Prólogo
Embora pareça a muitos um fato absurdo, é verdade que o breve tempo daexistência do homem sobre esse planeta esconde segredos surgidos em umpassado ainda misterioso, perdido no silêncio das eras. E nosso destinoapenas flui em direção a um exasperante futuro de incertezas.
Talvez em decorrência dessas incômodas constatações e não exatamente depropósito, tenha surgido o estranho hábito de se enxergar o tempo de formafragmentária. Isso de certo modo, está ligado a um atavismo irrefletido eirracional que determina que cada instante de nossas vidas se pareça compequenas peças...
Encaramos cada instante como algo único e precioso e depois os colocamosna caixinha conveniente do passado, do futuro ou do presente, masdificilmente temos coragem e disposição para remontar o grande quebracabeça do tempo. Somente para esconder de nós mesmos o terror que suapassagem e sua cessação nos provoca.
E desse modo também, ora ou outra nos deparamos com alguns dessesfragmentos mal conectados, como se a linearidade de seu fluxo fossequebrada e surgissem estranhos abismos, onde o sentido da vida se precipitae afasta vertiginosamente de nós mesmos.
Daí como se estivéssemos desprevenidos do próprio engodo que críamos,espantamo-nos e duvidamos de tudo a nossa volta, querendo recuperar o"tempo perdido".
O paradoxo é nos julgarmos como elos da corrente do tempo depois de tê-loesfacelado e por isso, o mundo, esse mundo que vivemos, é cheio deanacronismos absurdos.
Claro que esse tipo de questão filosófica, raríssimas vezes, surgirá em nossavida prática e isso é bem natural, a não ser que sejamos confrontados comalguma dessas coisas que pareçam absolutamente fora do lugar — oudeslocadas no tempo.
E certamente a Tea House podia ser contada entre essas coisas. Era mesmomuito difícil sequer dar-se conta de que bem ali, na área mais moderna docentro da cidade, ainda existia um velho casarão ao estilo da década de 60!
Na verdade, era bem justificável não reparar nela de primeira, já que o prédioonde ficava estava quase totalmente escondido entre os ousados arranha-céusde espelhos da Rua 57. E esse pequeno deslise, digamos assim, aconteceutambém com o jovem hacker Knight. E evidente que esse não era overdadeiro nome desse rapaz, mas um nickname que ele usava para ocultarsua verdadeira identidade, quando cometia suas trapaças eletrônicas.
Quando enfim encontrou o endereço que buscava, ele soltou o ar dospulmões entediado, gesto que lhe dava aparência de uma certa maturidade,que naturalmente contrastava com seus vinte e poucos anos e com seusmodernos cabelos negros rajados de prata.
Antes de ir adiante, ele conferiu de novo o endereço que anotara às pressasna madrugada anterior e constatou que acima da fachada cinzenta e soturnado prédio, havia uma placa artesanal feita de madeira rústica que para elebeirava o nonsense e que ostentava o estranho e solene título de Tea House. E aquilo lhe dava a sensação angustiante e definitiva de que toda ordem docosmo havia sido destruída.
"Ela existe... Pelo menos, parece que não é alguém me trollando!", pensou.E conforme havia sido instruído na noite anterior, não se deteve do lado defora. De toda maneira, havia uma pequena tabuleta pendurada na entrada queo convidava: "Entre e aguarde!".
"Bom! O que esperar de um lugar desses? Vós que entrais, deixai para trástoda esperança?" Riu consigo mesmo, quando dava um passo para dentro daloja.
Assim que atravessou a porta, uma campainha tocou anunciando suachegada. Entretanto, não havia ninguém ali e, espiando ao redor, podereparar que efetivamente nem mesmo se tratava de uma casa de chá, comoseu título em inglês sugeria ou, pelo menos, não se parecia com o que eleesperava de uma.
Espalhada pelas prateleiras da loja havia uma caótica coleção de velhosequipamentos eletrônicos, como se fosse uma espécie de antiquário detelefones, televisores, rádios e relógios digitais antigos.
Uns cinco minutos depois, quando já ficava impaciente com a espera, umsenhor de traços orientais surgiu dos fundos do salão, trajado em umantiquado conjunto de calças xadrez e suspensórios, que reforçavam aindamais o anacronismo daquele lugar.
O rapaz então adiantou-se em cumprimentá-lo:
— Boa tarde! Chamam-me de Knight. Recebi uma ligação telefônica e...
— Eu sei... — interrompeu-o o homem, fazendo a típica reverência japonesa.
— Sou Suzuki Yamada, o gerente da Tea House, mas adianto que não fui euquem o convidou a este estabelecimento. A pessoa que o chamou aqui deveráchegar em breve.
— Ok! – concordou contrariado, antes de fazer uma nova pergunta: –Yamada-san, será que o senhor poderia antecipar alguma coisa do assuntoque seu amigo quer tratar comigo?
— Na verdade, não é como se o conhecesse tão bem, por isso não seiexatamente sobre o que vocês conversarão. Mas posso dizer que de algumamaneira este encontro já estava previsto há muito tempo. E minha funçãonessa estória foi apenas manter esse lugar de pé para que ele pudesseacontecer...
Evidentemente não pareceu nada claro ao Knight o que aquele velho estavadizendo. De todo modo, a pessoa que falara com ele na noite anterior, pareciasaber muito bem a respeito das suas recentes atividades como hacker,colocando-o em alerta. Era por isso e por uma forte curiosidade que tomaraconta dele, que decidira ir para aquele lugar, apesar de todo o risco quesignificava se expor daquela maneira.
Yamada, levando-o aos fundos da loja, gentilmente convidou o rapaz a sesentar em uma antiga poltrona de madeira, acolchoada de bela estamparia,muito confortável, enquanto ele mesmo se acomodava num sofá de couro aolado.
— De onde vêm todas estas coisas? São todas tão velhas! — rompeu osilêncio, tentando retomar o diálogo anterior que se encerrara subitamentenum comentário evasivo.
— São heranças de outros tempos... — pareceu desconversar Yamada.
— Mas por que o nome? — continuou o rapaz puxando conversa e muitoinsatisfeito com as respostas vagas.
— Porque nosso chá é a especialidade da casa. Você logo verá! –Obviamente a explicação o deixou ainda mais insatisfeito.
Alguns instantes depois, saindo de um cômodo lateral, apresentou-se umagraciosa jovem, vestida em um macacão jeans, com os longos cabelos negrospresos em um rabo-de-cavalo.
Ela aproximou-se deles devagar, supostamente intimidada pela presença doestranho e emitiu um cumprimento titubeante para ele.
— Ora! Aproxime-se, Ai-chan! Traga o chá para nosso visitante.
Ela caminhou até eles, com uma bandeja nas mãos e a repousou na mesa decentro diante dos dois. Sobre a peça, havia um belo jogo de louça, com bule,pires e xícaras delicadamente decorados. Havia chá e leite como pedia atradição britânica, além de ser servido precisamente às 5 da tarde.
Nem é preciso dizer o quanto isso contradizia tudo o que o Knight poderiasupor, já que esse típico chá-inglês era servido por um solene senhor defeições orientais. E também esse detalhe veio a se somar ao monte deabsurdos que constatava a cada minuto desde que entrara na Tea House.
Então com um sorriso gentil dirigido à jovem, Yamada-san comentou:
— Minha neta, este é o homem de quem lhe falei. Chamam-no de Knight!
— Sim — assentiu a moça.
— Amanhã já não estarei aqui na Tea House e quero que você o acompanhede perto até tudo estar resolvido...
— Sim, vovô.
O Knight, assustado com esse comentário, levantou-se num impulso,interpelando o velho:— Ei, você pode me explicar o que está se passando?
— Acalme-se, meu rapaz — respondeu com um tom cordial. — Já lhe disseque não tenho como dar mais informações. Por ora, tome seu chá e relaxeenquanto o outro visitante não chega.
Um pouco tenso com aquele imbrólio, o rapaz tomou uma xícara nas mãos esorveu um longo gole da deliciosa bebida. O líquido desceu morno por seuesôfago e, ao chegar ao estômago, aqueceu todo o seu corpo numa agradávelsensação.
Então Ai, a graciosa neta de Yamada-san, se aproximou dele, arrumou osutensílios do chá sobre a bandeja e com um sorriso no rosto perguntou-lhe:
— Como está seu chá?— Muito gostoso, realmente é um chá especial... — E por um longo instanteele esteve absorto na ideia do quanto aquele sabor era nostálgico, como se jáo tivesse bebido alguma vez.
E lentamente sua mente se deixou envolver por essa nostalgia, perdendo-sena trama do sabor meio amargo do chá. E essa seria depois a últimalembrança daquela visita à Tea House, pois logo depois o Knight adormeceuprofundamente.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro