1| A INTRODUÇÃO
Rebecca sentiu seu rosto esquentar. Abriu os olhos e por um instante não foi capaz de entender onde estava. Sentou-se e olhou por todo o canto, esperando que sua mente pudesse assimilar os acontecimentos que a levaram àquele lugar. Era um ambiente tão escuro, que a fazia estremecer. Tentou forçar os olhos, na esperança de conseguir enxergar algum objeto sequer. Falhou. Nenhuma sombra pareceu projetar algo que sua cabeça conhecia.
Sentia-se nauseada e exausta, embora tivesse acabado de despertar de um sono. Seu corpo todo doía, como se tivesse levado uma surra, e mesmo que não conseguisse ver, conseguia sentir um gosto metálico e estranho em sua boca. Sabia que era sangue, e isso fez seu corpo se desesperar. Becca sentiu seu coração bater tão forte, que foi como se este fosse pular de seu peito.
Levou alguns minutos até perceber que estava sentada em uma cama, e quando o fez, sentiu como se o desespero se esvaísse e seu corpo fosse tomado pela calma novamente. Era sua cama. Estava na cabana que morara pelos últimos anos, desde a morte de sua mãe, levada pela radiação. Tinha 12 anos quando aconteceu, e desde então, achou uma forma de se virar sozinha. Aprendera a cozinhar e sobreviveu com o alimento que sobrara. Quando este acabava, Becca tinha de enfrentar o caminho longo e exaustivo até o supermercado, onde reabastecia o estoque de alimentos.
Ela não tinha medo. Este era um sentimento que Becca não se permitia sentir mais. Desde a morte da sua mãe, não se permitiu ter medo de algo, mesmo que isso fosse lhe matar. No começo, tinha medo de andar pelas ruas sozinha, afinal, não sabia quem ainda estava por lá. Mas conforme fora crescendo, este medo foi-se indo embora. A radiação não a assustava nem um pouco, mesmo quando criança. O fato de fazer 18 anos em breve a assustava ainda menos. Este não era o mundo que ela sonhava. Não era um mundo que ela gostaria de viver. Viver nele por todos aqueles anos a fez perceber isso.
Quando o Homem e seu chip surgiram, Becca prometeu a si mesma que não teria aquilo dentro de si em hipótese alguma. Não sentia confiança naquele chip, muito menos no Homem. Mas, quando a Introdução se tornou obrigatória aos adolescentes de 17 anos, Becca sentiu aquela sensação que havia bloqueado anos atrás. Sentia-se apavorada ao pensar que aquele chip a faria viver no mundo por mais tempo, mesmo que contra sua vontade.
Quando acordou naquela cama, sentiu-se calma e segura. Sabia que não tinha passado pela Introdução e que, não tinha o chip dentro de si. E sentia, no fundo de seu peito, que o Homem não viria atrás dela, e que, de algum modo, ela fora deixada para trás. Isso trazia a ela uma alegria colossal.
Becca então percebeu que seu rosto continuava a esquentar, agora mais intensamente do que antes. Procurou a fonte que fornecia esse calor e finalmente, depois de esforçar a vista o máximo que pode, avistou que um raio de luz adentrava seu quarto pela fresta aberta da cortina. Mas... seu quarto não tinha uma cortina que tampava a janela.
Levantou-se da cama, e caminhou lentamente até a cortina. O chão era frio e ela notou que estava descalça. Algo está errado, sua mente balbuciava para si própria. Quando chegou até a janela, agarrou a cortina em suas mãos e a puxou para o lado com toda a força que tinha. A luz solar iluminou todo o ambiente, antes dominado pela escuridão. Agora Becca podia ver tudo o que antes não era capaz. Aquele definitivamente não era seu quarto.
Pintado com uma mistura de azuis, o lugar em que estava dava a impressão de ter sido planejado para um recém-nascido homem. A cama em que estava era pequena e coberta por um lençol branco. Um tapete azulado coloria o piso do chão, todo cinza. No centro do tapete, havia uma cadeira de metal, e em um de seus braços reluzia uma algema pendurada com o ferro prateado pintado com manchas de sangue. Becca olhou para si, e percebeu que uma faixa branca, toda ensanguentada cobria desde o pulso até a palma de sua mão de sua mão direita. Uma lembrança acendeu diante de seus olhos.
Ela gritava, e dois guardas a tentavam segurar, enquanto outra estava com uma seringa nas mãos. Becca se contorcia, clamando o mais alto que conseguia. Um dos guardas a segurava por um braço, em seguida, enquanto o outro a algemava na cadeira no meio do tapete.
Quando ela voltou a realidade, percebeu que lágrimas escorriam de seu rosto. Aquela lembrança... significava que ela...
Becca olhou ao redor pela terceira vez e notou uma porta branca, no meio da parede pintada com a mistura de cores. Andou até ela, e quando chegou perto o suficiente, pôde sentir seus pés tocando algo gelado, assim como pôde ouvir um estralo. Olhou para o chão e viu que pisava sobre cacos de vidro. De onde teriam vindo? Ela abaixou-se e olhou fixamente para todos aqueles cacos. Ah, meu Deus, pensou. O que houve aqui?, perguntou-se, encarando a mancha enorme de sangue no tapete, que misturava-se com os cacos de vidro espalhados pelo chão.
Becca rastejou-se até onde a maioria dos cacos se encontravam e enquanto engatinhava, viu que a quantidade de sangue permanecia aumentando. Lapsos brilhavam a sua frente, mas nada que fizesse sentido. Seria o choque? Seria alguma lembrança? Becca não sabia responder. Tudo o que passava pela sua cabeça naquele momento, era descobrir de quem era aquele sangue.
Os cacos se reuniam em maior quantidade em um ponto do quarto — que agora se mostrava maior do que Becca foi capaz de notar a princípio — onde ela viu que havia uma espécie de objeto arranjado e pintado com uma cor muito clara que Becca não conseguia distinguir qual era. As pontas se ligavam em um formato que parecia que o de um espelho sem o vidro no meio.
Becca estava parada, mudando seu olhar, que ia do espelho quebrado para o sangue, quando a porta do quarto se abriu a com muita intensidade, e um guarda armado entrou e lhe disse:
— Rebecca Lancaster, o senhor White a espera na sala dele — Sua voz era mecânica e grave.
Becca se levantou devagar e andou até chegar perto do guarda. Não lhe dirigiu uma palavra sequer, e tentou não demonstrar o quão aterrorizada estava com toda aquela situação. Ele também não demonstrou sentimento algum através de seus olhos, que se mantinham focados fixamente em uma linha reta.
O guarda se virou e saiu do ambiente em que estava, esperando a menina do lado de fora.
— Vamos, o senhor White a espera na sala dele — repetiu.
Becca saiu do quarto, e observou o guarda puxando a porta totalmente cinza e deslizando-a para o lado, ocultando tudo o que havia interiormente. Entalhado no material da porta haviam os dizeres 9B, garrafais e pretos. Onde estou?, ela perguntou a si mesma, mas temia a resposta que poderia receber.
Então, o guarda disse algo que ela não conseguiu entender claramente e deu um empurrão nas costas de Becca, pondo-a a andar pelo imenso corredor à frente.
A medida que andavam até chegar àquela sala, ela notava o número imenso de portas que haviam naquele corredor. Todas eram iguais exceto pelas siglas em cada uma. Becca se perguntara se o ambiente por trás das portas era igual seu dormitório, tirando, é claro, os cacos de vidro e o sangue no chão.
Aquele era um lugar assustador de tão fechado. Era como se Becca estivesse trancafiada em uma caixa, onde todo som era ecoado até que o silêncio se instaurasse novamente.
O silêncio, a propósito, não a incomodava mais. Estava acostumada, visto que tudo lá fora se mostrava calado e vazio. Contudo, naquele momento, o silêncio do guarda enquanto ela clamava por respostas a comia viva. Becca só pode ouvir a voz dele novamente quando chegaram ao fim do corredor.
— É aqui — foi tudo o que disse, parando em frente a uma porta, parecida com a de seu dormitório. Era colorida por um cinza escuro, o que causava em Becca a sensação de morte. — O senhor White a espera do outro lado.
Senhor White, pensou. Talvez ele possa me dar algumas respostas.
A porta de abriu com o puxão do guarda, que apontou para dentro da sala enquanto, colocando uma de suas mãos nas costas da menina, a empurrava para dentro.
A sala era toda branca. Literalmente branca. Prateleiras brancas, repletas de livros com as lombadas também brancas, que iam de um ponto a outro nas paredes cuja cor imitava o restante da sala. O chão continha azulejos brancos e iam até o final do cômodo, que não tinha nem metade do tamanho que o dormitório de Becca tinha. No centro, havia uma mesa branca, com folhas de papel em cima. Atrás dela havia uma cadeira também branca, onde lá se sentava um homem, com um sorriso de orelha a orelha.
A aparência dele era extremamente bizarra, pensou ela. Ele usava roupas que batiam exatamente com a cor da sala. Um terno e calças brancas e uma gravata da mesma cor. Seus dentes brilhavam como um holofote e seus cabelos eram grisalhos e penteados em um topete. Sua pele era pálida como a neve e sua voz causava arrepios na menina.
— Senhoria Lancaster — disse, levantando-se. — É um prazer.
Ele fez um sinal e o guarda atrás de Becca saiu da sala, tendo sua imagem ocultada pela porta, que se fechou logo após sua saída.
— Sente-se — o homem apontou para uma cadeira que Becca não havia notado antes, a frente da mesa. Ela, obviamente, era branca.
Becca caminhou até a cadeira e se sentou, assim como o homem a sua frente.
— Como está se sentindo? — perguntou, ainda com um sorriso no rosto.
— Quem é você?
— Perdão. Não tive a chance de me apresentar. Eu sou quem todos chamam de Sr. White.
— Oh, você é o senhor White.
— Sim, sou. Imagino que tenha perguntas.
Becca tinha muitas. Por que estava naquele lugar? Como a levaram para lá? Afinal, onde estava? Muitas outras vinham atrás, mas ela resolveu focar em apenas uma. Uma que mexia com sua cabeça.
— O que houve no meu dormitório? De quem é aquele sangue? — foi o que perguntou ao Sr. White.
— Claro... Veja, recebemos muitos adolescentes aqui. E a maioria deles não estão de acordo com a lei. Muitos clamam que o chip não é necessário, e resistem ao processo de Introdução. Você foi uma dos adolescentes que se opôs ao processo.
A cabeça de Becca começou a arder. Ela sabia que tinha passado pela Introdução, mas não se lembrava como tinha sido todo o processo. Via tudo claramente agora. Desde o momento em que chegara aquele dormitório.
— No começo, colocamos você sentada na cadeira em seu dormitório, como fazemos com todos os adolescentes recebidos — continuou Sr. White —, e você se mostrava calma, em relação ao processo. Mas em determinado momento, a senhorita começou a lutar com um dos guardas. Não vimos outro jeito, senão algema-la à cadeira.
Becca estava petrificada, enquanto Sr. White falava. Tudo passava diante de seus olhos.
— Nós guardamos o chip dentro de seringas descartáveis. Não aquelas usadas em hospitais, mas umas que nós mesmos projetamos. Por os chips serem tão pequenos, a maneira mais fácil de colocá-los em vocês seria através de uma seringa, que espetaria a nuca de vocês. Este é o processo. Mas quando o guarda pegou o objeto, você surtou.
Becca revivia a cena. Ela estava algemada, gritando a palavra "não". Então um dos guardas pegou uma seringa e ela se jogou no chão, arrastando a cadeira pela algema e arrastando-a até um espelho.
Depois, ela levantou a cadeira, ainda com a mão algemada, e a girou, batendo-a no vidro, estilhaçando-o em milhares de pedaços.
Um dos guardas correu até Becca e ela, em um reflexo, agarrou um dos cacos de vidro e cravou-o no peito do guarda, quando este chegou perto o suficiente. Ele gritou quando Becca puxou de uma vez o caco de vidro do peito do homem e o enfiou novamente, ainda mais forte. O guarda ficara pálido enquanto o rasgo em sua pele jorrava sangue, que pintava o carpete azul do dormitório.
— Ah meu Deus — disse, enquanto olhava para o Sr. White. — O sangue no chão. Não é meu. É de um dos guardas.
— Sim — disse ele. Embora a situação parecesse horrível, o sorriso ainda esboçava seu rosto, o que assustava Becca. — Mas não se preocupe, o processo no fim das contas foi efetuado com sucesso, e o guarda passa bem. No entanto, tivemos que seda-la.
Um barulho ecoou no ambiente, e o senhor White, rapidamente, olhou para seu pulso, onde continha um relógio que, assim como tudo naquela sala, era branco. Becca pôde ver que seu sorriso diminuiu e que seu rosto foi tomado por uma emoção que ela mesmo não conseguia definir.
— Sinto muito, senhorita Lancaster, adoraria ter a chance de conversar mais com você. Mas temo em dizer que nosso tempo acabou.
— Mas... — Becca não teve tempo de terminar a sentença. A porta abriu-se sozinha e dois guardas entraram. Um deles caminhou até Becca, e agarrando com força seu braço, a puxou de volta ao seu dormitório no fim do corredor.
Assim que Becca e o guarda saíram do campo de visão. Sr. White virou-se para o outro guarda, que se manteve parado e disse a ele, abrindo outro sorriso:
— Muito bem, traga o garoto agora.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro