5| EU SEI QUEM ELE É!
— Ande! — dizia o guarda enquanto empurrava Becca pelo corredor sem fim. À sua frente encontravam-se pelo menos uma dúzia de adolescentes que andavam e reclamavam emitindo gritos agudos e estridentes que ecoavam até chegarem aos ouvidos da garota.
— Para onde estamos indo? — ela perguntou, pelo que devia ser a milésima vez.
Não compreendia o que estava acontecendo. Num momento estava dormindo — depois de horas assistindo as memórias, que passavam os acontecimentos como um filme travado no replay dentro de sua cabeça — e no minuto seguinte estava sendo acordada pelo guarda e então, se encontrava ali, num corredor, com um brutamontes a empurrando e repetindo a mesma palavra inúmeras vezes:
— Ande!
Becca apenas olhou para frente, desistindo de tentar arrancar respostas dele. Não queria mais confusão, não quando tudo já parecia ter desmoronado no momento em que White apertou o botão que ativara o chip. Ao se lembrar daquele momento horrível, sentiu um enjoo súbito no estômago. Controlou-se para não vomitar.
Desde que saíra daquele banheiro, Becca decidiu manter silêncio sobre o que havia sentido. Decidiu que deveria guardar isso consigo até que fosse a hora certa para utilizar. Quando, exatamente, ela não sabia.
O menino com quem dividiu a mesa, pensara ela, no silêncio de seu dormitório, horas após o término do almoço. Ele aparentou sentir o mesmo. Ela deveria fazer algo. Deveria descobrir se havia algo de errado com ela ou com outras pessoas.
Por fim decidiu apenas esperar. Talvez encontrasse o menino em alguma outra ocasião. White mencionara algo relacionado a um laboratório, portanto, concluiu que se algo estivesse errado com ela, deveria descobrir lá.
O laboratório, pensou, sentindo-se extremamente burra no momento.
— Estamos indo para o laboratório, não é? — disse, virando-se para o guarda às suas costas.
Mas o guarda apenas a encarou, com seu olhar frio e sem vida e repetiu as mesmas palavras que havia dito anteriormente.
Becca olhou para o recém congestionamento formado no corredor. Talvez tivesse tão perdida em devaneios que não percebeu quando mudaram de corredor. De alguma forma, aquele estava diferente, embora mantivesse o mesmo padrão que o anterior: túbulos de ventilação no teto, paredes pintadas de um branco morto e uma luz iluminando tudo com o mesmo tom resplandescente.
Naquele corredor, contudo, os dormitórios haviam sumido, deixando o ambiente ainda mais sem vida do que ela imaginou que pudesse ser capaz, além de uma fila interminável de pessoas, que desatavam em uma porta um tanto grande.
Vai ser uma longa espera, pensou enquanto limpava a mente, em busca de outros pensamentos que a ajudassem a passar o tempo.
A cama balançava enquanto Eric se forçava para se livrar das cordas que prendiam seus pulsos. Ia para frente e para trás enquanto o barulho agudo do ferro antigo chiava contra no ambiente escuro e vazio, provocando ecos.
Não era difícil para ele se livrar de um nó de corda. Aprendera a fazê-lo em um acampamento que fora uma vez quando criança. A lembrança se mostrava mais fresca do que ele pensou que estaria enquanto a voz do instrutor sussurrava em sua cabeça todos os passos para desfazer mesmo o nó mais complicado.
Sentia seus pulsos queimando e cada vez que olhava para baixo, a visão já acostumada à escuridão, avistava os cortes e o sangue brilhando em sua pele.
O suor de seu corpo molhava o travesseiro e o lençol e Eric conseguia enxergar a mancha que se formava na fronha, além de inalar o cheiro não agradável que o tecido exalava.
De repente a porta do dormitório se abriu com um estrondo e o clarão do corredor invadiu o ambiente, cegando o menino, que involuntariamente virou a cabeça tentando se esconder no escuro novamente. Ao longe, ele ouvia vozes de adolescentes, que reclamavam e gritavam com guardas. Eric sentiu como se décadas tivessem se passado sem que ele tivesse ouvido alguma outra voz além da própria gemendo e se esforçando para se libertar das amarras. Será que era lá que ela estava? Perdida naquela multidão de pessoas, não tendo a mínima noção de para onde estava sendo levada?
Lentamente foi voltando a cabeça para olhar a porta, com a visão acostumando-se pouco a pouco com a recente luz. Conforme se virava, observou que o dormitório estava do mesmo jeito: livre de móveis e contendo apenas a cama em que se encontrava. Quando a porta aberta entrou em seu campo de visão, Eric avistou um homem de pé parado na entrada do cômodo.
— Santo Deus, senhor Montenegro. Que escuridão é essa que se encontra? — disse White, com o mesmo tom sarcástico de sempre. — Bastava ter gritado pedindo para que alguém abrisse as cortinas.
O homem atravessou o dormitório e parou quando chegou a cortina que cobria a janela, abrindo-a com uma puxada só. A luz invadiu de vez o cômodo fazendo o piso brilhar e cegando novamente o menino. Até aquele momento, Eric não havia enxergado a cortina do local, sentindo-se extremamente estúpido. Recuou a cabeça, soltando um gemido em reclamação, os olhos queimavam.
— Agora sim, muito melhor — houve um breve silêncio. — Senhor Montenegro, você está bem? — o menino pôde ouvir um tom de preocupação tomando conta de sua voz.
Sem dizer nada, ele se virou, esperando encontrar um homem em terno branco que o encarava com o mesmo desprezo no olhar de antes. Ao invés disso, encontrou um White perplexo com o que via. Não podia o culpar, certamente sua aparência deveria estar terrivelmente assustadora, mas não ligava para isso, queria se soltar e partir para cima daquele homem. Queria-o punir por o prender, por mentir para ele, por mentir para todos. Havia uma fúria assassina em seu olhar, embora ele tentasse ao máximo esconder. Acompanhou os olhos do homem de branco até seus pulsos.
— Tentou se soltar a noite inteira? — perguntou ele, levantando as sobrancelhas. Caminhou até a cama onde estava o menino e ajoelhou-se perto de seu rosto. — Por quê? O que pretende fazer?
— Matar você — rosnou ele. — E depois dar o fora daqui.
— E para onde você irá Eric? Para onde, quando o mundo está tomado pela radiação e você está completamente desprotegido dela?
— Ainda tenho 17 anos. Posso sobreviver contra ela.
— Isso é verdade — disse White. — Mas e depois? Vai morrer como mais um jovem rebelde que lutou contra o sistema a troco de nada?
Eric pensou nas palavras que ele dissera. Será que ele estava certo, afinal de contas? Valeria a pena lutar contra isso e morrer lá fora a troco de nada? Talvez se ele ficasse...
Não, Eric. Não o deixe entrar em sua mente.
— Boa tentativa — disse, abrindo um sorriso falso. — Mas prefiro morrer lá fora, sozinho, do que ficar nesse lugar com você.
— Não sabe do que fala — respondeu White, com um sorriso no rosto. Eric desejou não estar amarrado naquele momento, teria socado a face daquele homem com toda a força que tinha no corpo.
— Não serei a experiência de vocês. Não podem sair por aí escolhendo pessoas para testar como um rato de laboratório. — disse Eric, furioso.
— Sabe muito bem que você não foi escolhido. Simplesmente aconteceu e nós usaremos esta oportunidade para aprofundarmos nossos estudos no chip.
— Nós?
— Eu e o Homem, é claro — White disse, com o tom mais leve que ele possivelmente pudesse ter feito.
— De jeito nenhum! — clamou o menino. — Aquele desgraçado não tocará um dedo em mim. Nunca.
— Não fale assim do Homem, garoto. — White respondeu, ríspido, com sua voz exprimindo algo diferente do que ele havia visto antes.
E então, lá estava. O olhar de repulsa que ele carregava para todos os lugares. Parecia que fazia parte dele, como uma segunda pele por toda sua face. Eric se perguntou quem seria ele antes da explosão.
— Como consegue? — disse Eric
— Consigo o quê? — White cruzou os braços cobertos pelas mangas brancas do terno.
— Seguir ordens de um líder que se esconde no anonimato. Um homem que força pessoas a implantarem chips como se fossem meros computadores que ele pudesse controlar.
— Não tem ideia do que está falando — o homem parecia agitado, a respiração ficando descontrolada — Não sabe o que ele teve de perder para que mudanças como o chip acontecessem nesse mundo perdido.
— Eu aposto que nem mesmo você sabe quem ele é — insistiu Eric, afim de ver onde aquilo terminaria.
— Eu sei exatamente quem ele é. É você que não sabe do que está falando, garoto estúpido.
— Posso até ser estúpido, mas não fico por aí seguindo uma figura que não sei quem é.
— Eu sei o que procura fazer. Está desesperado, caçando algum ponto fraco. — disse, levantando-se e caminhando até a porta aberta. — Lamento, mas não conseguirá me quebrar.
Eric olhava para o nada, procurando em seus pensamentos algo que pudesse usar para atingi-lo. Seria mesmo ele inquebrável? Deveria haver um ponto fraco.
— Como pode ser tão devoto a alguém que não se importa com ninguém? Não percebe que o chip foi apenas um golpe para ele assumir o poder?
— Senhor Montenegro, poupe o esforço, já disse que não irá me atingir — disse ele, se virando com um sorriso que ia de orelha a orelha, embora Eric ainda conseguisse ver algo dentro dele prestes a ceder.
— Só me responda uma última coisa. Ele sequer sabe quem são todas as pessoas que trabalham para ele? — Eric lutava para não demonstrar o desespero que sentia. Se White passasse por aquela porta, as chances dele de salvar aquela garota e a si mesmo diminuiriam até chegar a zero.
— Olha, Eric, se preferir ficar lutando para sempre para se libertar, fique à vontade. Não conseguirá — e virou as costas, rindo e andando até o corredor.
— Aposto que ele nem sabe quem você é — Eric disse por fim, numa última tentativa.
Para sua surpresa White freou seu caminhar, apenas alguns passos do corredor. O riso esvaeceu, instaurando um silêncio incrivelmente desconfortável no ambiente.
— Pare — foi tudo o que ele disse. Havia algo em sua voz. Algo completamente diferente, como se aquele fosse outro homem.
Achei.
— Eu imagino o quão difícil deve ser. Você fazer tudo o que faz por uma pessoa que não se dá ao trabalho de procurar te conhecer — ele continuou.
— Eric, pare — o homem pediu de novo, a voz trêmula e o corpo congelado no mesmo lugar.
Estou quase lá, pensou, embora algo dentro de si gritava para que ele parasse de falar.
— Eu fico me perguntando como você consegue.
— Consigo o quê, garoto? — Eric sentia a fúria tomando conta dele.
— Ser a cadelinha de alguém que nem sequer se revela a você.
— EU SEI QUEM ELE É — gritou White, correndo de volta para a cama, com os olhos em chamas. — Já você não sabe nada. Não passa de um adolescente expurgo e irritante. — Sua veia saltava do pescoço e a pele pálida havia sido colorida para um tom avermelhado. Ele olhava Eric com raiva pura e aquilo fez o menino estremecer.
— E você não passa de um boneco. Um fantoche. Não enxerga isso?
— Sugiro que fique quieto, garoto. Acredite em mim, não irá querer ver minha ira.
— Me conte quem ele é — provocou Eric, aproximando o rosto do dele. — O que o impede, White? Ele não está aqui mesmo.
Algo passou pelo rosto do homem. O ar durão se foi e agora pairava sobre o ele um olhar que Eric jamais imaginara que fosse ver em White antes. Algo sensível, frágil. E Eric conhecia aquele olhar. Mãos tremendo, apertando o colchão, suor demasiado, olhar distante, claramente pensando em outra coisa, boca reduzida a uma linha pálida no rosto e embora não pudesse tocar seu peito, sabia que seu coração estava disparado.
— Meu Deus — disse por fim, se arrependendo de tudo o que tinha dito. — Você... está..
— O quê? — disse White sendo tomado pelo mesmo olhar sanguinário que de antes. Ele estava sem fôlego.
— Apaixonado por ele — disse sussurrando.
Eric, de repente, sentiu algo perfurando sua costela e uma onda de eletricidade se espalhou pelo seu corpo, fazendo-o arder profundamente. Ele gritou e se contorceu. Sentiu o coração disparar e pensou que ele ia explodir. Seus ossos pareceram se quebrar ao mesmo tempo. A dor foi tanta que por um segundo ele ficou cego.
— Diga isso mais uma vez e eu farei algo muito pior — rosnou White exibindo uma arma de choque — Nunca saberá as coisas da forma que eu sei.
— Pois é — disse, ainda sentindo a dor contaminando seu corpo e o queimando. — Mas ainda estou em vantagem por saber uma coisa.
— É mesmo? E o que seria? — perguntou o homem de branco, claramente impaciente e cético.
— Como me livrar da droga de um nó — e agarrou a cabeça de White com a mão que havia se soltado da corda com a última sacudida que seu corpo deu com choque.
Eric, usando toda força que tinha restante, passou os dedos por entre os cabelos do homem a sua frente e o fixou-os neles, batendo seu crânio contra o ferro da cama. Houve um estalo, tão alto que causou arrepios por todo o corpo do menino. Se fora a cama ou homem, Eric não sabia dizer. Parecia o som de algo se quebrando em pedaços. Pensou rapidamente se existia a possibilidade de algum guarda ter ouvido o barulho do outro lado da porta. Logo recusou essa linha de raciocínio. Não podia pensar na pior das hipóteses. Focou-se então para se movimentar o mais rápido possível, soltando as outras partes do corpo atadas e se levantando da cama, parando apenas para retirar a arma de choque utilizada pelo homem, uma seringa, que estava guardada no bolso interno de seu paletó claro e uma chave pequena, que Eric só descobriu que servia para trancar a porta quando já estava no corredor, fechando-a e ocultando o corpo desacordado de White, que pintava o piso branco com o vermelho escarlate que escorria por entre seus cabelos grisalhos como flocos de neve.
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