16| O LABORATÓRIO
O ar era pesado e cheirava a cinzas. O som das colheres tocando as latas de metal entravam pelos ouvidos de Eric enquanto o feijão começava a matar a fome que havia se instalado em seu estômago. Antes da explosão ele nunca havia comido algo que estivesse enlatado, mas havia desenvolvido um gosto bem forte pelos feijões. Talvez fosse por esta ser a única refeição que ele teria durante os próximos dias.
A única razão por estarem comendo naquele momento era porque Rebecca queixara-se de fome. Ela parecia cansada e ele não a culpava por isso. Andaram por muitas horas até chegarem ali.
Para não serem vistos pelos guardas que cuidavam da porta da frente, Eric mudara o rumo um pouco para que ficassem em um lugar seguro onde ninguém do laboratório pudesse vê-los, mas que eles dois pudessem enxergar cada detalhe do local que estavam prestes a atacar.
White estava lá. Ele sabia disso, mas não conseguia entender como. Era como se uma voz soprasse em seu ouvido respostas para perguntas antes mesmo de ele ter a chance de perguntar algo. E era como se a voz escolhesse momentos específicos para revelar tais informações. Ele não sabia o porquê e esperava no fundo do coração que White lhe revelasse o real motivo.
— Becca? — ele a chamou.
Ela levantou os olhos e Eric sentiu o coração bater mais forte contra o peito. Desejava saber o que ela sentia por ele, mas tinha medo de tocar no assunto como tentara fazer no dormitório e receber alguma resposta como a daquela vez. Ele sequer sabia o que ele sentia por ela. Era algo novo, como se o sangue corresse mais rápido em suas veias e o coração saltasse do peito todas as vezes que ele ouvia seu nome ou a beijava. Ele gostava de tê-la por perto e temia ao pensar nas coisas que poderiam acontecer a ela quando adentrassem o laboratório.
— Sim? — ela respondeu, o rosto mostrando a confusão devido o silêncio.
— Já acabou seu almoço? — ele perguntou, voltando de seus devaneios.
Ela assentiu levantando a lata agora vazia com a colher dentro e chacoalhando-a. Havia algo nela. Algo que deixava Eric sem palavras. Algo que ele notou nela desde a primeira vez que a vira, no refeitório, e depois sentada entre aqueles dois ônibus, chorando. Algo brilhante, bonito, acalmante e chamativo.
— Ótimo, porque precisamos bolar um plano para nosso ataque — ele falou, se sentando.
— Por que você não simplesmente advinha todos vão estar lá dentro? — ela retrucou, com um sorriso no rosto.
Ele a encarou e ela moveu as sobrancelhas, formulando uma falsa expressão de pedido de desculpas com o rosto.
— Cedo demais para brincarmos com isso?
— Talvez, mas valeu a tentativa — Eric respondeu, abrindo um sorriso no rosto.
— Tudo bem, então precisamos começar atacando os guardas da porta da frente...
— Primeiro precisamos ter certeza de que não há ninguém de vigia naquela torre — Eric interrompeu-a, apontando para a torre que se levantava do meio da construção.
— E como vamos fazer isso? - ela perguntou.
— Eu não sei, mas não podemos nos arriscar e se aproximar. Se houver algum guarda naquela torre, seu tiro será certeiro e nos matará em segundos.
Ela concordou e abaixou a cabeça.
Eric começou então a passar todas as possibilidades em sua cabeça, procurando algo que realmente fosse útil e que eles pudessem executar sem muito esforço. Nada. Todos os planos que apareciam necessitavam de apenas uma arma, e isso era algo que não tinham.
Ele então se lembrou do refeitório e do número de guardas armados mortos no chão. Devíamos ter pego alguma arma, se repreendeu. Mas depois repensou. Talvez se tivessem pego alguma arma o conflito entre ele e Oliver teria terminado de forma muito mais trágica.
— Pensou em algo? — Rebecca perguntou.
— Nada — ele respondeu, desapontado com si próprio.
Silêncio outra vez. Que droga!
— A menos que... — ela começou.
— O quê?
— Não somos mais rápido do que o normal?
— Rebecca, eu não acho...
— Pense comigo, Eric. Talvez se pudéssemos correr rápido, podemos chegar nos guardas sem que eles percebam e os atacar.
Ele imaginou a cena. O vento soprando seu rosto levantando seus cabelos. Viu Rebecca com os olhos fechados, os cabelos laranja-avermelhados ao ar e um sorriso pequeno no rosto antes de chegarem aos guardas e os desmaiarem em segundos.
— Rebecca, eu não acho que devemos contar com nossas habilidades. Nem sequer sabemos como elas funcionam.
— Nunca saberemos se não tentarmos, Eric.
— Eu sei, mas nada pode nos garantir sucesso nesse plano.
— Não temos outra alternativa, Eric. O plano é arriscado mas é a nossa única chance.
— Não sei, não me sinto seguro com isso — ele falou. E dizia a verdade.
— Devemos ao menos tentar — ela disse, de repente segurando sua mão. — Confia em mim?
—Com toda minha vida — ele respondeu e subitamente sua respiração foi suspensa.
Eles estavam se beijando. Não como se beijavam antes, dessa vez havia alta intensidade e paixão entre seus corpos, como se mergulhassem fundo em um oceano infinito. Seus braços envolviam a cintura dela em um abraço forte, depois suas mãos passearam por entre suas costas, tateando e puxando-a para mais perto, aprofundando ainda mais o beijo. Os dedos dela se entrelaçavam em seu pescoço, depois deslizavam por entre seus cabelos, lenta e suavemente. Ele queria parar e gritar a ela o que havia se instalado dentro de seu peito, mas não conseguiu parar aquela sensação. Apreciava seu toque. Apreciava seu beijo. Apreciava-a por completo.
Quando terminaram ela o encarava, os olhos verdes encantadores e os cabelos ruivos presos num rabo de cavalo brilhavam contra a luz do sol. Ela era linda. Absolutamente linda. E sorria para Eric. Ali estava. A Becca que ele não via desde a morte de Nina, sorridente e determinada. Feliz, mesmo estando no meio de uma guerra.
— Pronto? — ela perguntou a ele, entrelaçando seus dedos nos deles mais uma vez.
Ele assentiu, mudo. Estava sem palavras. Por dentro ele gritava consigo mesmo. Diga a ela, Eric. É sua chance. Mas palavra nenhuma saía.
Rebecca pegou o mapa e ainda de mãos dadas guiou Eric de volta a rua que daria para o laboratório. Eles pararam e ela o encarou mais uma vez.
— Basta apenas seguir reto, Eric. Não pense demais. Apenas... corra, e não pare até chegar nos guardas — ela falou.
— Não solte minha mão — ele disse, apertando a dela.
— Não vou.
Então tornaram a olhar para frente. Ele respirou fundo, a pulsação acelerada como nunca havia ficado antes.
— No três — ela disse, e iniciou a contagem, lentamente.
Ao final da contagem, Eric não soube dizer quem correra primeiro. Só teve chance de ver o laboratório a sua frente um último instante quando sentiu as penas se movendo em sua direção.
A corrida foi do jeito que ele imaginava. A brisa soprou seu rosto e deu-lhe o ar que ele já não conseguia sentir. Ele tentou olhar para o lado, na esperança de ver Rebecca como vira em seu devaneio, mas tudo o que viu foi uma sombra, ainda que sentisse a palma de sua mão sobre a dela e os dedos entrelaçados entre si. Pareceu que durou horas, e a sensação era incrível.
Olhando para frente novamente, Eric viu os guardas de vigia na porta. Seu olhar foi de encontro com o deles e ele conseguiu ver uma expressão de confusão desenhando-se em seus rostos. As mãos seguravam fuzis de assalto e Eric viu quando os guardas miraram para ele e Rebecca, o dedo se movendo para o gatilho. Pensou que não estavam correndo rápido o bastante. Pensou que era daquela forma que tudo terminaria. Foi uma péssima ideia. Vamos morrer.
Então fechou os olhos, vendo a vida passando diante dele na escuridão. Viu sua mãe, com seu lindo sorriso. Viu seu pai, com os olhos no telescópio e viu a si mesmo olhando para as estrelas, ouvindo a voz do homem que lhe deu a vida contando a história de Cassiopeia.
É assim que acaba, ouviu sua voz ecoando em seus ouvidos, não sentindo mais o toque suave da mão de Rebecca sobre a sua.
Então seu corpo atingiu algo pesado e a luz voltou a ser absorvida por suas pupilas. Viu tudo claro novamente. Viu Rebecca, socando e chutando o guarda ao seu lado, arrancando em um só movimento sua arma e dando-lhe um golpe final no rosto dele com ela. Viu ela o encarando, os olhos de repente se tornando maiores e um grito saindo de sua boca. Cuidado! Ele se virou, bem a tempo de sentir o punho do guarda socando seu rosto.
Eric desequilibrou e atingiu o chão mais uma vez, mas foi rápido o suficiente para desviar do chute que viera em seguida. Num segundo, se levantou, jogando seu corpo contra o do guarda, do mesmo jeito que Rebecca fizera com Nina.
Ele ouviu um estralo e então nada mais. Quando olhou novamente o guarda estava inerte, os olhos arregalados e a arma jogada ao seu lado, o peito estava estufado e Eric sabia que o guarda estava morto.
Virou-se para Rebecca e a viu sorrir. Ela correu e o envolveu em um abraço apertado.
— Deu certo, conseguimos — ela repetia.
— Ainda não. Vamos, temos White ainda para matar.
E, depois de agarrar a arma do guarda morto, deu um empurrão nas gigantescas portas do laboratório, que se abriram e revelaram o ambiente por dentro.
Era absolutamente bonito e diferente de tudo o que Eric já tinha visto em filmes anteriormente. Não haviam mesas gigantescas com frascos e béqueres sobre tripés com líquidos verdes ou rosa borbulhado e emitindo fumaças, prontos para explodir. Na verdade, aquele lugar parecia mais como uma mansão, com cômodos de grife espalhados pelo ambiente sob um carpete verde-água que parecia ter sido limpo havia pouco tempo. Nas paredes azuis claras estavam pendurados quadros com flores pintadas a mão. Também havia um vaso sobre uma mesa no fundo que guardava rosas bastante avermelhadas dentro de si. Por fim, havia lá uma poltrona roxa que se encontrava de frente para uma televisão que exibia a cena da batalha final de "Pânico 2". Atrás dela, uma porta aberta.
Sem conversar, andaram até a porta, com as armas em mãos e o dedo no gatilho. A respiração de Eric estava descontrolada, o coração parecendo criar vida e se arremessar contra seu peito.
Foram necessários poucos passos até que passassem para o outro lado da porta. Não era outro cômodo ou algo do tipo. Se tratava apenas de de um corredor, onde duas escadas levavam a um destino diferente. Em linha reta, a escada direcionava o caminho para cima onde, Eric imaginou, ficava a torre que subia no meio da construção. A outra escada se encontrava a esquerda e levava para baixo, de onde vinha uma voz que Eric já ouvira antes. Reconheceu imediatamente e sentiu um arrepio subindo por sua espinha. Era grave e ainda mantinha seu tom debochado e cínico e mesmo não estando no mesmo lugar, ele conseguia ver o enorme sorriso e o impecável terno branco.
— É ele? É White quem está falando? — perguntou Rebecca, se aproximando com a arma em mãos.
— Sim — Eric respondeu. — É ele.
Ele andou mais a frente, colocando os pés sobre os degraus da forma mais silenciosa que conseguiu. O ar era pesado e tinha um cheiro estranho, parecido com o de mofo. Então começou a descer, um passo de cada vez, um mais suave que o anterior. O rosto de White aparecia em sua frente cada vez que seu pé tocava o chão. O sorriso brilhante e doentio, os cabelos grisalhos como flocos de neve e os olhos azuis sem vida o encarando, a pele pálida como de um cadáver e a voz assustadora. Ele sentiu um arrepio subindo até a nuca. Odiava aquele homem, como nunca odiou outro ser existente no mundo.
Quando chegou ao último degrau, viu-se parado novamente na entrada de um corredor escuro com uma luz no fim. A voz de White soava mais alta e... feliz.
Eric se virou e viu Rebecca atrás dele, seu rosto era lindo, mesmo na escuridão. As sobrancelhas estavam franzidas e sua boca cerrada. As mãos estavam firmas enquanto seguravam a arma ela não demonstrava sinal algum de quem iria baixar a guarda. Com um olhar ele perguntou se ela estava preparada. Rebecca assentiu e ele sentia o ódio dela, mesmo sem que ela falasse.
Então andaram até a luz.
Estavam em uma sacada, como no refeitório e, novamente, o ambiente era todo branco. Ela contornava o andar com grades brancas, enfeitadas com formas bonitas desenhadas e separadas em alguns pontos por pilares brancos que iam do chão até o teto. De certo para impedir uma queda, Eric pensou. Havia um enorme candelabro pendurado no teto que emitia luzes brancas para o andar debaixo. Eric se afastou de Rebecca e se dirigiu até a porta por onde passaram, se agachando de costas para ela e espiando o andar debaixo por entre as grades, tentando ao máximo parecer invisível.
O andar debaixo era enorme com o chão coberto por azulejos brancos que estavam praticamente intocados de tão limpos. Presas ao chão haviam bancadas de granito, que se destacavam em meio a toda claridade. Sobre elas haviam tubos de ensaio, várias pipetas e materiais que Eric não conhecia mas sabia que faziam parte de equipamentos de laboratórios. E ele viu, isolados na última bancada, muitos guardas, a maioria voltada de costas para ele, anotando com canetas pretas num caderno enquanto observavam algo que Eric não conseguia enxergar. A voz de White vinha dali e se espalhava para todo o lugar, entrando em seus ouvidos e fazendo seu sangue ferver.
Ele olhou novamente para Rebecca, que também encarava as bancadas e os guardas. Viu ela levantar o olhar para ele, carregado de ódio. Então ela simplesmente assentiu com a cabeça e ele entendeu o que ela queria dizer.
No seguindo seguinte, a visão de Eric escureceu e tudo o que ele pode ouvir foram os tiros altos que ecoavam por todo o ambiente. Ele sentia a arma ricocheteando contra seu corpo. Sentia o peso dela em suas mãos e então não sentia mais nada. Ele sentia sua voz saindo de dentro da garganta num grito excruciante e ao mesmo tempo não ouvia nada. Quando sua visão voltou, tudo o que ele via era o rosto de Rebecca, coberto de lágrimas e o olhar furioso e odioso. Ele queria acertar todos os que faziam parte daquilo. Queria acertar White e queria perfurar seu corpo com as balas. Não pararia de atirar até que ele estivesse caído, sem vida.
Então os tiros se foram. A arma emitia apenas um clic, indicando que o pente havia se esgotado. Ele olhou para baixo e viu o corpo de alguns guardas mortos e uma pequena poça de sangue pintando o chão branco. Os outros conseguiram fugir, mas não importava. Só havia uma pessoa que ele queria acertar.
— Conseguimos? — ele perguntou a Rebecca, a voz saindo quebrada. — Ele está morto?
— Não sei, não o vejo ali.
— O quê? — ele perguntou, caminhando até ela e olhando para os corpos, forçando a visão ao máximo que conseguia. Como não sabia controlar suas habilidades, o chip nem sempre ajudava. Ora sua visão parecia um binóculo ampliado no máximo, ora era apenas normal.
— Eu não o vejo morto, Eric. Será que ele escapou?
Eric se pôs a pensar, consultando todas as memórias antes do tiroteio. Ele tinha de estar lá. A voz dele vinha de lá. Ele estava lá.
Não, Eric. Não estava.
Ele arrepiou. Era mesma voz que sussurrara em seu ouvido quando eles estavam naquela casa. A mesma voz que lhe contou o passado daquela família.
White não estava lá. Ele nunca esteve lá.
— Como assim? — perguntou Rebecca e quando ele percebeu, havia falado a última frase da voz ao alto.
— Ele não estava lá, Rebecca. Ele nunca esteve lá.
Então olhou novamente para os corpos, a visão ampliando-se como acontecia às vezes. Ele viu algo sobre a bancada. Branco, com pingos de sangue. Então novamente o arrepio subiu em sua espinha, o coração saindo pela boca, os olhos se arregalando em choque.
— Um gravador — a voz mal saiu quando disse.
- O quê? - Rebecca perguntou, o rosto se transformando em choque puro.
- Rebecca, White não estava lá. A voz dele vinha de um gravador.
- Mas então... onde ele está?
Passos ecoaram pelo ambiente. Passos leves e suaves. Eric se virou e seu sangue congelou.
White sorria por trás de uma máscara de gás. Vestia o mesmo terno branco e as calças brancas. O cabelo grisalho nunca esteve mais claro. Além da máscara, a única coisa que diferia nele era uma bengala branca que ele segurava em uma das mãos.
Ele começou a dar risada, do mesmo jeito horripilante que ria anteriormente. Uma risada seca e morta.
- Não imaginam o prazer que é revê-los, meus caros Eric e Rebecca.
- Seu desgraçado - foi tudo o que Eric conseguiu dizer.
- Relaxe, Eric, teremos todo o tempo do mundo para conversar. Sei que paciência nunca foi seu forte, mas dessa vez terá que esperar.
Então ele estralou os dedos e guardas entraram pela porta, numa velocidade inacreditável, e arremessaram duas coisas no chão.
Eric não teve tempo de desviar o olhar para ver o que era. Tudo o que viu foi uma fumaça branca subindo e entrando por suas narinas.
Rebecca tentou correr até ele, então caiu, sufocando com a fumaça. Ele queria correr até ela e puxá-la para longe. Mas seu corpo não se movia.
Sua cabeça começou a girar e em segundos ele também estava no chão, encarando White, parado em pé, olhando para os dois com o olhar de nojo que sempre tivera.
- Rebecca - ele engasgou, se arrastando até ela.
- Não se preocupe, caro Eric. São granadas de monóxido de carbono - White disse, rindo - Não o suficiente para matar. Bem, eu acho, pelo menos. Aproveitem o sono.
A última coisa que Eric viu foi a mão do homem de branco se mexendo em movimento de despedida. Então tudo se tornou preto.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro