Não causarei problemas. — Afirmei. Pelo meu bem mais do que pelo dele.
Porém, a questão da fraqueza permaneceu em minha mente. E a ela se juntou outra: o que eu ansiava obter do mundo? Até onde iria? Eu realmente não sabia o que pensar, imaginar ou desejar. O mundo era grande, mas limitado, e muito do que podia apreciar dele eu já tinha visto em Avalon. Cultura diversa, vivências incontáveis, faltava apenas caminhar por outros solos sentindo climas e relevos. Eu seria forte o suficiente para isso? Um corpo treinado talvez não me bastasse para me manter viva. Eu tinha técnica, mas pessoas tinham armas. Eu era até forte, contudo não era duas e sem minha armadura consagrada eu não poderia lidar com uma luta mais intensa. Tinha sido um erro sair da ilha sem pedir um treino próprio para lidar com o mundo comum.
— Recolher-me-ei. — Avisei depois de divagar em minhas reflexões. O cansaço físico finalmente me abateu depois de um tempo. Esse momento chegaria cedo ou tarde.
Martin permaneceu impassível. Tornei as costas sentindo algo diferente no coração. Meus sentimentos se tornaram novos e confusos depois de muitos anos.
— Tenha bons sonhos. — A voz de Martin soou fraca contra o vento que aumentava de intensidade.
Meu coração deu um pulo no peito, senti o rosto queimar. Havia mais para adicionar a minha confusão interna. Mais relações, dúvidas e opiniões.
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