Capítulo 30
♥ Fred ♥
Presta atenção e aprende comigo: quando o destino está a fim de te ajudar, ele segura sua mão e é seu melhor amigo para sempre; mas quando ele quer ferrar com a sua vida... puta que pariu!
Se segura que a pilha de merda não tem fim.
Começando minha lista de infortúnios, lógico que o primeiro voo com cinco assentos disponíveis, só no domingo de manhã. Eu tentei convencer o Lourenço a entrar no carro e pegar a estrada no minuto em que fiz a descoberta, mas foi ele quem acabou me convencendo que não valia a pena. Mesmo saindo naquele minuto e viajando a noite toda, a gente chegava em Porto Alegre pouca coisa antes do avião do dia seguinte, sem contar que, com duas crianças no carro, a viagem poderia ser ainda mais longa.
Depois de quase vinte e quatro horas de espera, que pareceram vinte e quatro séculos, chegou a hora de apressar duas meninas querendo voltar para pegar aquele outro brinquedo que elas não podiam deixar de levar, empurrar a minha irmã porta afora, repetindo pela milésima vez que no Sul tinha comércio onde seria possível comprar o que quer que fosse que ela estivesse esquecendo, e ajudar o Lourenço a espremer trezentas malas nos porta-malas de dois táxis, já que a Bia era incapaz de viajar sem levar a casa inteira.
E tanta correria, por nada. O voo estava atrasado, sem previsão de partida, por causa do mau tempo em Porto Alegre. Pelas paredes de vidro do Santos Dumont, acompanhei um sortudo avião decolando no céu azulzinho e sem nuvens, negociando com o destino, porque não era possível que os meus pecados merecessem castigo tão cruel.
Mas, pelo jeito, era só o início da minha lição sobre ser paciente com coisas que estavam fora do meu alcance.
Duas horas de espera, em que eu tive que pagar o lanche de todo mundo e me virar para distrair duas meninas impacientes, porque, segundo o Lourenço, a obrigação era minha, já que estávamos indo por minha causa, e finalmente embarcamos.
Depois do acidente dos meus pais, entrar num avião nunca era fácil para mim, ou para minha irmã, mas para não contaminar a Alícia e a Amanda com nossos medos e paranoias, nós tentávamos encarar as viagens como se fosse a coisa mais natural do mundo entrar numa caixa de metal que brincava com a lei da gravidade a uma velocidade rápida demais e a uma altitude grande demais para não dar merda. Como eu consegui manter a farsa no voo mais turbulento e na aterrissagem mais tensa da minha vida? Fechando os olhos e pensando que eu estava fazendo aquilo pela Mariana. E rezando para que os meus pais tivessem uma ligação direta com o chefão do céu que não ia negar um pedido de não deixar os filhos e as netas terem o mesmo fim que eles.
Com os pés em terra firme de novo, fomos recepcionados por uma cidade cinzenta, molhada e gelada, nos esprememos em outros dois táxis que nos levaram até o apartamento do Lourenço para pegar o carro dele, uma caminhonete cabine dupla, comprada justo para desbravar as estradas de terra que levavam à fazenda e onde perdemos um tempo precioso com a Bia querendo conhecer cada cantinho da casa do namorado. Não foi meu momento mais bacana, admito, fazer pirraça andando atrás dela, perguntando como paredes, móveis e um monte de caixas de papelão com parte da mudança do Lourenço eram mais interessantes que resolver o meu problema, mas adiantou, era o que interessava, e nem liguei para os olhares mortais que ela me deu dentro do elevador.
Meu suspiro de alívio ao fechar o cinto de segurança saiu cedo demais.
Uma viagem que demorava pouco mais de duas horas, segundo o Lourenço, estava chegando ao dobro do tempo, graças à chuva e as paradas para abastecer e para o almoço tardio, tudo patrocinado pelo meu cartão de crédito porque era a minha obrigação já que estávamos ali por minha causa.
Mas não devia demorar muito. Tinha uns bons vinte minutos que nós estávamos brincando de rali, derrapando num labirinto de estradas de barro, com nada na paisagem além de mato, árvores e cercas de arame farpado, debaixo da chuva que, felizmente, tinha diminuído, mas ainda caía com força. Meu coração disparou quando a caminhonete foi diminuindo até parar.
— Chegamos? — Soltei o cinto e enfiei a cabeça no vão entre os dois bancos da frente, procurando pela casa, mas não vendo nada.
— Fred, vinte e cinco, Alícia e Amanda, zero — a Bia revirou os olhos, e continuou quando eu a encarei sem entender que jogo eu tinha ganhado de lavada. — Eu estava contando quantas vezes alguém perguntava se ia demorar muito, se já estávamos chegando ou se já chegamos.
Eu podia apontar que foi uma competição injusta, com as meninas cochilando a viagem inteira sob efeito do Dramin que a Bia tinha dado a elas, mas preferi ignorar a palhaça da minha irmã e me virei para o Lourenço.
— Por que a gente parou?
— Você precisa abrir a porteira. — Ele apontou o portão grande de madeira fechado na nossa frente. — E não, Fred, não tem controle remoto. Você tem que ir lá.
— Por que não vai você?
— Porque eu estou dirigindo.
— Sem problema, eu dirijo e você abre.
— Eu vou. — A Bia começou a soltar o cinto de segurança, mas o Lourenço não deixou.
— Não. Está chovendo e a gente está aqui por causa...
— Tô indo — eu interrompi. Juro que se eu escutasse o Lourenço dizendo mais uma vez que era a minha obrigação porque a gente estava ali por minha causa, a minha irmã ia ficar viúva antes de casar.
Passei com cuidado pela Amanda com o pescoço caído de lado e abri a porta, pulando com os dois pés no chão. Péssima ideia. Eles afundaram no barro que chegou na minha canela.
— Merda! — xinguei baixinho para não acordar a minha sobrinha que adorava chamar a atenção de quem falava o que não devia.
Eu não só tinha acabado de estragar o meu sapato preferido, como tinha acabado de estragar o único sapato que eu tinha levado. Mas eu ia deixar para me preocupar com aquilo depois. Eu estava indo ao encontro do amor da minha vida, o que era perder um par de sapatos de couro italiano, que foram do meu pai, perto da chance de estar frente a frente com a Mariana de novo?
Fechei a porta do carro com cuidado e tentei andar. Meu pé veio, mas o sapato ficou enterrado no lamaçal. Lógico. Por que caminhar ia ser fácil quando podia ser a porra do equivalente a tentar se desenterrar de um poço de areia movediça?
Voltei o pé para dentro do sapato e fui em frente da única maneira possível, deslizando um pé para frente e depois o outro. O casaco que precisei pegar emprestado com o Lourenço era impermeável, mas a minha cabeça estava gelando com a chuva. Quem imaginou tanto frio em pleno verão?
Eu, a Bia tinha respondido quando fiz a mesma pergunta em voz alta, tirando casacos, cachecóis e toucas para ela e as meninas de uma das malas. Se eu conhecia a minha irmã, o tempo podia virar num improvável calor de 50º no Rio Grande do Sul no dia seguinte, e ela ia tirar biquínis e protetores solares de outra mala com a mesma naturalidade.
Pegando o jeito de patinar com os pés atolados, tentei ir mais rápido. Outra péssima ideia. Um minuto eu estava na posição vertical, no seguinte, eu estava deitado no barro com pingos de água caindo no rosto.
— Puta merda! — xinguei de novo, sentindo o barro gelado se entranhando no meu cabelo e pela gola do casaco. Por sorte, eu ainda estava calçado e perto o suficiente da porteira para conseguir me segurar numa das tábuas desgastadas pela exposição ao tempo e me içar para cima.
Como todo mundo que leva um tombaço, foi automático olhar em volta para ver se alguém tinha visto. Para a minha sorte, estávamos no meio do nada. Para a minha falta de sorte, o Lourenço se sacudia por inteiro de tanto rir. A Bia, mais discreta, me encarava com os olhos arregalados e o sorriso escondido atrás da mão tampando a boca.
Virei para a porteira, tirando o excesso de barro do cabelo e tentando ver o lado positivo da coisa, pelo menos, ninguém tinha filmado o vexame.
Abrir um portão de madeira parecia uma tarefa simples, mas eu já estava cogitando gritar "abre-te, sésamo", depois de vários segundos não achando nenhum tipo de maçaneta ou trinco que me ajudasse a vencer, o que eu esperava ser, o último obstáculo no meu caminho para chegar na Mariana.
— Na segunda tábua, de cima pra baixo. — A voz do Lourenço saiu abafada de dentro do carro. — O pedaço de madeira mais grosso? Puxa pro lado.
Eu fiz o que ele mandou e quando o próprio peso da porteira começou a levá-la para trás, pulei nela e fui junto. Minha satisfação com a minha esperteza durou só até o Lourenço parar o carro do meu lado.
— Fecha direito. Se alguma vaca da tia fugir por sua causa, ela te mata. — Ele fez um sinal com a cabeça, indicando a estrada na nossa frente. — A casa fica logo depois da curva.
— Você vai me deixar aqui? — Estendi a mão, segurando o vidro da janela que ele tinha começado a levantar.
— Essa caminhonete está praticamente vendida. Sinto muito, mas eu não posso deixar você manchar o banco de barro.
— Ei! — eu gritei quando ele arrancou e levantei os braços em frente ao rosto me protegendo muito mal da nova leva de barro que o girar do pneu jogou na minha direção.
Aposto que ele tinha feito de propósito, o imbecil, mas ele podia se preparar. Ele ia casar com a minha irmã. Se os meus planos dessem certo, eu ia fazer o mesmo com a irmã dele. Nossa convivência ia ser looooonga. Quando ele menos esperasse, eu dava o troco.
A minha irritação nem era tanto por ir andando na chuva, mas eu estava perdendo o elemento surpresa. Quando eu chegasse, a Mariana já ia estar me esperando. Ou trancada no quarto, se recusando a me ver.
Depois de me certificar que a porteira estava bem fechada, fui caminhando pelo cantinho da estrada, onde descobri que o chão era mais firme, e logo depois da curva, como prometido, fui brindado pela visão da casa. Não fossem a chuva e o barro me gelando dos pés à cabeça, eu teria parado por alguns segundos para apreciar a paisagem bonita: a casa de madeira branca e janelas azuis, levantada do chão por estacas de madeira, como parecia ser o costume no Rio Grande de Sul, envolvida numa névoa esbranquiçada e rodeada por uma varanda larga, arbustos floridos, árvores altas e pinheiros verdinhos.
Pulei no caminho de pedras que atravessava o jardim e apressei o passo. Do lado da casa, na garagem coberta, o seu Rodolfo e a dona Marinês recepcionavam o Lourenço e a Bia com expressões de surpresa e satisfação. Meu coração quase parou quando não vi a Mariana entre eles. Ao me notar, o Lourenço se virou para a Bia:
— Não disse que ele chegava aqui vivo?
Talvez eu não precisasse me vingar. Talvez, a minha irmã já estivesse cuidando disso por mim. Foi a impressão que eu tive quando ela ignorou o namorado e veio até mim, a testa enrugada de preocupação.
— Tudo bem com você?
— Tudo — eu menti. Eu estava cansado, nervoso, com frio, coberto de barro misturado com um troço verde e fedorento que eu desconfiava ser titica de vaca, e parecia que todo o meu esforço tinha sido em vão. — Cadê a Mariana?
O Lourenço apertou os lábios e soltou um suspiro.
— Eu tenho uma notícia boa e uma ruim. — Ele colocou as mãos no quadril e eu só não voei no pescoço do desgraçado que tinha me feito me enfrentar a viagem do inferno por nada, porque ele parecia tão contrariado quanto eu.
E eu não precisava que ele me desse a notícia ruim. Era óbvio.
— A Mariana não está aqui. — A afirmação saiu coberta pelo meu desapontamento.
Ele assentiu.
— Aqui não, mas... — Ele sorriu e meu coração disparou. — Ela está no rancho, não muito longe daqui.
Não interessava se era perto ou a mil quilômetros de distância. Se o caminho fosse infestado com mil perigos e adversidades, não tinha importância. Não existia nada no mundo que pudesse me impedir de ir onde a Mariana estava.
— Eu vou tomar um banho e trocar de roupa e você vai me levar lá. — Eu apontei o dedo para o Lourenço, decidido a não aceitar uma recusa.
— Você não quer nem escutar a notícia ruim?
Notícia ruim? O que podia ser pior que não ter encontrado a Mariana?
O sorriso do Lourenço aumentou ao perceber minha confusão e meu estômago despencou.
— Não tem como ir de carro. Você já andou a cavalo?
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