Insônia
O dia está morno e monótono enquanto eu arrumo os produtos nas prateleiras certas. É um trabalho tedioso, mas aparentemente eu sou a única pessoa que se importa se os clientes colocam bolachas no meio dos sabonetes ou se alguém deixou vários sacos de feijão no meio dos de café. Aquele preguiçoso do Jorge não move um dedo, só fica assistindo ao jogo de futebol e nunca vai ser demitido. Ser sobrinho do dono do mercado tem suas vantagens.
Então, enquanto ando entre as estantes procurando mais coisas para arrumar, vejo um vulto. Seu andar é arrastado como se não tivesse um pingo de energia no corpo esquálido e seus braços pesados mal conseguem segurar os pacotes de sal grosso que foram pegos na... prateleira das fraldas? Não...
Eu finalmente entendo quando sinto minha pele estremecer.
O ar fica meio embaçado e as prateleiras ondulam. Suspiro. O arrepio realmente me pegou de surpresa. Ainda bem que não há mais pessoas aqui. Isso certamente me distrairia.
Pego meu bom e velho caderno de anotações e a caneta enquanto as paredes do supermercado vão se moldando ao redor de meu recente cliente espirituoso.
Sigo seu trajeto por alguns instantes antes de esbarrar no nada. Tenho que tomar cuidado com as prateleiras reais.
Ele se dirige para o caixa junto com caixas de velas e uma tesoura nova e afiada. Parecem coisas muito específicas para se comprar. A cena some e me vejo em outro lugar, uma sala de um kitnet apertado onde o meu cliente se empanturrava com uma pizza inteira. A princípio, fico confusa com a falta de continuidade, mas percebo que esse instante é anterior ao primeiro. Sorrio. Nem preciso me concentrar dessa vez, as memórias do adulto cansado já estavam me envolvendo em uma teia de alucinações (talvez o trabalho - eu espero - seja rápido hoje).
O rapaz estava bem. A julgar pelas bolsas e sacos ainda cheios de coisas, ele tinha acabado de se mudar para Serra Baixa. Pobre alma. O cansaço da viagem havia sumido com qualquer impulso para cozinhar o jantar, então ele tinha decidido o caminho mais fácil escolhido por qualquer um que tenha dinheiro e pouca energia para enfrentar o fogão.
Tsc, tsc, tsc. Já sei aonde isso vai parar.
Barulhos ecoaram das telhas, mas o jovem ignorou, acreditando tratar-se apenas de gatos vagabundos passeando.
Ele arrotou enquanto colocava na geladeira duas fatias solitárias: tudo o que restara das duas pizzas e que seria, na manhã seguinte, seu café-da-manhã.
Então, muito contente consigo mesmo, o jovem se arrastou até seu quarto, apagando as luzes e se jogando na cama. Por muitas horas, o fato de estar dormindo de bruços, apesar de ser péssimo para a coluna, foi o que o manteve a salvo. No telhado, algo caminhava, impaciente, mexendo nas telhas como um vento forte de tempestade. Porém, conforme a noite passava, o rapaz rolava inconscientemente pela cama, mudando de posição. Em um instante terrível, selando o destino do jovem, ele acabou ficando de barriga para cima.
No teto, a criatura parou de andar. O silêncio tenso ressoou na noite escura, um prelúdio do que ocorreria. A janela do quarto se abriu suavemente e sem emitir qualquer ruído. Um vulto pulou por cima do batente e entrou no quarto, pousando em uma postura curvada no chão sujo do cômodo. Silenciosamente a criatura se levantou e começou a se aproximar da cama. Escalando como um gato grande e sorrateiro, o monstro subiu e sentou suavemente em cima da barriga do rapaz.
O vento frio da noite invadiu o quarto, juntando-se ao vento raso do ventilador, e o jovem começou a sufocar com o peso que pressionava seu corpo. Ao abrir os olhos, se deparou com a aparição. Uma máscara de pânico tomou a face do jovem e ele tardiamente compreendeu que não conseguia se mover ou gritar. Sua respiração acelerou conforme tentava fazer força para se mexer, mas nada dava certo. Abriu a boca, mas apenas ar saiu, como se ele fosse asmático.
O desespero assomou seu coração quando teve uma percepção: mesmo que pudesse pedir por ajuda, quem ouviria seu chamado? Quem o ajudaria? Estava sozinho naquela cidade estranha e amaldiçoada.
O ser, que até então não tinha olhado diretamente nos olhos do rapaz, finalmente virou sua cabeça, passando a encará-lo intensamente.
A criatura tinha olhos brancos e leitosos, como se fosse cega, mas o rapaz sabia que ela podia vê-lo e que se satisfazia naquele mesmo instante com o sabor de seu desespero. O rosto parecia o de uma mulher velha e era levemente azulado. O corpo dela era magro e esquálido. Seus anormalmente longos e selvagens cabelos negros eram feitos de sombras e pesadelos e escorriam de sua cabeça para cobrir o corpo do rapaz como um lençol vivo.
Ele tentou se mover mais uma vez e, em resposta, a assombrosa aparição se inclinou mais, colocando seu rosto morto o mais próximo possível do rosto do pobre rapaz. As longas mechas de seu cabelo começaram a flutuar como serpentes farejando uma presa, enroscando-se no pescoço, apertando pouco a pouco como a corda de uma forca. O jovem ofegava, o medo gelado correndo em suas veias, os pulmões lutando por ar. A criatura abriu sua boca cheia de dentes cinzentos e deu uma longa inspiração, como se estivesse aspirando a vitalidade do jovem.
O coração batia descontroladamente, sem entender o que estava acontecendo. Suas tentativas de se mover foram ficando mais intensas. Invocou cada grama de força para tentar erguer os braços, mas tudo o que conseguiu foram breves espasmos. Gemidos saíram por entre seus dentes em mais uma tentativa vã e desesperada de reagir, chamar ajuda, alguma coisa!
Subitamente a criatura parou, encarou longamente o humano abaixo de suas garras e soprou o ar entre os dentes cinzentos, fazendo som de "shh". Perplexo e ainda mais confuso, o jovem não soube como reagir. Satisfeita, a criatura recuou até sua posição original, mantendo ainda o cabelo enrolado no pescoço da pobre vítima.
As outras mechas vivas de cabelo flutuaram ao redor do rosto dele, cutucando seus olhos e passando por sua bochecha como facas. A pele ardia, pulsante no lugar do aperto, e lágrimas, junto à falta de oxigênio, embaçavam cada vez mais sua visão. Desesperadamente ele tentava puxar o ar, cada vez mais sedento, cada vez mais agonizante. Sua garganta doía. Seu coração parecia prestes a explodir, acelerado. A mente dissociava nas bordas da inconsciência completa, crente de que seria ali, naquela lugar novo, distante de todos que conhecia, que a Morte viria para levá-lo.
Em algum momento daqueles cinco minutos, ele apagou.
Quando acordou, já era manhã e o sol incidia diretamente sobre a cama no ápice do calor das 8 da manhã.
Ergueu seu corpo lentamente, sentindo dor em toda parte. Era a personificação do cansaço, com vestígios do pavor que sentira na noite anterior. Andou por todo o quarto, atônito, esperando que a aparição retornasse de assalto. Felizmente estava sozinho. Assustado, mas começando a se convencer de que tinha sido tudo um pesadelo, ele foi até o banheiro para lavar o rosto, escovar os dentes, talvez afastar a exaustão...
No entanto, ao olhar para o espelho, travou, atônito. Marcas vermelhas estavam em seu pescoço no lugar onde o cabelo havia se enrolado.
Aquilo tudo tinha sido real.
E agora retornamos para o ponto onde começamos, o ponto clássico de todo relato que chega até mim.
Essa experiência o traumatizou. Tinha ataques de pânico toda noite, temendo que a Pisadeira retornasse, o que acabava apenas alimentando-a com seu desespero. Procurou inúmeros métodos para afastá-la, mas nunca acertava e toda noite ela vinha, uma companhia macabra, inevitável e indesejável. Uma vez atraída, ela só sumiria por vontade própria ou por um ritual específico, mas o rapaz nunca descobriu o que deveria fazer.
Dessa forma, o medo e o estresse constantes fizeram com que se tornasse cada vez mais timorato e frágil de saúde até, por fim, em um infarto súbito, morrer sozinho e assustado dentro de casa, sem conseguir fugir de seu medo ou da cidade.
Nossa.
Eu não vou julgar. Já recebi relatos mais... Drásticos. Com seres sobrenaturais, você nunca sabe como a mínima coisa pode criar uma bola de neve que resulta em uma morte terrível ou em destinos piores que esse.
Sim, há destinos piores. E geralmente são resultados de coisas extremamente triviais que levam a um final ruim se você está no lugar errado, na hora errada.
Pode descansar em paz agora, jovem da história. Recebi suas memórias, não precisa mais temer a Pisadeira.
A todos que estão lendo isso, recomendo não se empanturrar antes de dormir. Vocês provavelmente não vivem em Serra Baixa, mas nunca se sabe quando surgirá uma aparição...
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