O Primeiro Amor
"O meu coração partiu-se pela primeira vez quando a conheci. Entreguei-o de mão beijada à segunda parte da minha Alma e dessa entrega nunca me arrependi.
Não poderíamos ser mais diferentes, eu e ela. Eu, nascida no pico do Solistício de Inverno, pele de marfim, cabelos ruivos como num fogo lento, olhos safira gélidos e aguçados. Ela, filha do Solisticio de Verão, pele como se beijada pelo sol, cabelos crespos da cor de café com leite, olhos âmbar arrebitados e vivos.
Separadas por realidades diferentes, opostos de nascença, tudo demonstrava que não poderíamos ser o que éramos. Mas como pode divergências sociais e de aparência separar uma Alma? Era isso que éramos: a mesma Alma, apenas em corpos diferentes.
Era impossível nos separar... apenas a Morte o faria, tantos anos depois.
A segunda parte da minha Alma.
Querida Helga."
A primeira vez que os olhos delas se cruzaram foi no aniversário do primeiro ano de Rowena. A grande Mansão dos Ravenclaw estava iluminada por velas, decorada com um pinheiro de Natal enfeitado com adornos que a empregada fizera. Um violino tocava sozinho a um canto e a conversa entre a família soava alta e animada. No centro, ao colo da mãe, Rowena observava, em silêncio. A bebé era diferente; raramente chorava, não tinha explosões de magia e preferia ficar a observar os presentes do que chamar a atenção para si. A sua pele estava sempre fria, os olhos azuis safira muito abertos e atentos, parecendo uma pequena estátua de mármore branco liso de uma bebé com apenas um ano.
Era o seu primeiro Natal, cinco dias depois do seu primeiro aniversário. A pequena Ravenclaw nascera no mais bonito Solisticio de Inverno, a 21 de dezembro. Era o mais belo Solisticio porque nevara todo dia, criando mantos brancos de neve a cobrir os prados verdes que circundavam a Mansão. Nesse dia, o mar agitara-se, as ondas batendo na encosta onde a casa se situava, o cheiro a maresia misturando-se com a neve, numa mistura de doçura e sal.
Um fenómeno único, tal como o nascimento da primogénita.
Rowena era uma menina muito desejada pelos pais. Era filha única, a primeira bebé do casal Ravenclaw, a primeira neta dos avós Ravenclaw. Eram uma família unida, poderosa e rica, amigos do Rei de Inglaterra. Arthur Ravenclaw, o pai de Rowena, era o grande General do Exército Real, respeitado e temido por muitos. Gretha Ravenclaw, sua esposa, era a mais fiel amiga da Rainha, a única mulher da corte a pertencer ao ciclo de conselheiros que envolviam a família real. Naquela época, as mulheres pouco ou nada eram respeitadas e Gretha batalhara muito pelo seu posto. Dotada de uma sabedoria e uma astúcia sem precedentes, valera-se de uma boa educação, palavras caras e uma generosa dose de persuasão para se tornar a melhor amiga da Rainha de Inglaterra, enquanto o seu marido fazia o mesmo com o Rei.
Juntos, Arthur e Gretha eram um casal poderoso, imparável, estrategas. Era necessário e não havia margem para erros. Não quando toda a sua família estava em risco.
A caça às bruxas fervilhava pela Europa, o clero e a monarquia sedentos do sangue mágico que corria nas veias de poucos. A família Ravenclaw era inteiramente bruxa. Decorria a chacina aos feiticeiros e só havia duas opções: fugir... ou esconder a magia. Inteligente, Gretha escolhera esconder a sua família debaixo dos narizes da monarquia, ciente de que era muito mais difícil desconfiar de alguém em quem se confia. Fora uma escolha arriscada mas não se arrependiam. O fruto da sua luta e dos seus planos estava ali, a completar um ano, na forma de uma bela menina de olhos safira.
- Margarida. - chamou Gretha, acenando à sua empregada, o rosto contorcido numa expressão preocupada - Podes chegar aqui por favor?
Margarida Hufflepuff aproximou-se, o sorriso meigo de sempre. Era uma mulher de uma beleza diferente, a pele negra salientando-nos olhos dourados como âmbar líquido, os cabelos encaracolados caídos pelas costas do seu corpo rechonchudo. Era uma mulher doce, humilde, educada. O marido, Pedro Hufflepuff, era igual.
Tinham chegado à Grã-Bretanha poucos anos antes, a bordo de mais um navio... De escravos. Sangue africano nas veias, alma despedaçada pelos tormentos e pelo desgaste que tinham enfrentado na viagem, prontos a serem vendidos a quem desse mais. O General Ravenclaw encontrava-se em Londres quando desembarcaram e os seus olhos encontraram de imediato as figuras escanzeladas do casal. Não hesitou em comprá-los, mesmo não necessitando de mais criados.
Os Hufflepuff nunca deixariam de estar gratos à proteção que os Ravenclaw lhes concederam. Se não fosse por eles, provavelmente já não estariam vivos. Afinal de contas, um único motivo atraíra a atenção de Arthur para eles: eram os únicos que não se encontravam sujos dos pés à cabeça, os olhos brilhantes de vida, a evidência de sangue mágico na sua postura mais ereta que os restantes. Negros e mágicos... Arthur compadeceu-se por eles e Gretha não se opusera.
- Maggie, a minha Rowena está tão quieta... - disse a matriarca, entristecida - Será que se passa alguma coisa? A tua filha também é assim tão... sossegada? Temo que a minha esteja doente ou... Não sei, estou preocupada.
- Minha Senhora, a sua filha sempre foi assim. - respondeu Margarida, docemente - A minha, pelo contrário, é um pequeno diabrete. Helga nunca está quieta, Minha Senhora.
- Rowena sempre foi mais sossegada mas mesmo assim...
- Quer que a veja, Minha Senhora? Como sabe, a minha Helga está sempre tão doentinha que eu já sei uma ou duas coisas sobre cura e poções...
- Sim... Sim, talvez seja melhor...
A verdade é que, mesmo com a diferença de estatuto, os Hufflepuff e os Ravenclaw já não poderiam viver separados. Apesar do distanciamento com que se tratavam, Gretha confiava plenamente em Margarida e eram, de certa forma, amigos. Arthur e Pedro também. Faziam parte da família, fosse de que forma fosse. Acima de tudo, eram bruxos e bruxos tinham que se manter unidos naquela época conturbada.
Margarida Hufflepuff pegou na pequena ao colo, observando a menina empurrá-la, detestando o contacto físico. Num murmúrio baixo, Gretha encaminhou os sogros e os próprios pais para que abandonassem o salão, o jantar já terminado. Com meiguice, a chefe das empregadas tocou na testa da bebé, analisando-lhe a temperatura, a respiração, percebendo a sua irritação por estar ao colo e sob tanta atenção.
- Está tudo bem com a sua menina, Miss Ravenclaw. - constatou, encolhendo os ombros - A menina é mesmo assim, quietinha e... difícil. - esboçou um sorriso amigável para a patroa, que observava a sua bebé sentar-se no chão, os olhos safira encarando os adultos com seriedade - Miss Ravenclaw... O que acha das nossas meninas se conhecerem? Sei que é inadequado...
- Que disparate, Margarida. - protestou Gretha, agitando a mão num gesto de desvalorização - Sabes que és da família. Só não sugeri isso antes porque a tua menina sempre foi muito frágil.
A pequena Hufflepuff nascera prematura, no dia mais longo do ano: o Solisticio de Verão. Era pequena, rechonchuda, tivera problemas durante a gestação e estava sempre adoentada, desde que nascera. No entanto, era a menina mais alegre da Grã-Bretanha e o bem mais precioso do casal Hufflepuff.
Margarida agitou a mão. A magia fluiu pelo salão, dirigindo-se à cozinha, onde a sua bebé brincava sozinha. Trouxera-a consigo naquela noite especial por ser Natal, dia da família e do amor. Enquanto cozinhava e preparava as coisas para os patrões, a menina brincava e tagarelava sozinha, enquanto o pai de ocupava em cortar lenha e manter a casa aquecida.
A bebé veio a flutuar até aos braços da mãe, o seu sorriso travesso alargando-se ao vê-la. Arthur e Gretha entreolharam-se. Ficavam sempre fascinados com a capacidade dos Hufflepuff de realizar magia sem varinha, um dom que lhes era desconhecido até os conhecerem. Na Europa, os bruxos necessitavam da varinha para canalizar melhor os seus poderes. Em África, como os Hufflepuff lhes explicaram, as varinhas simplesmente não existiam. Na sua cultura, a magia não era algo domável, era livre, uma força por si só, um Dom que alguém lhes concedera. Para Pedro, fora Deus. Para Margarida, a Deusa Gaia, a Mãe Natureza.
Delicada, a Hufflepuff pousou a filha no chão, ao lado de Rowena. Helga agitou os braços, um sorriso gigante desenhado na sua boca desdentada. Rowena, por seu lado, prensou os lábios. A Hufflepuff fez uma careta, aproximando-se da ruiva a gatinhar furtivamente. A Ravenclaw soltou um guincho, querendo fugir da outra bebé, os olhos arregalados de pânico. Não era uma menina que gostasse de muitos afetos e contacto com outros. Vendo a filha assustada, Gretha fez menção de a pegar mas Arthur impediu-a, os olhos analisando a filha com atenção.
Os braços caramelizados de Helga envolveram a barriga de Rowena, cuja pele cor de neve do rosto estava agora vermelho de irritação. Lentamente, a sua expressão suavizou-se, os ombros descaindo à medida que se sentia mais confortável em ser abraçada pela mais nova. Esta esboçou um sorriso gigante, os olhos âmbar redondos brilhantes de alegria e entusiasmo.
- Rowena... - chamou Gretha mas calou-se ao ver Helga franzir o sobrolho, os lábios unidos, muito concentrada.
- Reyna.
Margarida levou a mão à boca, abafando a exclamação de surpresa. Sem entender e de forma muito genuína, Gretha abanou a cabeça, corrigindo a pequena:
- É Rowena, querida. O nome dela é Rowena.
Helga fez beicinho, abanando a cabeça.
- Reyna. - esboçou um sorriso, babando-se alegremente ao repetir - Reyna!
- Pedro! Pedro, chega aqui! -chamou Margarida, em português; os Hufflepuff tinham vindo das colónias portuguesas em África, a sua língua nativa misturando-se com as dos seus colonizadores, tal como tinham explicado aos Ravenclaw quando os conhecera - Pedro, rápido!
- O que foi? - respondeu o marido, adentrando na sala a correr.
- Helga, querida. - chamou a mais velha, as lágrimas escorrendo pela face abaixo - Como se chama a menina?
- Reyna. - repetiu Helga, abraçando fortemente a nova amiga - Reyna, Reyna, Reyna...
- A primeira palavra da nossa menina! - exclamou Pedro, emocionado.
- Oh! - Gretha levou a mão à boca, fascinada.
- Helga... - murmurou Margarida, enxugando as lágrimas num lencinho.
Arthur nada disse. Era o mais sério dos quatro, um traço que a filha herdara. Observou a pequena encarar a filha dos Hufflepuff, um sorriso doce no rosto desenhando-se na sua boca fina:
- Helga.
Os Ravenclaw entreolharam-se. A primeira palavra da sua filha... Os Hufflepuff olharam para os patrões, vendo-os emocionados mas contidos.
Depois, algo mágico aconteceu.
Com um gritinho de felicidade, Helga abraçou Rowena, entusiasmada. Desta vez, Rowena retribuiu, um sorriso desdentado no rosto. Inspirou, expirou... E soltou uma gargalhada. Feliz.
O coração frio de Rowena Ravenclaw encontrara o seu sol.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro