02. Mordomo
Havia quase dez dias que Alicia fora morar com Margot. As duas estavam se dando bem, e aos trancos e barrancos Cici estava aprendendo a trabalhar na Alma Adocicada.
Estava acompanhando a tia em tudo: atender os clientes, receber novas entregas de chá, limpar. De fato, Alicia não sabia fazer muita coisa considerada básica, e Margot percebeu isso logo de cara. Porém, ela aprendia rápido, e sua força de vontade parecia se renovar a cada vez que arranjavam algo para fazerem juntas.
Cici era apegada à ideia de momentos em família, e os principais daqueles primeiros dias envolviam a decoração de seu quarto. A tia dissera que ela poderia escolher tudo, inclusive a cor das paredes, e foi isso que fez.
Escolheu um tom de verde claro e branco, então ela e Margot passaram uma noite inteira lutando com os baldes de tinta. E, depois, Alicia começou a pintar esboços de flores nas paredes verdes. Pintar era uma de suas paixões, mas não era sempre que tinha chance de exercê-la.
De qualquer forma, Alicia se sentia empolgada com a ideia de criar um cantinho só seu. Ela se agarrava a isso, porque, assim, mesmo com as mudanças que viriam, teria um espaço que seria imutável.
Quando o medo sussurrava em seu ouvido que não seria capaz, ela se lembrava que logo teria um refúgio para dissolver esses receios, mesmo que não pudesse ficar nele todo tempo. Por isso, estava determinada a terminar as decorações o mais rápido possível.
E por isso, também, que ela estava agora andando pelo centro da cidade até a carpintaria que sua tia dissera que ela poderia comprar uma estante para colocar seus livros e um móvel de cabeceira.
Margot havia até desenhado o caminho no papel para Cici, e ainda assim, quem olhasse para a garota perceberia um pequeno desespero. Ela definitivamente não estava acostumada a andar por aí com tanta gente ao redor, com coisas rápidas como carruagens e cavalos e vendedores com carrinhos e crianças.
Só sabia que devia olhar para os lados sempre antes de atravessar a rua. Porém, mesmo com o cuidado, em algum momento uma bicicleta surgiu de repente, passando de raspão por Alicia, e ela caiu para o lado com o susto.
— Ei! Olha por onde anda! — exclamou o rapaz que pedalava, meio em choque.
— Eu que sugiro que faça isso! — Alicia retrucou, tirando o cabelo do rosto enquanto se levantava. Ela não sabia fazer os penteados que sua mãe fazia, por isso estava tendo dificuldades em manter os fios longe do rosto.
Quando conseguiu colocar a maioria deles atrás das orelhas, ela fixou os olhos raivosos no rapaz. Ele tinha um cabelo preto protegido por uma boina e olhos mais escuros ainda.
— Eu estava olhando, moça! Você quem se precipitou!
— Eu também estava olhando, moço. — Alicia ironizou, as mãos nos quadris. Ela sentiu os olhares das pessoas ao redor, e ao perceber que chamava atenção, sua atitude indignada recuou.
— Senhorita...
— Algum problema por aqui? — um homem que parecia ser um policial se intrometeu, encarando os dois jovens com um olhar questionador. A briga pareceu esfriar na hora.
— Não, senhor.
Responderam em uníssono, e o guarda se foi depois de analisá-los por alguns instantes. Antes de seguir, Alicia encarou mortalmente o rapaz uma última vez.
Ela seguiu o resto do caminho todo até a carpintaria com o passo pesado. Precisava extravasar de alguma forma.
— Bem-vinda. — uma voz masculina cumprimentou Alicia quando ela passou pela porta e um sininho soou — Você deve ser a sobrinha de Margot, não é?
Ela assentiu, surpresa pela tia ter comentado dela. No entanto, não mais surpresa do que em relação ao lugar, tudo ali era bonito.
Os móveis de madeira pareciam ter acabado de serem feitos, de tão lustrosos e novos. Alguns eram pintados por inteiro, e outros tinham somente alguns detalhes ressaltados.
— Eu sou Alfredo Morales, sua tia comentou comigo sobre o que você procurava hoje mais cedo quando me encontrou. — um homem de pele negra saiu de trás do balcão de madeira, largando alguns papéis para trás — Então, já tenho em mente alguns modelos de estantes que poderia gostar.
— Prazer, Sr. Morales, sou Alicia. — Cici fez uma pequena reverência ao abaixar a cabeça — Muito obrigada por separar um tempo e escolher algumas recomendações.
— Por nada, senhorita. — ele a lançou um sorriso gentil — Gostaria de ver?
— Por favor.
— Ótimo, por aqui. — Sr. Morales começou a guiá-la até o outro lado da loja, apenas para parar por um momento, como se tivesse se lembrado de algo — E não se preocupe sobre a entrega das mercadorias, meu aprendiz as levará até você ainda hoje.
Alicia sorriu perante a ideia, mais empolgada que antes para ver seu quarto pronto.
— Que boa notícia, senhor!
Sebastian estimulou a velha égua Hera a continuar puxando a pequena carroça depois que alguns pedestres atravessaram a rua. Ele estava indo fazer a entrega de alguns móveis para a sobrinha de Margot, dona da loja de chás.
Ele estaria mentindo se dissesse que não gostara da ideia de uma nova moça na cidade, ainda mais uma de sua idade. Alfredo ainda dissera que ela era encantadora.
Assim que Sebastian parou a carroça diante da Alma Adocicada e estava prestes a passar pela porta para chamar Margot, ele conseguiu ouvir uma voz que soou estranhamente familiar:
— Tia, obrigada mais uma vez por me deixar escolher os móveis!
Sebastian rapidamente olhou para a garota, quem ele estava tão animado para conhecer. Ele só não esperava que fosse a mesma que ele quase atropelou a caminho da carpintaria.
— Não há de quê, Cici. Mas você terá de trabalhar um horário a mais no resto da semana para compensar. — Margot piscou para ela, e Sebastian quis sumir enquanto nenhuma delas ainda o tinha notado.
— Pode deixar, tia Maggie. — Alicia sorriu, e ela não pareceu tão irritante naquele momento quanto Sebastian estava pensando — E também...
A fala morreu quando notou de canto de olho a figura dele ali. Cici se virou assustada, mas a tia logo foi abrindo um sorriso ao reconhecê-lo.
— Bash, quanto tempo! Pode entrar.
Alicia congelou um momento ao perceber quem ele era, e Sebastian não deixou de notar isso. Com um suspiro interno, ele chegou à conclusão que nem conseguiria ter uma amizade com ela.
— Boa tarde, Margot. — disse ao passar pela porta — Boa tarde, senhorita.
— Boa tarde, moço. — Alicia provocou e Bash corou fortemente. Margot franziu um pouco o cenho com a resposta não usual da sobrinha, mas não fez muito caso.
— Você veio entregar os móveis, não é? Bom, acho melhor deixá-los no quarto de Alicia de uma vez, se não se importar de subir a escada.
— Claro que não.
— Eu o ajudo. — Alicia se ofereceu, um sorriso tanto irônico nos lábios — Estou com medo de que os móveis o impossibilitem de ver o caminho.
Mais uma vez, Sebastian se tornou uma representação abstrata de um tomate. Margot arqueou uma sobrancelha, um pequeno sorriso nos lábios surgindo ao perceber o deboche iniciado pela sobrinha — ela com certeza perguntaria a Cici depois o que aquilo significava.
— Boa ideia, querida. Enquanto isso vou colocando alguns quitutes para assar antes do horário de pico da tarde. — dito isso, ela os deixou a sós, um tanto curiosa para saber como eles se tratariam com o caminho livre para mais ironia.
— Depois de você, moço. — Alicia indicou a porta com a cabeça e Sebastian suspirou antes de seguir até a carroça.
Ele começou a desamarrar as cordas que prendiam a estante e o móvel de cabeceira, sentindo o peso do olhar de Cici, acompanhado por um silêncio mortificador.
— Olha... — Bash tomou coragem e se virou para ela de vez — Eu sinto muito por mais cedo.
— Um pedido de desculpas! — Alicia forçou um semblante chocado — Você sabe se desculpar, então.
— Sei que minha primeira impressão foi horrorosa, mas aquilo foi por causa do susto. — admitiu, e não era mentira — Sou uma pessoa com o mínimo de educação, senhorita.
Cici apenas encarou Sebastian por alguns segundos como resposta e esperou ele descer da carroça o móvel de cabeceira. Com os movimentos, a égua relinchou, chamando a atenção de Alicia, que se aproximou para acariciá-la.
— O nome dela é Hera.
Ela nem sequer desviou o olhar quando sorriu, e aquilo deu a oportunidade a Bash de analisar as feições da garota em uma expressão relaxada. Tinha de admitir, era bonita.
— Como a deusa, hein, garota? — Alicia afagou o pescoço de Hera gentilmente — Deve ter uma personalidade forte.
Bash aderiu a suposição como um gancho para puxar assunto, pois disse:
— Oh, se tem. Quando me tornei aprendiz de Alfredo, há alguns anos, no início foi complicado para realizar as entregas, ela simplesmente não se sentia confortável comigo.
— Então, — Alicia parou de afagar Hera e se distanciou um pouco, encarando-o com um semblante neutro — você não é o mordomo dele?
— O quê? Claro que não! Sou aprendiz, senhorita, aprendiz.
— Bom, "Sebastian" soa como nome de mordomo, não acha? Inclusive, era um personagem de um livro que eu estava lendo, e ele era um mordomo.
Bash arregalou os olhos, completamente ultrajado. Foi aí que a neutralidade de Alicia se tornou uma gargalhada contagiante, e o som reverberou ao redor, fazendo até Sebastian sorrir de leve, mesmo confuso.
— Eu estou brincando! Não vou mais te colocar em situações desconfortáveis, Sebastian. Você já pediu desculpas, e convenhamos que ser irônica assim é desgastante.
Admirado, riu com a constatação, mais leve agora ao saber que estava tudo bem entre eles. O sorriso permaneceu quando ele disse, antes de segurarem o móvel para levar:
— Pode me chamar de Bash.
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