CUMADRE FULORZINHA
Pai e filha olham para o corpo da mãe castigado pela doença e inerte pela morte. Mais uma pessoa que prematuramente deixou a vida nesse mundo, por causa da tuberculose.
Maria Flor, dos seus doze anos de idade bem vividos até então, chora em silêncio alisando os poucos cabelos que restaram da sua mãe.
O caixão é simples.
É o modelo usado nas cidades no interior do Nordeste. Marrom claro com dourado.
A madeira só em olharmos para ela, parece que vai se puir.
Sendo assim, os presentes sabem que não vai durar muito, principalmente depois que o caixão descer os sete palmos de barro queimado, cheios de vermes famintos.
Seu Cícero usa uma camisa qualquer, mas aberta até um pouco antes do umbigo.
Ele suspira impaciente e sem emoção, deixando o cheiro da cachaça sair pelos seus poros e pela boca.
O pai de Maria Flor parece mais um pêndulo em pé, e a cada idas e vindas, para frente ou para trás, Florzinha é quem ajuda-o no equilíbrio, segurando com a firmeza de criança na sua mão.
São quase duas horas da tarde, e a essa hora do dia, na cidade de Paudalho que fica há uns quarenta quilômetros de Recife, parece ter um sol para cada uma das doze pessoas, que estão no velório a céu aberto, no cemitério local.
— Vai pra casa que depois eu chego. — Ordena seu Cícero para a filha, quando vão saindo do cemitério. — E faz alguma coisa para nós comer. — Completa a ordem com mais autoridade.
— Pai, aonde o senhor vai? — Florzinha faz a pergunta, mesmo sabendo que seu pai vai beber cachaça na feira da cidade.
— E te interessa menina? Faça o que mando. — Maria Flor vira-se e caminha na direção da sua casa.
A menina percebe o pai afastando-se dela, pelo som moído que faz o barro torrado por causa da quentura do sol, sendo pisado por uma percata feita de couro fino.
A menina chega em casa. Ela sente a fragrância da mãe ainda pelos cômodos.
Florzinha pega do guarda roupa uma roupa florida que dona Celestina gostava de usar aos domingos para ir na missa.
Logo aparece nas suas lembranças das duas correndo pelos pés de bananeiras que ficam atrás da casa.
O terreno não é grande, mas há um espaço com muitas fruteiras, como pés de goiaba, acerola, mamão e pelo chão as raizes que crescem na sequidão como a macaxeira e o inhame.
A menina pega no sono.
— Acorda miserável! — Florzinha é acordada violentamente de cima da cama dos seus pais. — O que foi que eu te pedi peste?
A menina é arrastada pelo pai, não sabe o que está acontecendo, pelo quarto à fora.
— Eu te mandei fazer meu jantar. E agora vou ficar com fome é? — Seu Cícero continua arrastando Maria Flor até a cozinha, passando pelo trio de amigos bêbados que estão na sala.
Ele pega uma colher de pau, que é usada para mexer dentro de um caldeirão de feijão e bate na menina com ela.
Os três amigos sorriem escutando os gritos da menina, enquanto Seu Cícero continua a bater com ela presa entre suas calças sujas de vômitos.
— Não se faça de rogada, da próxima vez que eu mandar você fazer alguma coisa... Faça!
Como quem pega um saco de batata, ele sai levando Maria Flor toda ensangüentada e machucada até o quarto dela, e a despeja lá.
Antes de sair do quarto, seu Cícero olha para a menina, que está deitada de todo jeito e diz:
— Se eu pegar você sem fazer nada de novo, vai me apanhar de pau novamente. — O pai de Maria Flor sai e bate a porta do quarto com toda força.
Seu Cícero sai da venda do Seu Aderbal cambaleando.
A noite vem chegando e os amigos que estavam até pouco bebendo cachaça com ele, começam a comentar as desgraças que se abateram na vida do homem, enquanto distancia-se deles.
— A morte da mulher e o sumiço da menina, estão acabando com o Cícero.
— É de lascar mesmo... a pessoa ter tudo e perder assim.
— A menina sumiu há duas semanas, e ainda nem faz um mês que a mulher dele morreu.
— Maria Flor... Era tão linda, educada e estudiosa...Cabelos escuros e encaracolados até os joelhos.
— Diacho homem, valei-me nosso senhora Aparecida, até parece que a menina morreu. — Se benze o bêbado que tem bigode ralo.
— E você acha que aconteceu o que? Que a menina fugiu? Como o pai teima em afirmar!
— Ela deve ter fugido mesmos pra casa da tia da mãe dela. E está escondida por lá, em Ribeirão. A professora Isaura um dia desses comentou que a menina chegou toda lapiada pelo cipó de goiabeira.
— Oxe! Ele disse que foi a menina fazendo as tranças no rabo do cavalo. — O homem limpa o bigode ralo molhado pela pinga.
— E o que raio de peste bubônica, um rabo de cavalo tem haver com cipó de goiabeira?
— O cavalo era bicho brabo, e correu atrás da menina que se embrenhou pelos matos, se machucando toda.
— É... aquele cavalo preto é arisco mesmo. E ele já foi em Ribeirão saber se a menina chegou lá? — Agora quem perguntou foi o homem usando óculos fundo de garrafa.
— Cícero disse que mandou uma carta, e está esperando a resposta.
— Se fosse fia minha já tinha ido inté lá.
— Verdade verdadeira verdadeiríssima. — Os dois amigos pedem nova garrafa e vão bebendo as conversas e a cachaça.
Cícero levanta-se para urinar.
Ele olha para o relógio de parede, que tem a foto de um Jesus loiro, que lembra mais um surfista usando roupa colorida, que o filho de Deus.
São três horas e quinze da madrugada.
Ele levanta a cabeça, fecha os olhos e começa a esvaziar a bexiga.
Um arrepio percorre sua espinha, trazido por um vento frio de uma madrugada quente.
"Mas tudo está fechado!"
Barulho na cozinha.
Panelas caindo de dentro do armário.
Cícero para na porta do banheiro e olha na direção da sala que está com a luz acesa.
Ao chegar na cozinha as panelas estão espalhadas pelo chão. Ele olha para cima da estante com fotos da família e enxerga o rifle.
"Maldito Timbú!" — Pensa ele que é um rato dos grandes.
O homem escuta o som de unhas arranhando a porta.
Cícero passa com rifle nas mãos direto para a sala, quando ele percebe de supetão, uma sombra no quarto da filha.
— Que merda é essa? — Grita assustado perdendo o fôlego e com os olhos arregalados.
Ele corre para fora da casa e entra na floresta.
Um assobio açoita a brisa da madrugada.
Cícero escuta os cavalos relincharem. Ele não ver nada, tudo está um breu... Correndo pela única estrada de barro, o homem entra mais ainda nas matas virgens, chamando um palavrão.
O sangue some de sua face ao ver uma menina levantando-se de dentro dos matos.
— Pai...
— Q-quem é você?
A menina caminha em direção ao homem assustado.
As plantas, goiabeiras, matos e gramas afastam-se como se fossem súditos abrindo passagem para sua rainha.
Os olhos cintilantes de brancura, ausentes de globos oculares, se aproximam dele com sutileza.
— Pai sou eu. — O cabelo de Florzinha dança vivo sobre sua cabeça. — A sua filha que você matou.
— M-me perdoe.
— Pai, olha para meu corpo lapiado por causa da surra de cipó. — A menina mostra seus braços.
— E-eu estava bêbado.
Ele andando de costas cai numa vala aberta. Cícero mexe-se desesperadamente, mas ele está deitado numa:
— Cova meu pai, essa é a cova onde o senhor me enterrou, depois de me matar com uma surra.
— E-e como você está viva?
— Eu estou morta meu pai, perambulando entre os dois mundos. O senhor se esqueceu que nunca foi batizada, e mesmo assim jogou-me numa vala.
— Maria Flor...
— A mata virgem me trouxe de volta à vida como uma guardiã que vai punir as injustiças feitas contra ela e os animais. Eu agora sou Cumadre Fulorzinha.
A menina abaixa-se tocando o joelho esquerdo na relva verde. Os cabelos de Cumadre Fulorzinha, parecem está fazendo afago no rosto de Cícero.
O sangue do homem começa a jorrar no rosto de Cumadre Fulorzinha, enquanto ela vai dando uma surra em seu pai, usando os próprios cabelos.
A menina avança ferozmente sobre seu pai, começando a açoita-lo com maior veemência.
Cícero tem seu gritos abafados pelos relinchos dos cavalos, que do estábulo veem a alma amaldiçoada matando o homem com uma surra de cabelo.
— Meu Deus eu não pensava que um corpo, pudesse ficar nessas condições. — Comenta o delegado para o legistas. — O que aconteceu com ele?
— Delegado e quem sabe? A pele dele está toda esfolada a faca.
— Faca? — O delegado aproxima-se do corpo deitado na pedra do necrotério. A danação da imagem é grotesca. É como se um açougueiro, pacientemente, fosse retalhando um pedaço maciço de carne fresca com uma faca cega. — Onde estão os outros três?
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