Capítulo 29
♥ Fred ♥
— Fred? — Uma mão deslizou pelo meu cabelo e eu enterrei o rosto no travesseiro.
Se o alarme do celular não tinha tocado, ainda era cedo. Se a voz da Bia estava calma, não era emergência. Se eu não estava sentindo cheiro de fumaça, o mundo não estava acabando. Acordar pra quê?
— Deixa comigo.
Outra voz, mais grossa, penetrou pela neblina do meu sono. Eu tinha todas as intenções de também deixar essa voz no vácuo, não fossem duas mãos me segurando por baixo dos braços e me sentando à força encostado na cabeceira da cama.
Eu realmente precisava começar a trancar o cacete da minha porta!
— Que porra... Ai! — Uma pontada na cabeça me impediu de continuar falando.
Com muito custo, venci o peso das minhas pálpebras e dei de cara com o Lourenço cuspindo fogo pelas ventas, com a mão espalmada no meu peito, me segurando sentado.
— Foi por isso que você e a Mari brigaram? Ela descobriu que você joga pro outro time?
Não deu tempo de decifrar a acusação do Lourenço. Primeiro, porque o nome da Mariana trouxe a noite anterior de volta. A bomba da Naiara, a nossa briga e...
— Eu tenho certeza que tem alguma coisa ofensiva nesse comentário — o Ângelo resmungou do meu lado, me fazendo lembrar também do meu telefonema para ele. — E eu juro que eu vou descobrir o que, quando a bateria da Mangueira parar de tocar dentro do meu crânio.
Depois que a porta bateu atrás da Mariana, eu quis, mais que qualquer outra coisa, ir atrás, mas me obriguei a respeitar a vontade dela. Já tinha sido tão difícil não arrastar a teimosa de volta para o sofá e fazê-la me escutar até eu conseguir afastar da cabeça dela a noção ridícula que eu e a Naiara devíamos ficar juntos por causa de um filho. Mas a lição do Natal ainda estava em carne viva na minha memória, e eu tinha conseguido me controlar.
O que eu não tinha conseguido, foi não ligar para o Ângelo que, depois de escutar duas palavras, Naiara e grávida, me mandou ficar exatamente onde eu estava, desligou na minha cara e apareceu na minha casa meia hora depois, com a garrafa que eu e o Elias acabamos não secando no ano novo, debaixo do braço.
Eu lembro de despejar o enredo de novela mexicana em cima dele entre vários copos de tequila. Depois, ficava tudo confuso. Eu tinha uma vaga lembrança da panela de risoto e nós dois, com colheres na mão, comendo direto dela. Meu estômago não gostou do lembrete e ameaçou se revoltar, mas eu respirei pela boca e mandei ele se comportar. Felizmente, ele pareceu entender que não seria vantajoso para ninguém, rever o jantar da noite anterior e me obedeceu.
Eu também lembrava de chorar e esperava, por tudo de mais sagrado no mundo, que fosse um exagero da quantidade de álcool consumido a lembrança dos soluços desesperados e lágrimas que eu limpei no pano de prato. Isso, ou que a tequila estivesse tendo o mesmo efeito amnésia no Ângelo, senão eu nunca mais ia ter sossego na vida.
Como nós dois tínhamos parado na minha cama? Nem ideia. Mas, apesar de o Ângelo estar sem camisa, ele estava com a calça jeans abotoada, tornando absurda a suspeita do Lourenço. Para confirmar, dei uma olhada em mim mesmo. Eu estava com a camisa do dia anterior, sem calça, mas com a cueca no lugar e um par de meias... Eu encolhi as pernas para ver melhor, meias pretas cheias de pimentinhas vermelhas?
— Essa meia é sua? — eu perguntei para o homem deitado do meu lado.
— Você não parava de reclamar de frio no pé, e eu coloquei em você.
— Que meigo, o casal de namoradinhos cuidando um do outro — o Lourenço debochou.
— Eu já tenho namorado! — O Ângelo levantou a cabeça e protestou ao mesmo tempo em que eu me defendia:
— Deixa de ser maldoso! Dois amigos não podem dormir na mesma cama?
Apesar de toda a convicção que eu coloquei na voz, dei uma olhadinha para o Ângelo, em busca da confirmação de que eu não estava falando merda.
— Relaxa, Fred, você continua CV. A não ser que tenha mais alguma coisa que você está escondendo do seu melhor amigo?
Se ele fosse o super-homem, tinha me fritado vivo com o olhar naquele minuto. Então, ele ainda estava bravo por eu ter omitido a minha transa com a Naiara.
— Mais nada, eu juro. — Tentei balançar a cabeça para dar ênfase à minha promessa, mas outra pontada me fez recostar na cabeceira com bastante cuidado.
— Eu preciso ir no banheiro. — O Ângelo jogou as pernas para fora da cama e agarrou a camiseta dele, embolada no lençol, antes de levantar. — Posso usar a sua escova de dentes?
— Se você quiser eu te mate — eu ameacei.
— Me beijar você pode, mas me emprestar a escova de dentes é motivo pra assassinato? — Ele me olhou sério por dois segundos antes de cair na gargalhada com a minha cara de pânico. — Você é um idiota.
Filho da puta! Eu teria jogado alguma coisa nele, se o primeiro objeto que a minha mão agarrou não tivesse sido o travesseiro do meu lado, que não ia causar o estrago que eu tinha em mente. E como ele conseguia rir sem estar com mil pedaços de cabeça explodida voando pelos ares?
Assim que a porta do banheiro fechou, a Bia colocou a mão no ombro do Lourenço.
— Deixa comigo — ela pediu e trocou de lugar com o namorado, sentando na beirada da cama, com a testa franzida. — Fred, o que o Ângelo quis dizer com CV? Não tem nada a ver com o comando vermelho, tem?
— Claro que não! — Segurei a mão dela e dei vários tapinhas tranquilizadores, evitando olhar para o Lourenço que soltou um som parecido com uma risada estrangulada. — Esquece. O Ângelo não está falando coisa com coisa.
— Me conta então, por que você e a Mariana brigaram?
Soltei a mão da Bia e puxei o lençol até a cintura, me sentindo exposto, de repente. Se eu pudesse, teria continuado puxando o lençol até a cabeça, me escondendo dela, do Lourenço e do resto do mundo, mas se a minha irmã tinha se dado ao trabalho de vir na minha casa tirar satisfações, eu ia precisar de um esconderijo mais eficiente que um tecido branco listrado de azul para me salvar.
— A gente não brigou. — Eu minimizei para não deixar a Bia mais preocupada, ou o Lourenço mais irritado. — Foi uma divergência de opinião, mas eu vou resolver tudo hoje.
Não tinha nada que pudesse me impedir de ir atrás da Mariana. Uma noite inteira para pensar, era suficiente. Eu ainda não sabia como, mas eu ia convencer aquela cabeça dura que a minha ajuda à Naiara para criar um possível filho meu, não queria dizer que eu ia desistir de ficar com ela.
O Lourenço me olhou de cima e cruzou os braços, antes de massacrar minhas boas intenções.
— Deve ter sido uma divergência e tanto pra fazer a minha irmã pegar o primeiro voo pra Porto Alegre, agora de manhã.
— Porto Alegre? — Eu ajoelhei na cama, ignorando a dor de cabeça. — Ela foi embora?
Impossível! A Mariana não ia tomar uma atitude radical daquelas sem me avisar. Ela tinha me prometido uma conversa, e até eu via que aquele era um assunto que não podia ser resolvido pelo telefone. Meu celular! Talvez ela tivesse me deixado uma mensagem? Agarrei o telefone da mesinha de cabeceira.
— Deve estar sem bateria — a Bia avisou enquanto eu tentava, em vão, fazer a porra do telefone funcionar. — Eu tentei te ligar várias vezes, todas direto pra caixa postal.
— O carregador? — Eu procurei pelo fio que ficava eternamente ligado na tomada perto da minha cama. — Eu preciso ligar pra Mariana.
— Me dá aqui. — A Bia tomou o aparelho da minha mão, se abaixando para pegar a ponta do carregador do chão perto da cama, onde ele estava caído, e uniu os dois. — Mas Fred, a Mariana ligou pro Lourenço da sala de embarque. A essa hora ela deve estar voando. Você só vai conseguir falar com ela depois que ela pousar.
Puta merda! Eu caí sentado na cama, massageando minha nuca mais tensa que... a coisa mais tensa do mundo. Desculpa, mas você já tentou ser criativo com o crânio sendo pisoteado por trezentas mil pessoas usando pernas de pau?
E sério, quando a Mariana disse que precisava ir para casa, eu achei que ela estava falando do apartamento em Copacabana, não em colocar não sei quantos milhões de quilômetros entre a gente. Cara, ela estava muito mais chateada que eu tinha imaginado.
— Você não quer me contar o que aconteceu? — a Bia perguntou, passando os dedos frios pela minha testa em fogo.
Eu não sabia se eu queria. Aquele era um assunto particular da Naiara que tinha uma chance grande de não ter nada a ver comigo. E se eu me senti na obrigação de me abrir com a Mariana, a minha irmã era outra história. A minha consciência não ia ficar nem um pouco pesada de fazê-la esperar pelo resultado do teste de paternidade para contar. Ou não precisar contar nunca. Dedos cruzados pela última opção.
— Eu preciso de café — o Ângelo interrompeu meu dilema interno, abrindo a porta do banheiro. — Por favor, Fred, me diz que tem pó de café.
— Tem pó de café — eu repeti sabendo que não tinha, só para ele não encher o saco, ao mesmo tempo em que me lembrava que talvez fosse verdade.
E uma nova onda de desespero me fez perder a respiração. Quando a Mariana disse que tinha comprado tudo para o nosso café da manhã, eu tinha imaginado nós dois tomando café na cama, juntinhos. O que poderia estar acontecendo naquele momento, não fosse a minha imbecilidade. Porque no final das contas, era tudo culpa minha. Todas as camisinhas do mundo podiam estar com defeito ou estouradas que eu não estaria naquela roubada se eu tivesse sido forte e resistido às provocações da Naiara.
— Pode deixar que eu te trago uma xícara — o Ângelo ofereceu. E eu devia saber que era bondade demais para um melhor amigo magoado, e burro fui eu de não ter previsto que ele não ia deixar barato. Ele deu uma paradinha perto da porta antes de sair. — Ah! E conta logo pra Bia. Uma hora, ela vai acabar sabendo que vai ser titia.
— Titia? — A Bia fincou as unhas no meu joelho, os olhos arregalados.
— A Mariana está grávida? — O Lourenço deu um passo ameaçador na minha direção. — E você não quer assumir? Foi por isso que ela foi embora?
— Não! Não é a Mariana que está grávida! — Eu não sei porque eu achei que aquilo ia acalmar o Lourenço, mas, claro, teve o efeito contrário e ele fechou as duas mãos, dando outro passo à frente. — Espera! Não é o que você está pensando! A história é mais complicada. Eu nem sei se o filho é meu.
— Tranquilo. — Ele puxou a cadeira de perto da estante e sentou nela ao contrário, com os braços apoiados no encosto. — Eu não tenho mais nada pra fazer. Pode começar a falar.
A minha vontade foi mandar o Lourenço à merda. Eu não devia satisfações a ele, mas mordi a língua. Talvez, não fosse boa ideia antagonizar o irmão da Mariana. E eu não podia dizer que eu não entendia o arrogante. Eu mesmo só não tinha ido quebrar a cara dele quando a Bia disse que estava grávida da Alícia porque o infeliz teve a sorte de estar preso na ocasião.
— Vocês lembram da Naiara. Que trabalha comigo? — Eu me virei para o Lourenço. — Você conheceu ela naquele dia, na Lapa.
O Lourenço assentiu.
— E você sabe que ela me trouxe em casa — eu me dirigi à Bia. — E eu e ela... ficamos.
— Eu lembro que ela te deu carona — a Bia falou num tom de voz que me fez encolher um pouco. — Eu também lembro de você dizendo, na maior cara de pau no dia seguinte, que tinha dormido e acordado sozinho na sua cama. Eu estou errada, Fred?
Foi exatamente o que eu disse. Mas, puta que pariu se eu ia admitir para mais alguém que eu tinha transado com a Naiara dentro do carro, na porta de casa.
— Não, Biatriz, você está certa, mas eu não menti, e peço desculpas por ter dado a entender que não tinha rolado nada com a Naiara. Eu só fiz isso porque foi insignificante. Escuta. — Eu olhei dela para o Lourenço. — Eu não fiz nada errado. Eu já estava interessado na Mariana, mas ela me dispensou. Ela foi bem clara dizendo que eu podia ficar com qualquer uma, desde que eu deixasse ela em paz. E eu não enganei a Naiara, ela queria se divertir, eu também e ponto final.
— Se o papai estivesse aqui, ele ia te dar uma surra tão grande — a Bia disse entredentes e, aparentemente, resolveu compensar a falta do meu pai, enchendo meu braço e peito de tapas. — Eu. Não. Acredito. Que você. Não usou. Camisinha!
Eu puxei o travesseiro, que graças a Deus eu não tinha jogado no Ângelo, para me defender da minha irmã. A mulher era magra, mas tinha a mão pesada pra cacete!
— Caramba, Bia! Claro que eu usei camisinha!
Eu devia mandar fazer uns folhetos com aquela frase. Talvez, eu pudesse parar de repetir e repetir e repetir a mesma coisa.
— Você usou? — Ela pausou o ataque esperando a minha resposta.
— Eu não sou idiota.
— Mas, então, você não pode ter engravidado a moça — o Lourenço concluiu, me olhando como se eu fosse um idiota por não ter chegado sozinho à conclusão óbvia.
— A camisinha só é eficiente em 98% dos casos — a minha irmã respondeu por mim.
— Sério? — O Lourenço esticou o corpo na cadeira, o rosto perdendo a cor. — Quer dizer que de cada cem mulheres com quem eu transei, duas podem ter ficado grávidas?
Eu cheguei a abrir a boca para explicar que não era bem daquele jeito que funcionava, que muitos outros fatores entravam naquela questão, mas eu não quis interromper a virada de cabeça da Bia para ele, igualzinha à da menina do Exorcista.
— De quantos grupos de cem, nós estamos falando, exatamente? — ela perguntou com a voz doce, mas eu fiquei esperando o jorro de vômito verde a qualquer momento.
— Hipoteticamente falando, amor. — O Lourenço conseguiu empalidecer mais. — Eu não fico contando esse tipo de coisa.
Para a sorte dele, a Bia tinha algo mais importante em que se focar, e virou a atenção dela de volta para mim.
— E você vai fazer um teste de DNA, né?
— Não, Biatriz. Eu não te contei? — Eu joguei o travesseiro de volta no lugar. — Eu assumo o filho de qualquer uma que bate na minha porta.
— Sarcasmo é o argumento de quem não tem argumentos, Fred. — Ela revirou os olhos. — Com quantas semanas ela está?
— Daqui a um mês a gente vai saber. E tem outro cara na parada. Ela também usou camisinha com ele, mas ele também pode ser o pai.
— E a Mariana não quis esperar aqui, com você? — A Bia suavizou a voz para me fazer a pergunta, o que não fez doer menos.
— Ela ficou chateada, claro, e me pediu um tempo pra pensar. Eu só não achei que ela ia pensar lá em Porto Alegre. — Deitei a cabeça no encosto da cama, desanimado.
— Olha, Fred, eu te entendo. — O Lourenço usou o mesmo tom suave da Bia. — Você mesmo disse, você não fez nada errado. Você era solteiro, foi responsável e usou preservativo. Mas eu também entendo a Mariana, sabe? Ela não gosta de falar, mas eu sei que ela morre de vontade de ser mãe. Imagina ela ver você acompanhando essa moça nas consultas médicas, a sua felicidade no dia que você descobrir se é menino ou menina, comprando roupinhas... Não é fácil pra ela.
— Concordo com você, Lourenço — a Bia me defendeu. — Mas a gente nem sabe se o filho é dele e...
— Ei, vocês dois — eu interrompi. — Eu e a Mariana vamos resolver isso. Eu e ela. Nada de vocês discutirem por nossa causa.
— Claro que não! — A Bia estendeu a mão para o Lourenço, que a pegou com um sorriso, acariciando com o polegar. — Mas a gente quer ajudar, se possível.
— Olha o café! — O Ângelo entrou no quarto, segurando quatro xícaras pelas asas, duas em cada mão. — Biatriz, suas filhas estão cada dia mais lindas!
— Obrigada — ela respondeu ao elogio, mas recusou a xícara de café que ele tentou dar a ela. — Eu não tomo café.
— Sem problema. O nosso Dom Juan aqui toma dois. Ele está precisando. — Ele colocou duas xícaras na mesinha do meu lado.
— As meninas estão aqui? — Eu abri a gaveta e peguei um remédio de dor de cabeça para tomar com o café. — O Diego não veio buscar elas?
— Ele teve que viajar.
— Em que parte da história nós estamos? — O Ângelo entregou uma xícara para o Lourenço, que aceitou com um agradecimento, antes de desabar dramaticamente na cama do meu lado com a xícara dele, sem derramar uma gota.
— Na parte que eu fico sabendo que a Mariana voltou pra Porto Alegre. — Eu joguei a cartela de comprimidos no colo dele depois de tirar dois para mim.
— Barbaridade! — O Lourenço fez uma careta. — Isso não é café com açúcar. É açúcar com café.
— Glicose. Ótimo pra ressaca — o Ângelo anunciou como se fosse a novidade do século.
Engoli os comprimidos e tomei um gole do líquido quente com cuidado. Eu concordava com o Lourenço e, em outra ocasião, teria largado de lado o pior café que eu já tinha experimentado, mas a minha moral não andava alta com o Ângelo e continuei bebendo e sorrindo para mostrar como eu era agradecido por ter um amigo tão atencioso. Pela maneira que ele me olhava de lado, ele estava longe de cair na minha farsa, mas felizmente, como a Bia, preferiu se concentrar no que importava.
— E o que você vai fazer? — O Ângelo sentou de pernas cruzadas, virado para mim.
Eu adorava perguntas fáceis, logo de manhã, enquanto tentava me recuperar da noite em que tudo o que podia dar errado na minha vida conseguiu ser pior, chegando ao ponto de me sentir parte de uma tragédia grega, se personagens de tragédias gregas tivessem acesso à tequila.
O meu plano de conseguir o endereço do apartamento de Copacabana, ir até lá, esperar um vizinho distraído sair, pegar a porta um segundo antes de fechar e tocar a campainha do apartamento da Mariana até ela atender, ou alguém chamar a polícia, não ia mais funcionar. Dei uma olhadinha para o meu celular voltando ao mundo dos vivos, mas o que ia adiantar uma mensagem para ela ler quando chegasse a Porto Alegre? O fato da Mariana estar se dando ao trabalho de colocar tanta distância entre nós, era um recado claro do quanto ela não queria falar comigo.
— Fred — o Ângelo chamou, segurando meu braço. — Você lembra da nossa conversa no ano novo?
— Quando você disse que eu sou a melhor pessoa que você conhece? — Eu sabia onde ele queria chegar. A brincadeira foi para atrasar um pouco o ponto onde eu ia demonstrar, outra vez, a minha total inabilidade em consertar minhas merdas.
— Surtou. Eu nunca disse isso. — O Ângelo revirou os olhos na direção da Bia e do Lourenço. — Eu estou falando da parte em que eu disse que você é um menino mimado que sempre recebeu tudo numa bandeja de prata.
— De mão beijada — eu resmunguei baixinho depois dos vários segundos de silêncio que seguiram a acusação do Ângelo e onde uma defesa acalorada da minha própria irmã não aconteceu. Mas aquela não era hora de fazer birra e, antes que o Ângelo pudesse me humilhar mais, dizendo exatamente aquilo, resolvi agir como o adulto maduro e consciente que eu fazia questão de fingir que eu era. — Eu tenho que lutar pela Mariana.
— Muito bem! — ele exclamou como se eu fosse um menino de oito anos fazendo xixi na privada pela primeira vez. — E como você vai fazer isso?
— Humm... — Eu tomei outro gole de café e dei uma olhadinha para o lado da Bia e do Lourenço, esperando a contribuição deles. Quer dizer, a Bia era mulher, e o Lourenço conhecia a Mariana há mais tempo que eu, com certeza as ideias deles seriam melhores que as que não estavam pipocando na minha cabeça completamente vazia.
— Não. — O Ângelo puxou meu queixo, me fazendo olhar para ele. — Você não precisa de ajuda. Você já sabe o que você tem que fazer.
— Eu tenho que conversar com a Mariana.
— E... — ele incentivou.
— Não pode ser pelo telefone.
Ele assentiu, com os olhos arregalados e os lábios apertados, prendendo alguma coisa que ele estava morrendo de vontade de falar, mas não ia, porque eu mesmo tinha que chegar lá.
Eu culpo a ressaca pela minha lentidão em enxergar o óbvio. Apesar de ter melhorado um pouco graças ao café melado do Ângelo, minha massa cinzenta ainda estava debilitada. Mas, enfim, aconteceu. Se eu estivesse num desenho animado, todo mundo ia ver a lâmpada acendendo em cima da minha cabeça.
Eu tinha o plano. Era só adaptá-lo a um outro cenário. A Mariana tinha vindo atrás de mim uma vez. Era a minha hora de ir atrás dela.
Eu me virei para o Lourenço.
— Eu preciso do endereço da Mariana em Porto Alegre.
— Yeeeesssss!!! — o Ângelo celebrou enquanto o Lourenço respirava fundo, abria a boca e fechava, de novo, sem dizer nada.
— Tudo bem. — Eu estendi a mão na direção dele. — Eu entendo, você é irmão da Mariana. Tem que ficar do lado dela. Eu dou um jeito.
Eu ia para Porto Alegre primeiro. Depois, ligava para ela. Ela não ia se recusar a me ver quando soubesse que eu estava lá. E mesmo se ela não quisesse atender aos meus telefonemas, eu tinha o Google, Facebook e o Instagram. Eu ia achar aquela mulher nem que eu tivesse que bater de porta em porta.
— Não é isso — o Lourenço cortou minha sequência de ideias brilhantes. — Eu te dou o endereço da Mariana, mas se eu conheço a minha irmã, ela não deve ir pra casa. Ela sempre se esconde na fazenda quando termina um namoro.
Eu passei por cima do fato do Lourenço achar que a Mariana estava considerando nossa briga um término e voltei meus pensamentos para o lado produtivo de continuar planejando como eu ia chegar até ela.
— Você me dá o endereço da fazenda, então.
— Claro. Na estrada que liga Gramado e Canela, você vira na terceira estrada de terra, passa da esquina com a árvore grande, entra na avenida dos mata-burros...
— Peraí! — Eu larguei a xícara de café morno na mesinha de cabeceira e abri a gaveta procurando por um pedaço de papel e uma caneta. — Eu preciso anotar.
— Fred. — A Bia segurou a minha mão. — O que eu acho que o Lourenço está querendo dizer, é que a fazenda não tem endereço.
— Ah... — Eu voltei a me encostar na cabeceira da cama, me forçando a sorrir para o imbecil que tinha acabado de me fazer de idiota, porque eu precisava da porra da ajuda dele. — Não deve ser tão difícil assim, chegar lá.
— É bem complicado. — Ele sorriu de volta, feliz em me ver obrigado a engolir minha vontade de pular no pescoço dele. — E eu podia pedir pro tio Rodolfo te pegar em Gramado, mas eu vou ser sincero, ele não ia fazer isso sem contar pra Mariana, e se ela realmente não quiser te ver e sumir da fazenda, aí a gente não acha mais ela.
— A Alexa? — eu perguntei. A Mariana tinha me contado como a irmã tinha ficado feliz quando ela contou que nós estávamos juntos. Se eu explicasse a situação com jeitinho, eu acho que eu conseguia a ajuda dela, sem que ela contasse nada para a Mariana, como o Lourenço parecia disposto a fazer. — Será que ela não me levava na fazenda?
— A Alexa está em São Paulo, numa feira de noivas. O Lucas está com ela — ele disse, passando a mão pelos cabelos.
— Alguém, Lourenço? — a Bia perguntou quando eu já estava a ponto de jogar meu orgulho no lixo e ajoelhar aos pés dele. — A família da sua tia é enorme. Não tem ninguém que pode fazer o favor de levar o Fred lá?
— Eu tenho uma ideia melhor. — Ele desviou o olhar de mim para a minha irmã. — Lembra de como você disse que as meninas iam adorar conhecer a fazenda?
Ela deu um gritinho e ficou em pé com um pulo.
— Eu arrumo as malas, você compra as passagens. — Ela saiu correndo do quarto antes que eu perguntasse com quem ela estava falando sobre as passagens.
— Você compra as passagens — o Lourenço esclareceu, lendo meu pensamento. — A gente vai por sua causa, você paga.
Da minha boca, não ia sair uma reclamação que fosse. Era para situações como essas que existiam cartões de crédito. O que era estourar uns dois ou três, comprando cinco passagens de última hora, perto de saber que eu estava indo atrás da mulher da minha vida?
— Obrigado — eu agradeci ao Lourenço mesmo sabendo que ele não estava indo comigo só para me ajudar. Proteção de irmão era uma via de mão dupla, e ele provavelmente queria estar perto para me dar uma surra, caso fosse necessário. O que não ia ser.
— Você não precisa me agradecer. Só faz a Mariana voltar a sorrir como quando ela está do seu lado, e eu fico satisfeito.
— Estou orgulhoso de você. — O Ângelo segurou meu ombro e deu um aperto. — E agora que está tudo resolvido, eu preciso ligar pro meu namorado pra dizer que eu ainda estou vivo. Espera ele saber que eu dormi de conchinha com o doutor gostosão dele.
— A gente não dormiu de conchinha! — Eu olhei para ele com o coração pulando pela boca.
— Eu tenho fotos! E eu era a conchinha de fora, só pra você saber. — Ele se retorceu e tirou o telefone do bolso. — Ah! Eu também joguei fora o pano de prato que você usou pra limpar o catarro do seu choro de ontem à noite.
— Ele chorou? — o Lourenço perguntou com um sorriso que só podia ser descrito como maquiavélico.
— Eu não chorei! — eu gritei para ninguém, porque nenhum dos dois me deu a menor bola.
— Eu filmei. — O Ângelo levantou e andou na direção do Lourenço. — Você quer ver?
Puta que pariu!
Eu escorreguei para baixo e puxei o lençol por cima da minha cabeça.
E eu achando que a minha vida era uma tragédia grega antes...
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