Remição
Foi às onze e cinquenta e quatro da noite que se deu o início do fim.
Dentro daquela casinha espremida no meio das outras que ficavam em frente ao cemitério, a moradora rolava na cama, em agonia e insônia. Ao seu redor, amassados pelo seu corpo, os papéis com os relatos da semana estavam largados, esperando sua vez de misteriosamente serem levados pelo ar e então desaparecerem como sempre faziam. O mal-estar fazia o corpo da mulher se contorcer a cada respiração e já fazia algum tempo que as lágrimas de dor tinham parado de rolar. Por fim, parou, quase catatônica, olhando fixamente para a parede vazia por onde, segundos atrás, uma mulher ruiva tinha evaporado. A superfície do cimento agora ondulava vertiginosamente, criando imagens em que a moça ruiva caía no chão, se contorcendo enquanto seu corpo se esticava e se dobrava, metamorfoseando-se em algo monstruoso.
Cansada de ver a mesma cena, a mulher se virou na cama, olhando agora para outra parede, onde a luz do poste não iluminava e as sombras prevaleciam. Logo se provou uma péssima decisão olhar para lá, já que nesse canto se repetia, em loop, uma cena grotesca com olhos humanos sendo liquefeitos e sugados. Nauseada, decidiu se deitar de costas na cama, as telhas ocupando toda a sua visão. Um paraíso sem desvario. Nada aparecia quando olhava para cima. Nenhum espectro, nenhum trecho da memória de algum falecido, nenhuma morte ridiculamente grotesca... nada.
Eram apenas as telhas avermelhadas e as teias de aranha. Paz.
No entanto, não conseguia manter seu olhar assim. Sempre que teimava em ignorar as alucinações dos arredores por muito tempo, a dor de barriga piorava de um jeito insuportável que só acalmava quando voltava a ficar deitada de lado. E assim sua noite se repetia em ciclos.
Era um inferno. O seu inferno pessoal havia dias.
A sensação de estar se esquecendo de algo só piorava tudo. Ela sabia que, em meio às alucinações e à paranoia de estar sendo observada por algo, essa coisa esquecida era importante de alguma forma.
Ou talvez fosse só o alerta falso da ansiedade. Ou uma premonição oculta.
Por fim, desistindo de tentar dormir, levantou-se e foi para a sala. Sorriu ao ver a leiteira cheia de chá sobre a mesinha. Por algum motivo, Dona Onésia, a velhinha que morava na esquina, tinha aparecido um dia em sua porta. Ela nunca explicou como sabia do estado lamentável de sua jovem vizinha, mas cuidava dela o máximo que podia, trazendo chá e remédios para o mal-estar. Quando nada disso se mostrou eficaz, ela benzeu a casa para afastar as más energias e chamou um médico. Providenciou toda a ajuda que pôde dar, fez comida... Era um anjo aquela senhora.
Ainda assim, nada de seus esforços resolveria. A moça sabia.
Tinha algo a ver com o arrepio e por isso só se resolveria com trabalho.
Se ao menos tivesse lido direito todas aquelas cláusulas do contrato... Nem sabia se era possível ser "demitida" por algum descumprimento ou o que aconteceria consigo caso isso acontecesse. Seria essa a explicação das dores e da insanidade?
Quebrava a cabeça tentando entender se tinha quebrado com o seu dever contratual alguma vez, mas não tinha errado em nada! Reclamara bastante, sim, e por vezes teve preguiça, mas, mesmo assim, até quando a gripe a afligiu ou quando sofria pequenos acidentes graças às visões, continuou seu penoso serviço e escreveu a história de cada falecido, de cada assombração torturada que precisava seguir em frente. Nada disso tinha sido suficiente?!
Procurou se acalmar enquanto levava o chá para esquentar no fogão. A raiva piorava os sintomas.
Foi se arrastando, dolorida, enquanto uma mão invisível e intangível parecia esmagar suas entranhas. Manteve seu olhar fixo no chá fervendo, já que, pelo rabo de olho, via os vultos passando. No início, isso a perturbava profundamente. Agora era apenas profundamente irritante, como um filme de terror com muitos jumpscares. Nem as mãos fantasmagóricas erguendo a garrafa de café faziam mais qualquer efeito além de um calafrio. Até o homem que gritava com as mãos em chamas e passava pela sala do nada era mais interessante.
Certas imagens ainda eram meio perturbadoras, como o cadáver que saía do armário sempre que ela ia pegar uma roupa. Ele se estatelava no chão. Era um senhor idoso com buracos escuros no lugar dos olhos e da boca, sangue e tripas se espalhando pelo chão ao redor. E então, como se nada tivesse acontecido, ele e seus pedaços desapareciam.
Mesmo com essas pequenas surpresas, tentava não se abalar. Tinha aprendido que as alucinações não reagiam se tentasse se conectar com elas para invocar uma visão. As cenas e as mortes violentas que passavam nas paredes, ao que parece, também não ativavam uma visão. Pareciam existir apenas para atazaná-la e interromper seu sono com sons horríveis de lamentos, ranger de dentes... A sinfonia do inferno.
Talvez tivesse morrido há tempos e estivesse sofrendo no limbo para pagar por seus erros. Isso ou estava fraca demais para conseguir invocar uma visão para especificamente aquelas assombrações. Privação de sono é algo sério e suga mesmo a energia vital.
Quando as vozes da meia-noite começaram a discutir, a mulher nem se moveu. Já tinha se acostumado com elas, tanto que nem se importava mais em ouvi-las.
As falas ecoavam das paredes com trechos desconexos de vários diálogos. A voz masculina era grossa e ora emanava desespero, implorando para que alguém não fosse embora, ora era séria, garantindo que "guardaria o segredo". Que segredo e com quem ele estava falando? Não parecia haver resposta, já que a segunda voz, feminina, soluçava muito e pedia perdão em uma fala entrecortada que não explicava coisa alguma. Ao fundo, também em loop, uma voz rascante como a de um fumante de anos, repetia sem parar "esconda os dentes e as unhas e deite de bruços".
Nada fazia sentido.
De qualquer forma, a essa altura, todos esses espíritos e essas vozes eram friamente ignorados pela dona da casa. Só o chá importava.
Com um calor repentino enquanto começava a tomar a bebida, a mulher decidiu sentar-se na calçada, como costumava fazer em sua casa anterior. Segurou a xícara com o chá fumegante e inspirou seu aroma intensamente, observando as folhas secas se erguerem com o vento que vinha do cemitério. Não tinha medo da noite ou da rua vazia. Pior do que tudo estava, não ficaria.
Uma coruja passou voando por cima de sua cabeça, mas a mulher não se importou. Ou simplesmente não tinha processado essa informação, ocupada demais tentando se lembrar da coisa de que tinha se esquecido. Uma lembrança vaga mostrava que era sobre datas. Talvez fosse a data de entrega do trabalho da faculdade... ou o aniversário do Jorge, o sobrinho do seu chefe, no sábado... Ele era um chato, mas não se recusa comida de graça. Pelo menos tinha a sexta e metade do sábado para melhorar seu estado moribundo antes de ir até a festa para encher a bolsa de comida.
Foi quando uma mão enfaixada pousou em seu ombro. Ela ergueu o rosto, curiosa, e viu um homem jovem sentar-se ao seu lado na calçada. Não parecia perturbador ou surreal como as outras alucinações. Na verdade, parecia tristonho e familiar. Não que isso significasse algo, já que ela tinha visto mais rostos do que estrelas no céu graças ao seu penoso serviço com as almas.
— Me desculpe. - disse a aparição, olhando para a rua - Eu não devia ter tratado você como... um animal de circo. Eu só estava tentando... - ele suspirou, cansado, e se virou para ela, sério - Eu lamento se me expressei mal e a magoei.
Confusa, a mulher logo percebeu que ele não estava olhando para ela e sim através dela. Seguindo um instinto e com energia renovada pelo chá, ficou de pé e olhou para trás. Nada. A aparição permanecia olhando para o ar. Bufou, irritada. Claro que a visão não aparecia tão fácil. Resignada, fechou os olhos, gastando toda a sua energia num último esforço para invocar uma visão.
Quando voltou a abrir os olhos, o mal-estar, a dor de cabeça, tudo sumiu enquanto um cenário novo se formava ao seu redor. Arfou, aliviada. Tinha conseguido. Choraria de felicidade se não fosse a percepção de que estava no meio de uma visão e tinha trabalho a fazer. Tirou o celular, seu parceiro útil para toda visão repentina, e começou a digitar.
"Graças a tudo que é mais sagrado, essa visão FINALMENTE apareceu. Demorou tanto que eu quase morri. Credo.
Mas falando da visão...
Ela começa com uma rua de terra em frente a um terreno vazio. Não há postes de luz, mas, apesar disso, tudo está claro como o dia. Na calçada, duas pessoas estão sentadas. O homem parece ter uns 30 anos, no máximo. Sua pele é de um marrom acobreado que parece brilhar sob a luz da lua cheia conforme ele contrai os lábios para pedir desculpas emotivas. A mulher ao lado dele, com o rosto franzido pela mágoa, parece mais jovem que ele, tem a pele mais clara e o cabelo de um vermelho alaranjado impressionante.
Seu olhar parece cheio de hesitação sobre aceitar ou não o que o homem estava dizendo. Por fim, com uma inspiração profunda, ela vira o rosto para ele e murmura, com voz rouca, um 'até amanhã' enquanto se levanta e vai embora. Ele parece aliviado com a resposta, mas emana preocupação enquanto acompanha, com o olhar, o caminho que a mulher faz pela rua. Eu não entendo o contexto, então tento encontrar memórias..."
A moça para, apertando a cabeça, parecendo sentir dor.
— Não é possível que eu já tô no limite... - murmura com irritação, fechando os olhos com a dor de cabeça repentina - Nem a pau que isso vai me parar. O maior perrengue pra ter essa visão do caramba... Ah! Até que enfim! - abriu os olhos, animada, agora enxergando outro cenário.
No entanto, semicerrou os olhos ao ver aquela subida familiar e aquelas casinhas antigas com teto de palha, se perguntando se tinha estragado a visão. No entanto, a dor que sentia quando estava se afastando da história principal não tinha dado as caras, o que significava que era aquele caminho mesmo. Prosseguiu.
"Surpreendentemente, a primeira memória que encontro é nada mais nada menos que uma cena de relatos passados: o menino magricela segurando seu cachorro nos braços enquanto fugia da Besta-Fera.
Tudo está igual, mas ao mesmo tempo um pouco diferente. Por esse ângulo, consigo ver com mais clareza o quão rápido o menino estava enquanto descia a ladeira e posso ver o desespero no olhar dele quando sentiu a ponta do chicote metálico da criatura encostar em suas costas franzinas, o desequilibrando. A queda dele no chão de terra, a criatura saltando por cima de seu corpo para seguir caminho até o cemitério, a expressão de pavor dele vendo os corpos esqueléticos dos espíritos presos nas correntes... tudo está exatamente igual, mas meio cinzento, como se a fita dessa memória tivesse envelhecido e estivesse desbotando.
Conforme cores começam a manchar o céu e as paredes, o cenário vai mudando e agora imagens ridiculamente rápidas passam. São cenas curtas com ele ouvindo histórias de idosos contando sobre seres assustadores, trechos de conversas dele com garotos mais velhps (talvez seus irmãos), momentos em que ele está lendo livros ilustrados e velhos com imagens de monstros..."
A mulher tampa a boca, respirando fundo e tentando conter o enjoo enquanto os pensamentos do garoto em cada um desses momentos chegam ao mesmo tempo em seu cérebro em um caos sonoro. Por que esse tipo de coisa nunca chegava calmamente?! Felizmente, após respirar devagar e apertar os ouvidos para tentar cessar o barulho, conseguiu desembaralhar as falas misturadas e entendeu a história resumida daqueles momentos. Inspirou fundo, recomeçando a digitar.
"De alguma forma, a situação traumatizante de seu primeiro encontro com o sobrenatural tinha despertado algo nele. Uma curiosidade contínua pelo desconhecido, uma ânsia por sentir aquela adrenalina de novo. Seguiu sua vida do jeito como mandavam: terminou a escola, ajudou seu pai no trabalho dele e por fim herdou o lugar. Mesmo assim, nunca parou de desejar que algo interessante acontecesse para tirá-lo de sua vida tediosa, então ia atrás de qualquer coisa estranha que contassem.
Como diz o ditado: quem procura acha.
Por uma rápida concessão do destino, enquanto começava seu expediente de madrugada, ele pôde ver, com seus próprios olhos, uma criatura, por alguma coincidência, também da família dos equinos. Minutos antes de saber que ela passaria, o rastro sonoro dela começou à distância: latidos de cachorros furiosos e o som trovejante dos cascos se chocando com o chão. Durante alguns segundos, ele se perguntou se o que veria seria o monstro que o aterrorizara no passado. No entanto, a diferença do barulho se sobressaía: não havia o som das correntes chacoalhando e essa criatura quadrúpede com certeza colocava as quatro patas no chão, diferente da outra.
Além disso, havia os urros. Altos, estrondosos e capazes de colocar o medo no coração de qualquer um que os ouvisse. Se os escutasse com atenção, quase era possível ouvir que eram os lamentos de alguém preso sob o corpo de uma fera imparável."
A mulher interrompeu o texto, apertando os ouvidos de novo, com raiva. Os urros tinham ficado extremamente altos. Era quase insuportável. Felizmente a criatura logo foi embora da cena e a escrivã pôde observá-la bem antes de que ela partisse. Enquanto esse cenário desvanecia, correu para digitar cada impressão do que vira.
"Não bastasse a Besta-Fera, agora ele pôde ver com riqueza de detalhes uma Mula-sem-cabeça. Eu francamente não sei a diferença entre caracterizar mulas e equinos, mas definitivamente não era a parte de um animal normal que chamava atenção nessa criatura. O que saltava os olhos, sem dúvida, eram as chamas. Altas, brilhantes e alaranjadas como um incêndio florestal, elas fluíam do buraco negro que era o pescoço decapitado em um fluxo constante e quase hipnotizante, um aviso gigantesco de perigo. O brilho intenso como o de um farol refletia no pelo negro curto, destacando os contornos do animal musculoso correndo em sua velocidade assombrosa e iluminando as paredes e as ruas ao redor, como um rastro de fogo."
Respirou fundo, apertando os olhos, sentindo a visão desvanecer.
— Agora não, agora não... Eu tenho que acabar essa história, caramba! - resmungava, piscando - Não desconecta, vai! Me deixa ver a sua história, por favor... Eu só quero ajudar você!
Sentiu algo como um choque e então abriu os olhos, sorrindo cansada.
— Muito obrigado! - agradeceu, voltando a digitar.
"Mas isso ainda não era o bastante para a curiosidade dele.
Com o ímpeto e a ânsia de um caçador, o rapaz procurou qualquer pista, qualquer relato de alguém que a tinha vistpo.
Como se trata de Serra Baixa, não tardou para ele se ver cercado por histórias, mas nenhuma trilha consistente para seguir. Frustrado, decidiu retornar à vida comum, sem pensar muito na criatura impossível que tinha encontrado. Se ocupou com outras coisas, como seu trabalho na padaria e o programa voluntário que levava comida para os bairros pobres da cidade.
Foi em meio a essa rotina pacata, como se fosse mais uma concessão do universo, que conheceu Teresa. Ela era gentil e educada com todos, mas parecia evitar o resto do grupo de voluntários a todo custo. Especialmente às quintas e sextas-feiras. Nesses dias, ela era especialmente esquiva.
E logo ele descobriu o porquê.
Sendo sua padaria em frente a um cemitério, era evidente que seu caminho se cruzaria com a Mula mais uma vez algum dia. E isso de fato aconteceu.
Em uma cena muito rápida, consegui ver mais ou menos esse segundo encontro. Ele estava distraído indo abrir a padaria quando ouviu a criatura. Alguém sensato tentaria abrir o portão rápido para poder se esconder dentro do lugar. Mas não foi o que ele fez. Sua ânsia por emoção e sua obsessão pela criatura ofuscaram a razão e ele decidiu simplesmente ir na direção do monstro. A coisa mais estúpida que eu já vi.
No entanto, por um milagre, o rapaz saiu praticamente ileso. Fora certas queimaduras de terceiro grau, sua força da juventude permitiu que ficasse montado na mula ensandecida por alguns segundos, tempo suficiente para desviar o caminho dela e fazê-la se chocar com tudo contra a grade enferrujada do portão, que, com o impacto, ficaria eternamente torta.
Dolorida e desorientada pelo baque, a Mula-sem-cabeça abandonou o infame humano no chão e disparou para longe.
Qual não foi a surpresa do rapaz ao descobrir, no dia seguinte, que Teresa tinha exatamente o mesmo hematoma, seu braço direito equivalente à perna dianteira direita da mula."
— Meu pai, já sei até aonde isso vai dar. - resmungou a escrivã, estalando o pescoço, cansada - Espero não ter feito muitos erros de digitação aqui... - respirou fundo, voltando a digitar.
"E É CLARO que viria mais um grupo de cenas rápidas. Porque já está muito fácil me manter conectada nessa visão.
Mas vou parar de reclamar antes que o arrepio decida me atacar de novo com aquele protótipo de dengue hemorrágica.
Na visão, passam rapidamente momentos no voluntariado, em que o rapaz foi aos pouquinhos se aproximando de Teresa e criando uma amizade curiosa com ela; uma cena em que ela está chorando e ele a abraça de lado; um instante fugaz em ela ri enquanto tomam café; e, por fim, a conversa, quando ele foi falar para Teresa que sabia do segredo dela.
Passou-se muito tempo antes de esse assunto voltar a ser citado, já que Teresa fugia dele com tudo.
No fim, porém, o rapaz conseguiu se mostrar digno de confiança e garantiu que guardaria o segredo. Teresa aceitou e, após mais tempo, acabou também lhe confidenciando seu passado e como a vergonha pela maldição que tinha recebido, apesar de não ser sua culpa, havia feito com que fugisse para Serra Baixa. Ou melhor, acabou prendendo-a lá. Fazia dez anos que não conseguia transpassar a fronteira da cidade por algum motivo inexplicável.
Disso eu não duvido. Não tem como sair dessa cidade. Especialmente se você tem qualquer conexão com o sobrenatural.
Mas é claro que eles não sabiam disso e logo o assunto recaiu em como quebrar a maldição. Após conversarem muito, Teresa concordou em aceitar a ajuda dele nessa situação. Retomando seu velho entusiasmo com pesquisas sobre monstros, o rapaz voltou às suas fontes mais confiáveis: os idosos.
Coisa que eu deveria ter feito desde o início desse trabalho. Talvez exista algum jeito supereficiente de se proteger das forças do mal que não está na internet e eu nunca vou saber.
Mas voltando ao relato...
Cada um deu respostas diferentes, algumas relacionadas a lendas diferentes, como oferecer sal e espetar com um espinho de uma laranjeira do cemitério... Pera, será que esses realmente funcionam no caso de uma Mula-sem-cabeça? Ah, se isso é um relato, provavelmente não.
No fim, a resposta que mais se repetiu era um caminho infinitamente mais difícil que essas outras opções: tirar o freio de ferro da boca da mula.
Poderia ser simples, se não fossem detalhes: é uma mula sem cabeça, então onde raios fica esse freio de ferro?! Além disso, que freios de ferro?! Eles existem e são invisíveis? A cabeça dela é invisível? É por isso que dizem que 'sai fogo das narinas dela' sendo que precisa ter cabeça pra ter narinas?
Não sei se entendi tudo, mas vamos seguir o baile.
Lá foram os dois, planejando para a quinta-feira seguinte, a animação estranha do rapaz contagiando Teresa sobre a possibilidade de ela enfim se ver liberta do seu fardo. Era algo bom demais para ser verdade, perigoso demais para alguém que não era à prova de fogo e que não tinha qualquer experiência com manejo de animais grandes e irritados, mas ele insistiu, então continuaram com o plano.
Na hora H, obviamente deu tudo errado.
Apenas para conseguir sequer se segurar por tempo suficiente no pescoço decepado da mula, ele precisou colocar as mãos em meio ao fogo sobrenatural da criatura, o que já rendia queimaduras de primeiro grau em suas mãos e em seu rosto. Para chegar aos arreios de ferro então! Seu braço inteiro precisou ficar no meio do fogo.
É de se imaginar que a dor lancinante de queimaduras graves impeça a precisão das pontas dos dedos ao segurar algo metálico e que, portanto, transmite melhor o calor. No fim, o animal flamejante, com um simples giro de seu corpo forte, lançou longe o humano, que se estatelou no chão.
A imagem piscou momentaneamente, alternando entre o adulto, caído no meio do cemitério com os braços em carne viva, e o menino franzino, caído no chão da ladeira com o corpo sujo de terra.
Quando ele recobrou os sentidos, a mula já tinha desaparecido na esquina, o som de seus cascos ecoando muito longe.
No dia seguinte, Teresa chegou, aos prantos, no hospital onde o rapaz estava sendo atendido. Ela sentia muito remorso por ter ferido gravemente o único que, além de guardar seu segredo, também tinha se disposto a ajudá-la. No entanto, contrariando novamente qualquer pessoa sensata, o jovem não parecia assustado. Pelo contrário, ele tinha inclusive brincado sobre 'repetir a dose com a mula'.
Eu não pude anotar todas as frases do que veio a seguir, mas o que realmente provocou a briga daquele dia não foi o que ele tinha dito, mas como ele tinha dito. Teresa entendeu que ele não estava levando aquela situação com a seriedade necessária e que estava tratando tudo como uma brincadeira, uma simples satisfação da necessidade dele de ter emoção em sua vida. Isso a magoou muito, já que a maldição tinha sido seu inferno pessoal havia anos, não era algo bom ou divertido, muito menos era algo inofensivo e ele tinha tido toda a sorte do mundo por ter sobrevivido pelo menos uma vez a um encontro com o monstro. Tantos outros queriam ter tido o mesmo destino...
Tendo dito tudo o que sentia, ela foi embora e não voltou mais ao hospital.
Quando ele se recuperou o suficiente para voltar para casa, encontrou Teresa na calçada, séria. Ele se sentou ao seu lado e pediu desculpas de um jeito meio resumido, mas que era o melhor com que podia se expressar. Ela aceitou suas desculpas, mas ao olhar as cicatrizes das queimaduras marcando o rosto dele, decidiu-se a não continuar esse plano.
Continuaram se vendo no voluntariado, apesar de as coisas terem esfriado. Por fim, Teresa se mudou para outra área da cidade, de modo que a Mula nunca mais passaria em frente à padaria e o padeiro se conformou com a ideia de que viveria uma vida normal a partir dali e nunca mais teria outra chance de ajudar Teresa.
Ou pelo menos foi o que ele tinha pensado."
A escrivã para para coçar os olhos, boceja e estala o pescoço.
— E agora chegamos ao final. A morte, eu imagino.
A coruja no telhado solta um pio agudo e um calafrio percorre o corpo da mulher. Ela o ignora e segue para, enfim, a parte final do relato e da noite.
"Viveu uma boa vida.
Amou e foi amado. Teve momentos tristes e felizes, vivenciou ganhos e perdas, dias de luta e dias de glória. Conheceu boas pessoas e teve um lugar confortável para viver, mesmo estando a vida toda na mesma cidade.
No entanto, mantinha seu arrependimento de nunca ter conseguido quebrar a maldição de Teresa. Perguntava-se se ela, afinal, tinha conseguido se libertar graças à ajuda de outra pessoa mais preparada. Esperava que sim e que agora a mulher estivesse livre.
Mas nós sabemos o que aconteceu.
Ele já estava com uma idade avançada quando o destino decidiu agir. Seu cabelo curto já se tingia completamente de branco e seu corpo já não conseguia mais se movimentar como antes. Ainda assim, quando recebeu o aviso da coruja por meio da beata, apesar do receio, a dúvida o atingiu. O motivo para não sair naquela madrugada de quinta-feira seria por causa da Mula-sem-cabeça? Seria possível que, depois de todas essas décadas, ela ainda estivesse amaldiçoada?
Se fosse esse o caso, tinha recebido uma única chance de se livrar de seu arrependimento. Talvez a única que o destino lhe daria antes de sua morte, então não iria desperdiçá-la.
Como um eco do passado, a sequência dos eventos de seu segundo encontro com a Mula-sem-cabeça se repetiu.
Estava em frente à padaria quando ouviu, ao longe, a cacofonia que acompanhava a passagem de tal criatura. Seus ouvidos já não eram mais os mesmos, mas ainda assim ele soube e notou os lamentos chorosos em meio aos urros do ser."
— Ah, mas que dor! - gemeu, apertando os ouvidos e fechando os olhos.
Era como se a própria Mula-sem-cabeça estivesse batendo os cascos ao seu lado e urrando em seu ouvido.
Quando abriu os olhos, era como se tudo estivesse duplicado, a enxaqueca atrapalhando a visão. Ainda assim, conseguiu ver, no fim da rua, galopando ensandecida como uma locomotiva, sua cabeça flamejante como um farol, a Mula-sem-cabeça. Em frente à padaria, a silhueta do padeiro idoso permanecia em posição. Não esperou mais.
"Os cascos tocavam o chão como se pesassem toneladas, seu impacto ecoando até nos ossos de quem estivesse perto. Os urros eram ensurdecedores, reforçando o barulho extremamente alto que acompanhava a chegada da criatura. Suas chamas eram intensas e amarelas e ver o pescoço decepado de frente era ainda mais bizarro do que se pensa.
Nada disso assustou o velho padeiro, que saltou como pôde na direção do monstro... E caiu miseravelmente. Suas articulações não eram mais as mesmas, tampouco tinha a mesma força de antes, destruindo em segundos suas frágeis esperanças.
Ainda por cima, a queda tinha sido feia e o pobre idoso não conseguiu se mover rápido o suficiente, levando um forte golpe na barriga com os cascos do monstro. O sangue do humano jorrou e, no entanto, a criatura não parou de golpeá-lo mais e mais e com cada vez mais agressividade. O fogo intenso queimou a pele do, agora, cadáver e seus globos oculares derreteram e escorreram pelos lados com o calor intenso. De forma bizarra e incompreensível, a cabeça invisível da mula desceu até o chão e, com uma espécie de língua feita de fogo, lambeu e sugou o líquido cinzento nas órbitas... Grotesco.
Na calçada, o espírito do padeiro olhava tudo em choque, incapaz de processar que tinha morrido de um jeito tão violento e que aquele corpo carbonizado e amassado na rua era seu. Enquanto a cabeça invisível comia cada um dos dedos dele após roer seus dentes, um sentimento de revolta foi tomando o espectro, que, por fim, deu um grito de raiva, frustração e uma mescla de outros sentimentos que não conseguia identificar.
A Mula-sem-cabeça, então, se recompôs e partiu a toda velocidade para o fim da rua, seu rastro tendo sido a última coisa que a velha beata conseguiu ver quando abriu a porta de sua casa.
A partir daí eu sei como isso termina. Há o enterro, a beata morre e vocês se encontram e seguem juntos. Você estava em paz, mas imagino que ainda precisasse que alguém contasse sua história. Não se preocupe, eu fiz o meu trabalho. Pode seguir pelo seu caminho e eu sei que algum dia a Teresa vai conseguir quebrar a maldição."
Cansada, estalou a coluna e respirou fundo, vendo as letras de tudo que tinha digitado magicamente desaparecerem exatamente à meia-noite, deixando apenas o fundo branco do aplicativo de notas do celular.
— Então o arrepio aceitou o relato digitado... Nossa, que sorte a minha. Vou poder ir deitar. Mas antes disso o meu chá... - já dizia, virando-se para voltar para sua casa.
Foi quando viu, ao longe, o começo da cena de morte do padeiro, em que ele aguardava na esquina enquanto o monstro vinha galopando. Já achava que era outra alucinação...
— Masoque... - sussurrou quando viu o padeiro desvanecer no ar.
Então a percepção: a coisa de que tinha se esquecido era que aquele dia também era quinta-feira.
E de fato havia uma Mula-sem-cabeça vindo em sua direção.
— Ah, mer...! - foi a última coisa que saiu de sua boca.
Olhou na direção de sua casa, em pânico, mas viu que tinha se afastado muito no meio das visões, tanto que estava do outro lado da rua.
Não dava tempo de correr até a porta.
O coração batia acelerado no peito e o tempo pareceu ter congelado enquanto ela se via cara a cara com a morte numa situação que só tinha cogitado antes em tom de piada: a ironia de morrer enquanto escreve o relato dos mortos. Nesse instante, porém, a ironia iria a um nível a mais, já que a mesma coisa que tinha trucidado a vítima do relato recente estava prestes a fazer o mesmo com a narradora. E isso ainda por cima ocorreria na frente de um cemitério.
Parecia uma piada do universo.
Uma piada cruel.
Enquanto via o buraco negro do pescoço cortado flamejante se aproximar, sua mente dissociou, se perdendo em pensamentos.
Então era assim mesmo que acabava? Depois de tudo o que tinha passado naquele contrato infernal, se deprimindo com as histórias trágicas de centenas de pessoas ao longo dos anos, ficando permanentemente aterrorizada com as criaturas que tinha descoberto existir, sendo incomodada dia após dia com visões que a impossibilitaram de viver e não sendo capaz de seguir a vida normal de alguém de sua idade por isso... Depois de tudo, era assim que morreria?! Desse jeito tão idiota e sem ter feito nada grande na vida?!
Desistira de todos os seus sonhos e planos e ficara longe de todos que conhecia por anos, precisando até afastá-los intencionalmente para não tentarem procurá-la em uma cidade sobrenatural da qual é impossível sair. E tudo isso por quê?! Era tão injusto e...
Não.
Não, não podia alegar injustiça ali. Não mais.
Gostava de ignorar os fatos e deliberadamente se esquecia deles, mas ali, diante do iminente fim de sua vida, não podia mais negar que era adulta e toda essa situação fora apenas a consequência de suas ações. Era o preço explícito a ser pago num contrato sobrenatural que fora assinado impulsivamente por uma jovem desesperada por respostas.
E o arrepio fizera sua parte. Ela havia, de fato, conseguido o que queria e descobrira a verdade sobre o último suspiro de alguém querido, pondo fim a uma dúvida que, como um verme em um cadáver podre, corroera sua mente por tanto tempo. Não havia sido uma cilada, uma trapaça do universo em que ela tinha sido completamente inocente. Não, não era culpa do arrepio que a imprudente humana simplesmente não prestara atenção nas implicações do que estava assinando.
E agora ela precisava assumir a responsabilidade. Escolhera aquela habilidade. Não só isso, mas também tinha implorado por ela e depois simplesmente ignorara as instruções de como viver com essa condição ou as regras que a regiam. Tinha escolhido o caminho mais difícil para se viver ... E agora sua vida acabaria ali. Não importava mais o que poderia ter sido feito caso não tivesse assinado, já que não havia mais o que se fazer. Era isso, passou.
Restava apenas gastar esses poucos segundos antes da morte, instantes que se tornam pequenas eternidades na mente, para observar que coisas boas também tinham acontecido, que tinha feito o que pôde. Talvez essas lembranças trouxessem algum alento no fim...
As lágrimas já umedeciam seu rosto conforme se deitava em posição fetal no chão em um esforço inútil e instintivo de se proteger do impacto. No asfalto, o som retumbante do galope do monstro parecia uma contagem regressiva, a cada impacto dos cascos no solo, sua mente criava a cena de seu crânio sendo esmagado por eles. Pelo menos esperava que o crânio fosse o primeiro atingido, assim não sentiria muita dor antes do último suspiro.
Em silêncio, pedia, implorava a quem ou o quê estivesse a ouvindo para que a ajudasse a escapar! Não queria morrer, não ali, não daquele jeito. Com todas as forças que restavam em seu ser, desejava sair dali, desejava ficar em segurança, desejava sobreviver!
Em frente àquele cemitério, ela sentiu a presença fria de um espírito tomar suas mãos e fechá-las em punho. Não reagiu. Apenas esperou.
Subitamente o silêncio tomou tudo.
Confusa, abriu os olhos, enxergando os túmulos e o espírito do padeiro, que a observava com pena. Num esforço último de tentar salvá-la, ele fez com que ela escondesse as próprias unhas, uma forma antiga de não chamar a atenção da Mula-sem-cabeça.
O que funcionaria se não fosse tarde demais para isso. Os dois sabiam. A fera em chamas já tinha visto sua pobre vítima parada no meio da rua como se pedisse para morrer. A fera vinha com a força de uma locomotiva, só por um milagre desviaria.
A essa altura, não havia o que fazer. A imagem estática da mula na sua frente mostrava isso.
A mulher abraçou os próprios joelhos enquanto percebia que seu corpo parecido grudado no chão como um ímã. Mais lágrimas desceram. Não sabia ao certo o que estava sentindo. Medo? Raiva? Frustração? Alívio? Pena?
Soluçava muito, tentando colocar para fora um misto de sentimentos igualmente compreensíveis em sua situação. Era estranho processar sua própria morte.
Foi quando sentiu o arrepio.
Aquela sensação tão corriqueira, que a acompanhara em seus dias por quase seis anos e que era sempre o precursor de alguma história deprimente ou aterrorizante... Era estranho sentir os pelos de sua nuca se eriçarem assim agora. Não havia tempo para contar mais histórias...
Não. Sentiu melhor. Aquilo era diferente.
Em todas as vezes, o arrepio era uma sensação visceral, como se o interior de seu corpo se contorcesse, um tremor reverberando de dentro para fora.
Agora não. Era uma sensação externa. Um calafrio que se concentrava especificamente em suas costas, como se exatamente atrás dela estivesse algo... uma presença tão fria quanto a brisa da noite, mas tão quente quanto um abraço terno.
Chocada com a sensação, sua mente entrava em pânico em um inédito nervosismo diante da possibilidade de estar diante de - ou, no caso, de costas para - uma formidável força da natureza que tinha a acompanhado até agora.
— Eu sei que não queria que acabasse assim. - disse uma voz rouca, solene, sem um gênero específico. - Dificilmente eu busco as pessoas quando elas querem.
Silêncio mortal.
A humana expirou lentamente, embasbacada com a confirmação do que pensara.
— Você sofreu tanto. Algo inerente à vida humana. O sofrimento. - continuou o ser - Assim como o júbilo. Acho que isso define os humanos: a dualidade. Com sua inteligência e coração, são capazes de realizar os mais hediondos dos atos, mas também os mais altruístas. Vivem por menos de um século e ainda assim são capazes de experenciar um espectro de emoções tão diversas, da alegria à tristeza, da esperança ao desespero... É fascinante. - a voz parou, ecoando em cada osso do corpo da humana - Sim, fascinante. Poucos percebem que é na efemeridade da vida, na sua volatilidade e mudanças constantes, que reside a preciosidade desse dom. - silêncio - A vida é preciosa porque um dia acaba, Calíope. E hoje você irá ver a sua irmã.
Um soluço fugiu pela garganta da mulher quando ela ouviu o próprio nome sendo dito por aquela voz grave e serena.
— Você fez um bom trabalho. Viveu bem. Cumpriu sua parte do contrato. Pagou sua dívida. Talvez já tenha se esquecido, mas você também ajudou inúmeras almas durante esse tempo. Pessoas que se amavam se reencontraram. Centenas de falecidos puderam, graças a você, se libertarem das correntes mundanas que o esquecimento de suas histórias criava.
Lágrimas desciam pelos olhos da humana em cascatas e ela tentava, em vão, enxugá-las.
— Agora você pode descansar em paz...
— Espera! - interrompeu a mulher, subitamente.
Com um olhar de pena para a mula, continuou.
— Ela não conseguiu ajuda. - disse, superando a atração do chão e levantando-se.
Pelo canto do olho direito, via um borrão de escuridão que sua visão não conseguiu definir.
— Eu já vou morrer mesmo. - falou, com voz amarga, mas começando a aceitar seu fado - E ela não merece continuar presa a essa maldição.
Na forma de um vento frio, a sensação ressoou mais forte em suas costas, como se o ser estivesse pensando.
— Você pode fazer isso. No entanto, devo avisar que será uma morte muito mais dolorosa e lenta. Quer continuar mesmo assim?
— Uma morte é uma morte. - retrucou, melancólica, ficando frente a frente com as labaredas, dali conseguia ver, invisíveis, a cabeça e as correias metálicas - E se com a minha outros não voltarem a morrer nos cascos da mula... Que assim seja.
Então, sem pestanejar após receber a permissão, a humana enfiou suas mãos nuas em meio às chamas. Rangendo os dentes de dor, ela aproveitou a única vantagem que nenhuma outra pessoa no mundo teria: a mula imobilizada. Com os dedos em carne viva, corroendo-se em agonia enquanto as labaredas começavam a se mover e queimavam seus braços e seu rosto, ela conseguiu erguer a correia. Mal pôde comemorar, pois, no segundo seguinte, foi atingida, com o impacto de um trem desgovernado, pelo corpo do animal negro.
Sentiu cada costela quebrar, cada perfuração em seu pulmão e em seu coração. Arfou ainda uma última vez antes de, agarrando-se à fera ensandecida, retirar a correia invisível.
Seu corpo caiu no chão, inerte, sendo ainda atingido pelos pesados cascos do animal, que esmagaram órgãos internos antes de desabarem também no chão da rua, mais em frente. Tentou respirar, mas era impossível. Lutou pelo ar por ainda alguns segundos antes da luz se esvair de seus olhos por completo e um último suspiro atravessar seus lábios.
No chão da rua, a mula negra se contorcia. Cada perna retrocedendo e se transformando em braços e pernas humanas. O pescoço decepado se arredondando numa cabeça humana de uma mulher chorosa que observava, em choque, sua própria transformação. Um misto de sentimentos percorria seu ser enquanto ela se via, enfim, após tanto sofrimento, livre do fardo injustamente preso apenas a ela.
Seus olhos se ergueram para procurar por sua salvadora e, no entanto, não viu nada. Apenas um celular com a tela rachada restava no asfalto.
Para Calíope, tudo durou um segundo.
Num instante, via-se afogando em seu próprio sangue enquanto olhava uma última vez para a lua cheia brilhante no céu cinzento de Serra Baixa.
No instante seguinte, seu corpo relaxou e se apagou, como quando as carícias do sono enfim envolvem a pessoa, colocando-a na agradável inconsciência de Morfeu. Aquela, porém, era uma sensação diferente. Era mais magnética, como afundar lentamente em uma piscina, porém sem a agonia da falta de ar e da água entrando nos pulmões.
Era uma sensação reconfortante. Calmante como um bebê sendo ninado nos braços da mãe.
No ar, a vibração de uma voz retumbou brevemente. Emanava contentamento. Mas a mulher não entendeu o que fora dito.
Logo, porém, sentiu uma sensação diferente tomar seu ser, como se seu corpo estivesse sendo erguido na água, boiando até alcançar a superfície.
De repente, mais sensações. O toque terno do ar quente em seu rosto. Uma leve pressão em suas costas e em seus braços. Os cabelos caindo na boca, bagunçados. A brisa soprando contra a pele descoberta de seus pés descalços.
Confusa, percebeu que conseguia abrir os olhos e se deparou com um céu azul tão brilhante que teve que fechá-los de novo com a agressão da luz. Abrindo-os novamente, conseguiu contemplar nuvens brancas dispostas no céu como pinceladas de um pintor impressionista sobre uma tela. Pássaros voavam por cima dela e a grama a seus pés terminava bruscamente em uma estrada de asfalto falho com cheiro de borracha. O sol de um novo dia brilhava.
Definitivamente não estava em Serra Baixa.
Consigo só trazia as roupas do corpo e seus pés descalços estavam enfiados em meio à grama molhada, algumas formigas subindo em suas pernas.
Uma lágrima desceu por sua bochecha quando entendeu o que tinha acontecido.
Estava finalmente livre.
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