Areia
Acordei tarde no dia seguinte, o sol já descendia rumo ao horizonte. Quando minha mente assimilou os acontecimentos da noite anterior, fiquei ansiosa para ver Martin. Quem não ficaria? Pessoas diferentes de mim, talvez, mas não uma jovem ansiosa como eu. Ansiosa e romântica, com pouca experiência nas artes do amor. No que dizia respeito à conjunção carnal, eu não tinha experiência alguma, talvez por isso senti o tempo todo que o beijo estava tatuado em meus lábios, como uma marca feita com ferro em brasa.
Olhei nos arredores procurando uma boa desculpa para desfilar pelo convés e vi minhas roupas penduradas. Estavam já secas depois de tanto tempo ali, mas tinham um terrível cheiro de mofo que era nauseante. Urgiu lavar aqueles panos para que não se desfizessem em podridão. Sim, era de extrema necessidade.
Levantei-me e andei até meus pertences, onde peguei um espelho de mão. Ajeitei meus cabelos e lavei o rosto com um pouco de água que deixava por ali. Sorri para o reflexo enquanto beliscava minhas bochechas na esperança de ficar charmosamente corada. Catei o balde de madeira onde enfiei minhas roupas sujas e uma barra de sabão que eu trouxera comigo. Saí da cabine e caminhei pelo convés para buscar água do mar. No caminho, discretamente, procurava por Martin. Não queria muita atenção, mas passei a ser o centro dela graças à minha troca de vestimenta. Ouvi gracejos indesejados e relevei pelo bem de minha sanidade, como sempre fazia. É um sinal de maturidade estar disposto a se poupar do desgaste e saber quando atacar. Considerei também que era o preço que eu pagava ao procurar por Martin, e saldei bem feliz. Na realidade nem senti tanto impacto pelos assédios nojentos, pois estava muito ansiosa para vê-lo, o homem de minhas borboletas.
Não sabia nem o que fazer depois, só queria encontrar seu rosto.
Cheguei ao local onde deixavam um balde para pegar água do mar e comecei a puxar água para lavar minhas roupas. Um pouco decepcionada por não encontrar Martin, mas ensaiando mentalmente o que diria quando finalmente o encarasse. Deveríamos trocar juras de amor em um dos cantos do navio? Talvez algumas palavras românticas e singelas... Um poema? Eu sorria contente demais para o pano ensaboado que eu esfregava com vigor enquanto divagava.
Passei pelo menos uma hora ali e Martin não tinha aparecido, presumi que fazia algo de importante para o capitão. Se sua função era me guardar e ele não a estava cumprindo, era por haver uma circunstância de força maior, com certeza.
Um pouco decepcionada e com as fantasias sob controle, passei a observar a movimentação à minha volta, como sempre fazia desde que tinha pisado ali. Fofocas são a melhor fonte de informações não oficiais. Agucei meus ouvidos para as inúmeras conversas interessantes até que ouvi um fuxico que captou minha atenção.
— É homem, Martin gosta de brincar com esses que se vestem de mulher. — A fala do homem, que pretendia ser baixa, foi interrompida por uma risada asmática.
— Lembro bem de quando fomos às ilhas Capibaras. — O outro respondeu com desdém. Meu sangue ferveu diante daquele tom, mas me mantive serena para escutar até o fim.
— Ele fez uma bacanal naquele lugar, nem parece que é cristão convicto. Se a esposa dele soubesse... Aquela coitada vive em terra com os filhos, fiel como um cão, enquanto esse aí se diverte no mar. — O primeiro homem falou.
— Martin a sustenta, o que mais ela poderia querer? — O segundo retrucou com um pouco de raiva, como se sustentar esposa e filhos não fosse obrigação e sim um favor.
Homens, eu bateria em todos se pudesse.
— É bem como ele disse quando pediu para fazer a guarda desse aí: "um homem precisa de diversão, capitão". — A frase foi seguida por um par de gargalhadas.
Senti uma pontada forte no peito e meus olhos ficaram marejados. Trinquei os dentes para não chorar ou gritar enquanto juntava minhas coisas, e me mantive firme enquanto ia até a cabine. Tentei manter a postura o máximo que pude, mas era inevitável que olhasse para o chão. Se visse o rosto de qualquer ser humano ali, eu não conteria mais o choro. Creio que os homens julgaram que eu não ouviria, claramente eram cúmplices do jogo do trambiqueiro, mas eu era uma guerreira de audição treinada. Fadas do Ocaso não iam para a batalha por acaso, nós podíamos estar lá, tínhamos treinamento para isso.
Não pensei que precisaria usar algumas de minhas habilidades enquanto voltava a viver como um ser humano comum, mas a vida em si era uma guerra e todos os dias, no meu caso, se tornaram batalhas.
Abri a porta sentindo meu corpo todo tremer e doer com a decepção e não consegui mais segurar o choro. A traição é como um punhal brasido que nos acerta as costas. É o pior dos ataques, aquele que mais mina uma pessoa. Quebra de confiança dois na alma e no corpo. Eu não conseguia entender os motivos de tanta maldade. Eu era uma pessoa como todas as outras, com sentimentos, com amor pela minha vida, então merecia tanto respeito quando qualquer outra. Por quê? Por que ele fez aquilo comigo? Por que jogar com meu coração? Que tipo de sádico era ele? Eu apenas chorava. Queria berrar, bater, morrer, mas apenas chorava. Chorava muito.
Ouvi batidas na porta seguidas pela voz de Martin, o imbecil. Mandei para o inferno enquanto abraçava meus joelhos. Só abriria aquela porta quando o capitão viesse me punir.
O capitão de fato veio, afinal era o aposento dele. Ele mirou minha cara inchada de chorar quando abri a porta imediatamente após ouvir seus berros. Olhei para Martin atrás dele e apertei os lábios de ódio.
— Vá embora, Martin. — Ele falou em tom baixo enquanto me empurrava para dentro sem gentileza alguma.
— Mas capitão... — Martin começou a contestar com expressão inocente enquanto me lançava um olhar que claramente pedia por uma intervenção.
— QUER QUE EU TE ARREMESSE DE MEU NAVIO?! — O capitão berrou.
Sobressaltei de susto.
Martin saiu com o rabo entre as pernas e eu fechei a porta mais rápido que um raio.
O capitão deitou um pouco, como sempre fazia antes do jantar e eu me sentei no canto onde dormia. A sensação de vitória por ver Martin ser humilhado se esvaía aos poucos, seu lugar sendo lentamente tomado pelo fracasso, pelo ódio que tinha por aquele corpo e a sensação de falha.
— Você foi mais esperta do que imaginei. — A voz do capitão flutuou até meus ouvidos. — Não gosto do caráter dele, mas é um bom navegador. Queria ver até onde ele iria.
— Sou uma cobaia. — Assimilei com orgulho ferido.
— Quase isso, mas eu te manteria viva de toda forma. E longe de estupros. Porém não poderia impedir se você se entregasse por espontânea vontade. Você acreditaria em mim se alertasse? Ou pensaria que sou um tolo e velho capitão louco para tomar seu corpo? Presumiria que estava de intrigas, certamente. A juventude toma muitos golpes até aprender o que é sabedoria, menina. E eu sou cansado demais para esmurrar facas. Não há como proteger quem não quer ser protegido. — Ele falou. Foi sua maior fala para mim desde que pisei naquele navio, e também a que mais me desconcertou. No fundo ele tinha razão, eu não acreditaria nele. Eu acreditaria em aparências.
Doeu mais ainda saber que eu, que me julgara tão crítica, caíra em um truque raso daqueles por pura bobeira. Logo eu, tão machucada, não tinha de fato aprendido uma das lições mais importantes de todas. Então eu estava lá, com um coração partido, e o orgulho duplamente ferido.
— Obrigada por ajudar. — Fiz o mínimo que podia e agradeci em tempo. Ele não era perfeito, mas ninguém no mundo é.
Eu estava mesmo grata, às vezes a misericórdia vem de onde menos esperamos. Não era um pão, mas para quem tem fome as migalhas são banquete.
Como sempre acontecia em outros dias, Martin veio chamar o capitão para o jantar e trouxe minha comida junto. Ele abriu a porta e me fitou, já era noite lá fora. Tinha escurecido cedo, o capitão sempre jantava antes do por do sol para economizar provimentos de iluminação.
— Coloque a comida no chão e saia. — O capitão Brarobáz ordenou sem olhar para Martin.
O homem fez menção de dizer algo, mas repensou. Era melhor não desafiar as ordens do capitão. Aparentemente ele não era forte o suficiente para puxar um motim. Perdedor. Comecei a considerar que sem roupa eu seria capaz de bater nele, e muito bem batido, mas estava exausta. Quando o capitão saiu, eu tranquei a porta e peguei a comida. Não tinha apetite, mas guerreira que é guerreira sabe que não pode perder as forças, principalmente em território inimigo.
Sem a constante presença de Martin, alguém tentaria algo. Com toda a certeza.
Comi enquanto sentia o barco balançar mais que de costume. Logo uma chuva forte começou. E cada vez mais aumentava de intensidade. Ouvi trovões, sons de marujos gritando desesperados e tinidos de ferramentas. Olhei através da escotilha e vi que as pessoas corriam para todos os lados. O navio passou a balançar muito, as ondas ficavam cada vez maiores. Principiei a me sentir enjoada. Em pouco tempo vomitei no chão. Estava tudo tampado, nuvens se encontravam com o oceano irado. O som das ondas era assustador. Em certo ponto já não conseguia mais me segurar, coisas rolavam para todos os lados. Travei minha mala com tudo dentro, sem nem entender bem o motivo, e saí da cabine para o convés. Chovia granizo. As pequenas pedras de gelo acertavam minha pele, impiedosas, abrindo feridas. O capitão berrava desesperado, cuspindo suas ordens na tentativa de salvar o navio.
Ondas gigantescas quebravam no convés. A água quase me levou, por duas vezes, mas me segurei em uma alça de metal que estava no chão. Segurei a mala com as pernas. Uma onda enorme acertou um dos mastros, que caiu sobre a cabine do capitão, esmagando-a por completo.
O tempo começou a passar em câmera lenta. Vi o capitão chorar, desesperado. Homens corriam e gritavam, uns bravos, outros desesperados, mas todos estavam encharcados. Cabelos no rosto, rezando para seus deuses. Uma ampulheta, vinda sabe-se lá de onde, passou ao meu lado. Sua areia dourada corria para um lado, entretanto, no virar da ampulheta, a areia começou a cair para o outro lado. E foi ali que decidi, que se eu ia morrer, que fosse por minha própria escolha. Assim como tomei minha vida nas mãos quando saí de Avalon, tomei também minha morte.
Quando a próxima onda veio, eu me soltei da alça onde segurava, respirei fundo, e me deixei levar. A água me atingiu com tanta violência que senti meus ossos quebrarem ao ser arrastada para dentro do oceano. Fui sufocada até perder a consciência, mas era minha escolha, meu caminho. Eu era eu mesma, na minha pele, decidindo minha direção. Enquanto eu pudesse, seria dona de mim.
Eu já era uma heroína para o mundo, meu nome estava gravado na história, nada mais importava.
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