Como as uvas de Cabo Verde
"Se você tem alguém que ama, diga isso. Diga todos os dias. Várias vezes durante o dia. Você não vai ter ela para sempre." L. Krsna
-Resista! RESISTA! ACORDE!
As vozes pareciam apenas um pano de fundo para os batimentos do meu coração. Os gritos de Neji, mesmo ali, ao meu lado, pareciam distantes. Eu apenas me concentrava na tarefa de soprar o ar para os pulmões, mesmo que parecesse que eu mesmo ficaria sem ar a qualquer instante.
"Eu te amo, Naruto."
-Um, dois, três, quatro, cinco! De novo!
A voz de Shizune, era apenas uma ordem que eu seguia, como um boneco de cordas. Enquanto ela fazia massagem cardíaca no peito da garota que eu amava. Neji aplicava algo nela. Ele estava chorando, e aquilo era assustador. O asfalto estava gelado, e eu nem mesmo percebia se ainda chovia, quando tinha parado. De repente alguém me arrancou dela, e eu cai sentado, estavam falando comigo.
Os dedos de Hinata estavam roxos.
Alguém falava comigo.
Neji estava chorando, estava gritando, chamando por ela.
Eu queria tanto Sakura e Sasuke ali. Eu queria que aquilo não estivesse acontecendo.
Tinha paramédicos, eles haviam chegado na estrada. Seguravam Neji, que se debatia. Não a mim. Eu apenas continuava parado, caído sentado no chão frio, olhando para onde a colocavam na maca, para o desfibrilador, eles nem mesmo fecharam a porta da ambulância.
Eu não sabia se falavam comigo em meio ao caos.
Eu não sabia de quem eram as mãos que tentavam me levantar.
Eu não sabia o que eu estava falando.
Mas eu percebi quando pararam de usar o desfibrilador, e o peito dela ainda não subia.
Eu percebi, antes mesmo de fecharem a porta da ambulância.
A gente apenas sabe essas coisas. Aceitar elas é algo bem diferente.
Como tudo podia ter dado tão errado? Só podia ser uma pesadelo.
- Naruto, temos que ir, Naruto...
'Ela não queria ir.'
-Acorde, por favor, acorde...
'Você não pode estar morta. Não pode.'
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Abri meus olhos, e ainda assim tudo era escuro. Meu peito batia rapidamente, e por um momento, eu não sabia onde eu estava, até sentir uma mão fria em minha testa, e o cheiro inconfundível dela.
Minha mãe apenas me abraçou enquanto eu tentava me acalmar. Aquilo acontecia as vezes, não era algo fácil de esquecer agora que minha memória havia voltado totalmente. Mesmo meses depois, eu acho que anos depois ainda seria assim. Aquela dor pulsante, aquela sensação que você perdeu uma parte do corpo que não dá para viver sem, mas que continua vivendo.
Quando se perde alguém importante na sua vida, de repente. Nada do que você aprende te prepara para isso, nem do que vem depois. Nenhum livro, nenhum filme, nada. Talvez fosse assim para sempre.
Minha visão? Aquilo não me incomodava mais. Por todos os inconvenientes, ela estava certa, há outras formas de enxergar. Se acostuma. Se adapta. Eu estava vivo.
A sensação de que alguém que não está mais lá, pode voltar a qualquer instante? Muito mais difícil. Abstrato. Um conceito apenas, que não se sabia como colocar em prática. Como você pode curar uma dor como aquela?
Eu nem mesmo fui no funeral. Eu não vi um corpo. Eu não disse adeus. Eu estava tão confuso, com tanta raiva dentro de mim, que apenas corri do hospital, de todos, e foi quando tudo foi de mal a pior.
Não dá para se acostumar com esse tipo de vazio. De arrependimento.
-Mãe, a senhora ainda pensa muito no pai?
A pergunta escapou dos meus lábios antes que eu pudesse conter. E recebeu silêncio. Por um instante, pensei que ela já havia saído do quarto. Fiquei ali, com os olhos abertos sem ver, no que deveria ser o teto, recebendo apenas o som dos pássaros do lado de fora da janela do hospital. Era bom não ter mais máquinas ligadas a mim, e era bom sentir o vento no meu rosto depois de tanto tempo.
Mesmo que eu nunca mais fosse ver o sol, era bom sentir o calor dele.
Era bom saber que a morte não me rondava tão de perto mais. Eu queria viver. Se havia algo forte que havia aprendido nesses meses, é que queria viver. Fazer algo por alguém. Eu sabia que havia algo de importante, algo era esperado de mim para eu ter sobrevivido há tudo aquilo. De repente todos pensamentos sobre morte pareciam equivocados. Parecia uma profanação para com Hinata, meu pai, os pais de Sasuke, que tanto dariam por mais tempo. De repente nada parecia difícil demais de lidar.
Só aquela dor que me incomodava. Não havia anestésico para ela, ou grau de escala.
Virei o rosto para o lado, pronto para dormir, quando a resposta veio.
-Todos os dias.
Pisquei, ainda um reflexo que não havia perdido, e virei para a direção da sua voz, no instante que mãos suaves tocaram minha cabeça de cabelos raspados, que começavam a nascer novamente, eu havia parado com a quimioterapia há uma semana. Sua mão era quente na minha pele gelada, confortante.
Eu tinha tanto a falar para ela. Tanto. Era a primeira vez que estávamos sozinhos, sem nenhum médico por perto, sem nenhum perigo rondando, sem que eu não estivesse colocando minha vida pela boca após uma sessão de quimioterapia. Eu ainda me sentia fraco, enjoado. E sentia dores, que nada tinha com o tratamento. Queria não estar tão cansado.
-Doeu muito, por muito tempo. – ela falou baixo, as mãos nas minhas pálpebras, as fechando com carinho. – Era difícil. É difícil quando você quer muito falar algo a alguém que não está mais lá. Quem já perdeu uma pessoa, sabe que nenhum arrependimento é maior do que esse, de coisas que não disse, os momentos que não tem volta. Então, vou dizer a você, meu Naru, o que minha mãe me disse na mesma época. Nunca vai passar, mas um dia, de repente, a saudade que era dor vai mudar. Vai continuar sendo saudade, mas vai ser uma saudade...boa. Dos bons momentos. Um dia, você vai estar lá, e vai sentir um perfume conhecido, ou ouvir uma música na rua que vai lembrar tanto aquela pessoa querida... E não vai doer mais. Vai ser um sentimento bom. Afinal, a gente nunca esquece das pessoas que a gente ama. Nem do bem que elas nos fizeram.
Não respondi de imediato, com sono demais. Senti um beijo na minha testa.
-Durma Naru. Quando acordar, vai poder falar com Sakura e Sasuke. Apenas descanse meu amor.
Acho que assenti, e senti os lençóis se ajeitando, como quando eu era criança.
-Mãe?
Minha voz saiu embolada pelo sono e ela riu, as mãos voltando a minha cabeça raspada.
-Diga.
-Eu amo você.
A mão dela parou no ato, surpresa. Não era como se eu nunca falasse isso, mas era bem raro entre a gente. Eu sempre pensei que ela soubesse.
Esse é sempre nosso erro.
-O que foi isso agora? – Ela riu e busquei sua mão, tateando e a beijei.
-Só queria que a Senhora soubesse.
Silêncio, por segundos. E então um abraço forte.
-Eu também te amo meu Naru. Mais do que qualquer coisa.
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O dia havia começado bem. Havíamos saído de Okinawa pela manhã cedo, e pegamos a estrada até as balsas. Havíamos passado dois dias lá depois do Eisa, apenas viajando entre as ilhas, conhecendo o lugar. Foram os dias melhores, depois de muito tempo.
Era bom ver Hinata realmente feliz, tão livre, de verdade e não apenas para consolar as pessoas. E isso deixava todos nós felizes também. Mas nosso tempo estava acabando, eu me sentia cada vez mais cansado, dormia muito, e os apagões aconteciam várias vezes durante o dia, o que levou Sasuke a ter que levar o SENECA do galpão com Sakura, enquanto eu ia de carro com os outros. Paramos durante a noite em uma cidade costeira, uma pequena aldeia de pescadores, e montamos acampamento na praia. O tempo não esquentara, mas ao menos não havia chuva prevista.
Eu estava feliz. Eu estava feliz com Hinata deitada ao meu lado na parte detrás da caminhonete, apenas olhando para as estrelas e ouvindo música. Eu estava feliz de ouvir ela falando da família dela, dos planos, que agora ela tinha a ousadia de criar.
- Por que viajar pelo Japão?
A pergunta dela me pegou de surpresa. Ninguém havia me perguntado isso, e apenas minha mãe sabia o real motivo. Ela estava deitada com a cabeça no meu estômago, meus dedos passando por seus cabelos livres da touca.
-Hmm, quando meu pai tinha 18 anos, terminou o segundo grau e resolveu sair pelo mundo antes de decidir o que ele iria fazer da vida. É um costume bem comum ainda. Meus avôs deram a ele dois meses para voltar, então meu pai arrumou sua mochila. E enquanto o destino dos outros da idade dele eram Europa, ele partiu para a Asia, com pouco dinheiro e sem plano algum. Ele só voltou para casa um ano depois, sabendo pilotar avião e parecendo ter se encontrado. Foi por conta de um amigo do Japão que ele conheceu minha mãe depois. Então meio que aqui era o lugar da sorte dele. Tentei fazer a mesma rota dele, mas meio que meu avião caiu na primeira parada.
- Então você veio se procurar.-Ela falou pensativa. – Conseguiu?
Ela não podia saber como eu olhava para ela agora. Passei o polegar sobre seu rosto e ela riu.
-Sim, acho que o Japão é meu lugar da sorte também.
- Se é! – ela assentiu, com falsa seriedade. – Vou contar um segredo. Eu sempre quis ia a um lugar também. Além de Okinawa...
Ela pausou, o rosto ficando vermelho na minha palma. Isso me deixou curioso.
-Estou ouvindo.
-É estúpido.
- Estúpido é o medo de Sasuke de Coalas. Por Deus, quem tem medo de Coalas?
Ela bufou, pausou mais algum tempo, e falou baixo.
-Cabo Verde.
Certo. Aquilo era uma surpresa.
-Lá tem um bom vinho. E vulcões. E muito calor. – Falei devagar e ela bateu na minha barriga. – Owf! Isso doeu.
-Não é isso! Cabo Verde...há algo de mágico sobre lá. Existem praticamente mais jovens de Cabo Verde em outro lugares do mundo do que lá mesmo. As pessoas sempre vão embora de lá, rodam o mundo, e voltam para lá. É como se você tivesse que aprender o que o mundo é além do mar, para saber o que seu lar é, e sentir falta dele. Como um porto...eu não sei explicar bem. E os vulcões, o modo como eles sempre reconstroem algo das cinzas, como os vinhedos de lá. Passa a ideia de que nada é realmente finito...eu acho.
Era raro ela não saber explicar alguma coisa.
-Eu quero saber o que tem lá. Sentar no porto e esperar o barco voltando, com as pessoas retornando, e perguntar para elas por que voltar? O que tem lá que no mundo não tem?
-Isso é meio...
-...Estúpido. – ela suspirou.
-Não! Inspirador. – Sentei e ela se surpreendeu por um instante, até que a ajeitei na minha frente e peguei na sua mão, enrolando nossos dedos mínimos. – Eu decidi então, vamos a Cabo Verde, ao lugar onde todos voltam, onde cinzas viram uvas.
Ela riu de mim, mas apertou minha mão.
E naquele momento, eu queria dizer para ela que a amava. Que queria que desse certo. Que quando eu fizesse a operação, e perdesse a visão, queria que minha ultima lembrança fosse o sorriso dela, o enrugar do nariz com minhas piadas sem graça. Ela com aquela roupa de frio, perdida no casaco, e no jeito que a trança dela sempre estava torta na cabeça. Eu queria dizer para ela que podíamos ser como as uvas no Cabo Verde.
Eu queria dizer tanta coisa. Que eu estava com medo, mas ela fazia tudo parecer fácil agora. Que se ela viesse para Tokyo comigo cuidaríamos um do outro. Mas não disse nada.
E o momento passou.
Quando acordei, era com a respiração dela em meu pescoço.
Ninguém estava esperando. Foi na estrada, há apenas meia-hora de onde Sakura e Sasuke nos esperavam.
A respiração ruidosa quando ela acordou, dormindo recostada em meu ombro. A mão dela no peito, o rosto assustado. E tudo virou um borrão para mim.
Eu apenas lembro dos olhos assustados dela em mim, cinzentos, como se pudesse me ver. Da voz dela procurando ar, dizendo aquilo que esperei tanto, dizendo para Neji também, para a família dela.
Eu nem mesmo ali, consegui responder. Eu simplesmente não conseguia falar, mudo.
Hinata sabia que estava morrendo, e ela estava com medo. Ela estava apavorada. O rosto dela, a expressão dela. Hinata não queria morrer. Ela não queria ir embora. O jeito que ela agarrou a mão do irmão dela e a minha, pedindo ajuda.
Hinata não queria ir.
Tudo...nada fez sentido. A manobra de ressuscitação, os gritos, o chamado da ambulância. Quando dei por mim, totalmente, já estava no corredor do hospital, mas eu já sabia.
Antes do médico chegar e falar, eu já sabia.
Antes de Neji sucumbir, eu já sabia.
Antes de Sasuke e Sakura entrarem na sala de espera, atrás de mim. Eu já sabia.
Que não haveria viagem para Cabo Verde.
Não haveria Tokyo.
Não haveria trança torta.
Então eu apenas corri de lá. Covarde. Antes do pai dela chegar, antes que pudessem me dizer as três palavras. Ouvi gritarem pelo meu nome, eu nem mesmo sabia que cidade era aquela. Eu apenas corri até chegar a uma rua estranha, estava chovendo, e eu continuei correndo. E depois andando. Uma hora, duas talvez.
Eu não sabia para onde estava indo.
Foi minha culpa? Se ela tivesse na cidade dela, mais perto do hospital, ela teria sobrevivido? Se ela não tivesse me conhecido, ela não estaria com tanto medo de morrer?
Eu havia piorado tudo.
Aqueles olhos cinzentos, muito abertos.
Ela não queria ir. Ela não queria largar nossa mão. Ela queria ir para Cabo Verde.
Foi em uma curva, eu não vi o farol vindo. Eu não vi nada, apenas senti o impacto, quando meu corpo foi jogado, o vidro explodindo.
E tudo mais foi escuridão.
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