14| NÓS DOIS
— O que eu fiz Eric? — perguntava Rebecca, desorientada.
— Acalme-se. Você não teve a intenção — ele falava, com seu corpo congelado pelo choque.
— Mas fiz do mesmo jeito.
— Está tudo bem. Vamos. Temos que ir para o laboratório.
Ela, no início, negou a ideia. Seu rosto ficou assombrado. Como você espera que eu encontre Emily sabendo que matei a irmã dela?, ela dissera. Levou um bom tempo até Eric a convencer de que era exatamente por isso que eles deveriam ir. Eles deveriam encontrar Emily para que tudo ficasse em paz para ela, como uma jornada de redenção. Com muito esforço, Rebecca aceitou a proposta e eles partiram. Eric não havia contado a ela o que acontecera entre ele e Oliver no andar de cima e não planejava fazê-lo tão cedo.
Ele a abraçou mais fortemente. Então se puseram a andar. A cada passo, ela virava para trás para ver o corpo pálido de Nina jogado no chão do salão. E a cada vez que fazia isso retornava o olhar para frente, chorando, inconformada.
Chegaram até a porta. Vendo mais de perto, Eric conseguia enxergar que havia desenhos entalhados na madeira. Pequenos símbolos que se interligavam formando uma espécie de desenho abstrato. Ele tocou a maçaneta, virando os olhos para Rebecca.
— Pronta? — perguntou ele olhando para ela.
Os olhos verdes de Rebecca se desviaram dele e se puseram a encarar novamente o corpo de Nina. Dessa vez o olhar foi fixo e demorou muitos instantes para que ela olhasse para ele de novo. Quando o fez, não disse uma palavra sequer, apenas assentiu com a cabeça.
Eric, então, abriu a porta.
Deu de cara com o dia do lado de fora. O ar invadiu suas narinas e provocou nele uma tosse. A luz solar tocava sua pele, esquentando-o. Nunca achou que veria o mundo além de Orquídea novamente desde que White o amarrara naquela cama.
Ele olhou novamente para Rebecca, que também olhava para o lado de fora, sem sorrir.
Eles começaram a andar, e à medida que se afastavam de Orquídea conseguiram ver exatamente o que aquilo era. Tratava-se de uma construção quadrada bem larga, alta e — não deixando Eric ou Rebecca chocados — branca. Era algo parecido com a construção de uma escola. Havia uma parte onde era possível ver as janelas de vidro presentes nas paredes que eles haviam visto no corredor onde ficavam os dormitórios e as janelas que haviam no salão. Eric se perguntou se olhando de cima era possível ver o teto de vidro que Nina destruira. O coração, de modo súbito, se contraiu num aperto. Ainda não conseguia acreditar que Nina estava de fato morta.
Sem olhar para trás, Eric e Rebecca continuaram a andar pelas ruas vazias e silenciosas. Nenhuma vida além deles aparentava existir lá. Algumas árvores exibiam folhas mortas, numa tonalidade amarelada e queimada, já outras sequer tinham folhas, apenas galhos coloridos num tom escuro, quase preto, esticados para o nada. Não se via mais passarinhos ou qualquer outra ave no ar. O canto dos sabiás não eram mais ouvidos como anos atrás. Animais de estimação se foram junto com seus donos, deixando casas abandonadas e vazias de quaisquer sentimentos. O céu já não tinha o azul de antes, retocando as nuvens brancas como algodões. Agora era cinzento, morto e deprimente de se olhar.
Quando a noite caía, Eric sentava-se com seu pai para ver as estrelas e a lua. De vez em quando ele montava seu telescópio para que o filho pudesse apreciar as estrelas e as constelações que elas formavam.
— Papai, como é o nome daquela? — pergunta um Eric criança, fascinado pelos desenhos que o universo lhe mostrava.
— Aquela, meu filho, é a constelação de Cassiopeia — respondia seu pai.
— E, papai, quem é essa Cassiopeia?
E rindo da ingenuidade do filho, seu pai lhe contava toda a história mitológica grega da vaidosa rainha Cassiopeia.
Eric admirava seu pai, um homem alto cuja barba, antes de assumir o grisalho, imitava a cor de seus cabelos, e se divertia em ouvir as histórias que ele contava.
Agora contava a Rebecca as histórias do pai, na esperança de afastar as lembranças da tenebrosa e traumática experiência que ela havia vivenciado.
Rebecca não demonstrava interesse em nenhum dos contos, contudo. Não falava uma única palavra sequer. Não sorria. Apenas seguia em frente, cabisbaixa, com os olhos inchados como se tivesse levado um soco. Eric acabou desistindo, por fim, seguindo a viagem ao lado, sem dizer uma palavra.
Quando Eric percebeu, a tarde já ia embora. O pôr do sol realçava o céu, pintando-o em tons de roxo misturados com um amarelo claro e traços alaranjados, realçando as nuvens brancas. Era lindo, uma das poucas coisas das quais ele acreditava que veria novamente. Sentia-se diferente andando do lado de fora pelas ruas vazias. Sua mente o levava a pensamentos de como tudo teria sido se o míssil nunca tivesse explodido e erradicado quase toda a vida na Terra.
Já tinha até mesmo chegado a pensar se ele teria morrido e se estava vivendo no inferno. Esses pensamentos começaram após a morte da mãe. A radiação causava dores insuportáveis nela, tão fortes que a fazia acordar no meio da noite gritando e alucinando. Em seus últimos dias seu rosto já não tinha a mesma cor de antes. Ela estava tão magra que Eric era capaz de ver seus ossos marcando a pele. Seus cabelos foram caindo com o tempo até que restaram poucos fios presos a sua cabeça. Seu sorriso já não era mais brilhante e inspirador. Era sem cor. Sua mãe ficara tão pálida quanto um pedaço de papel e passou a ser totalmente imponente.
— Eric?
Era a voz de Rebecca. O devaneio desapareceu e a única coisa que conseguiu ver foram os olhos da menina. Eram tão lindos. Verdes como as folhas das árvores de antes e brilhantes como esmeraldas. Ele não conseguia imaginar como tudo aquilo havia sido para ela, a mistura de sentimentos que ela devia ter sentido quando percebeu que Nina já não respirava.
— Quanto tempo até chegarmos? — perguntou ela.
Quando olhou o mapa, Eric percebeu o quanto tinham andando.
— Estamos perto, provavelmente chegaremos no meio da noite.
Ela pareceu um pouco insatisfeita com a reposta, as sobrancelhas se franziram e seus lábios se contraíram.
— Não me sinto confortável entrando naquele lugar no meio da noite. Quer dizer, não sabemos o que vamos encontrar por lá.
— O que quer fazer? — ele perguntou.
— Acho que deveríamos descansar por agora. Se fizermos isso, partiremos amanhã quando o dia surgir e chegaremos lá prontos e dispostos para enfrentar o que estiver pela frente.
Eric não discordava, haviam andado toda manhã e pela luta que tiveram em Orquídea houve uma espécie de cansado emocional. Ele não culpava Rebecca por se sentir exausta e por querer descansar. Então assentiu com a cabeça, e os dois desviaram do caminho que seguiam em busca de algum lugar para ficar. Enquanto andavam, o olhar de Eric se moveu em direção da menina e ele notou que ela retornara para sua versão silenciosa e que o brilho que antes caía sobre ela havia desaparecido. Era como se a Rebecca que conhecera antes ficara naquele dormitório e estivesse desaparecendo conforme andavam para longe.
Demorou um tempo, mas encontraram uma casa abandonada não muito longe da estrada que andavam. Era uma residência grande, a frente pintada por tons de azul marinho e enfeitada por pilares brancos que iam do chão ao teto. A porta era pintada de marrom e era larga o suficiente para que os dois passassem de uma só vez, ao seu lado haviam pequenas janelas de vidro intercaladas com pedaços de madeira azulados.
Dentro, Eric viu uma mesa de madeira com quatro cadeiras de mesma cor em volta. Sobre a mesa haviam três pratos e uma vela que pelo estado que se encontrava teria sido acendida anos atrás. Ainda andando, ele viu um cômodo que parecia ser uma sala de estar, com um sofá em frente de uma enorme televisão que não exibia nada, suspensa em um painel de madeira, colorido por um tom bem claro de violeta, que ia até o teto do cômodo. Junto ao painel, uma estante exibia uma bíblia aberta com um terço azul escuro dentro e porta-retratos empoeirados que exibiam uma família feliz. Abaixo da estante havia um tapete preto com o desenho de uma borboleta estampado em amarelo.
Indo para os quartos, Eric viu duas camas cobertas por uma colcha cor de rosa e paredes cobertas de desenhos coloridos feitos a giz. Havia um grande guarda-roupa embutido branco com uma porta sanfonada branca em uma das pardes. O outro quarto mostrava apenas uma cama, essa grande, onde provavelmente dormiam duas pessoas. De cada lado haviam pequenas cômodas com apenas uma gaveta em cada e uma abertura onde ficavam pares de calçados. Em cada quarto havia uma grande janela por onde era possível observar o mundo lá fora. Eric olhou pela janela do cômodo que estava e observou o fundo da casa sob a luz do pôr do sol. Coberto por grama, onde provavelmente fora uma horta. Agora haviam apenas quatro montes de terra, um do lado do outro, com cruzes de madeiras na ponta.
Um vazio se espalhou pelo peito do menino. A imagem de sua mãe apareceu novamente em sua mente. Gemendo, chorando, implorando para que ele a livrasse daquela dor e daquela sensação horrível que era estar morrendo.
— Eric, venha ver o que encontrei — a voz de Rebecca o retirou de seu devaneio e ele correu, atravessando o corredor até chegar ao quarto das paredes pintadas.
Rebecca estava parada diante das portas escancaradas do guarda-roupa, de forma que seu rosto ficava oculto atrás de delas. Ela esticou seu rosto para que Eric pudesse ver e quando o fez, o menino observou duas coisas. A primeira era que os cabelos dela não estavam mais soltos. Formavam agora um rabo de cavalo cor de fogo que realçava seu rosto. A segunda era que ela sorria. A claridade de seus dentes mostrava a Eric uma nova Rebecca, como se a nuvem negra que pairava sobre sua alma tivesse sumido de vez.
— Gostou? — ela perguntou, puxando os cabelos presos para frente dos ombros. — Encontrei uma porção desses elásticos para cabelos, enfeitados com lacinhos — e então puxou um pote de dentro da porta. Enfiou a mão dentro dele e tirou de lá um elástico. Era vermelho, com um laço pequeno chamando a atenção. — Por que me olha assim? Não gostou?
— O que... não, não é isso. É que não te vejo sorridente assim desde... — e se interrompeu antes de que as palavras "ficamos juntos no dormitório" saíssem.
— Desde quê? — ela perguntou fechando as portas, ainda segurando o pote nas mãos.
— Nada, era bobagem — ele respondeu, procurando disfarçar.
— Desde que dormimos juntos? — e deu um passo para frente.
Eric sentiu seu rosto corar. Idiota, idiota. Não acreditava que havia tocado de novo naquele assunto. Ela havia sido bem clara quanto aquilo. As palavras ecoaram em sua mente por um momento. Apenas aconteceu. Não significou nada para mim também.
— Pode dizer, Eric. Não é nenhum pecado.
— Sim — a palavra voou de suas entranhas. — Não te vejo sorridente dessa forma desde que dormimos juntos.
— Talvez eu não tenha tido motivos para sorrir mais.
— Rebecca, o que aconteceu com Nina não foi...
— Pare — ela interrompeu, a voz se quebrando. — Não fale.
— Eu tenho que falar. Você precisa saber que o que aconteceu não foi sua culpa.
— É mesmo? — o tom dela mudou e Eric viu a raiva se instalar em seu olhar. — Então de quem é a culpa, Eric? Porque eu não me lembro de Nina ter se atirado sozinha pela escada. O que eu me lembro é de eu ter me jogado em cima dela e esmagado seu crânio quando atingimos o chão.
— Ela te atirou na parede, Rebecca, você estava com raiva...
— NÃO IMPORTA — ela gritou, atirando o pote de elásticos no chão. O objeto se rompeu em pedaços e o conteúdo dentro voou para todo o lado. Quando levantou o rosto, Eric percebeu as lágrimas se formando em seu rosto. Estraguei tudo. — Eu a matei. Eu fiz isso. Só há uma pessoa para culpar, e sou eu.
Ela começou a andar até parar na frente de Eric. Face com face. Ele sentia a respiração dela, e estava descontrolada.
— E nada do que você disser vai mudar isso — ela disse, com a voz baixa como um sussurro.
Ela passou por ele, atravessando a porta. Os passos dela ecoavam pelo quarto, ficando cada vez mais distante.
Eric então correu, seguindo os barulhos dos passos de Rebecca, os olhos enchendo de lágrimas. A encontrou na sala de estar, sentada no sofá. As mãos estavam cobrindo o rosto e ela estava curvada. Soluçava e mesmo que não conseguisse ver, Eric sabia que ela chorava.
— Eu o ataquei... — começou a falar. Rebecca levantou a cabeça. O rosto dela brilhava por causa das lágrimas expostas no rosto. — Quando você avançou em Nina e as duas rolaram escada abaixo, Oliver me empurrou. Eu o acertei no rosto e por algum motivo ele se desequilibrou. Não me lembro de o ter batido tão forte.
— Eric... eu não preciso disso agora — disse Rebecca, se levantando.
— Becca, por favor, deixe-me falar. Só dessa vez.
Ela se calou, olhando para ele. Eric sentia as lágrimas escorrendo por seu rosto, mas continuou falando:
— Ele tentou agarrar me pé, do chão, e eu o chutei, para que ele não conseguisse me derrubar. A cabeça dele voou para trás e bateu contra a parede. Quando ele fechou os olhos, achei que ele tivesse morrido. E não entendia como aquilo poderia ter acontecido, afinal, não o bati com tanta força.
A boca de Rebecca se abriu em forma de choque. As lágrimas caíam e ela parecia petrificada. O coração de Eric pulava contra o peito, parecendo que ia rasgar a pele e cair no chão de tão forte que batia.
— Eu chequei a pulsação dele. Ele não morreu, estava vivo quando deixamos ele lá. Mas eu simplesmente não compreendia como ele ficou assim apenas com dois golpes. Então eu... soquei a parede. Não com muita força, e não por nervosismo, mas para fazer um teste. Rebecca, minha mão atravessou a parede.
Houve um momento de silêncio. Tudo o que era ouvido eram os passos de Eric, que se movia em direção a ela.
— O que quer dizer com "atravessou a parede", Eric? — perguntou ela, ainda com a voz fraca.
— Meu golpe fez um buraco na parede. E eu juro que não usei força para que isso acontecesse. Não sei nem se seria capaz de fazer se usasse. Becca, você se lembra do que White nos disse sobre o chip e de como éramos experiências? De como o chip fortalecia o ser humano e o deixava mais forte, mais rápido e o fazia se curar mais rápido?
— Sim, eu me lembro.
— Acho que ele estava falando a verdade, Rebecca. O chip nos deu capacidades sobre-humanas. A todos nós. Somos protegidos da radiação e além disso somos mais fortes, mais rápidos e nos curamos depressa. Não há outra explicação que responda como Oliver desmaiou com dois golpes leves.
— Ou como Nina me arremessou contra a parede sem ao menos tocar em mim — ela parecia pensativa enquanto falava.
— Exatamente. Isso quer dizer que a culpa de tudo isso não é sua. É de White. E do Homem. Foram eles que colocaram esse chip em você e foi isso que lhe fez matar Nina. E é por isso que temos que matá-los.
Então ela chorou, mais do que já chorara antes. Seu corpo desabou no de Eric o cobrindo com um abraço enquanto as lágrimas molhavam o tecido branco.
— Não foi culpa sua, Becca.
— Eu os odeio, Eric, é por causa deles que estamos vivendo nesse inferno — ela dizia em meio a soluços.
— Eles vão pagar por nos transformar em experiências. Vamos vingar a morte de Nina, Becca.
Ela olhou para ele, ainda soluçando, com as lágrimas manchando o rosto. Havia algo de diferente dessa vez nela. Era o brilho que Eric vira anteriormente. Estava de volta, e radiando como nunca.
— Eu e você, Rebecca. Vamos destruir o Homem.
— Nós vamos — ela concordou, movendo os lábios até que os dois estivessem envolvidos num beijo. — Nós dois.
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