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Fatalidade

Ah, nada como ouvir a risada de uma criança... É tão fofo.

A menos que você esteja morando só e essa risada tenha ecoado às 3 da manhã.

No seu quarto.

Vindo da escuridão.

E é por isso, amigos, que eu estou dormindo na sala agora. Já estou pesquisando sobre a quitinete mais próxima.

Eu não sou covarde. Sério. Ter essa "profissão" me fez perder o medo de muitas coisas. Mas crianças fantasma? Elas me dão medo. Muito medo. E se essa conseguiu passar por todas as barreiras místicas e objetos sagrados que eu coloquei em casa, então é algo para eu me preocupar.

Acho que, de todas as assombrações que já encontrei, as que se parecem com crianças são realmente mais perturbadoras. Ou são trágicas, como o Negrinho do Pastoreio, ou são diabólicas, como o Romãozinho. Ah, esse moleque... Ele já fez coisas que eu acho que deixaria até o capeta com medo. Falo sério. Tenho trauma até hoje desde que vi um relato de uma vítima dele.

Falando em relatos... Parece que a cidade ficou mais calma. Nenhum relato chegou até agora. Até que enfim uma folga.




!

... Eu e minha boca grande.

É como diz o ditado: "Nada é tão ruim que não possa piorar". Parece então que foi o arrepio que me acordou às 3 da manhã, não o calafrio normal de quando tem assombração por perto. Como eu sei? Bem, estou sentindo o aperto nas entranhas de quando eu demoro para relatar.

Ugh! Ok, ok, eu já estou com o celular na mão mesmo, então vamos ao trabalho. É uma pena só que terei que transcrever tudo para o papel depois.

Semicerrando os olhos e ficando de pé no meio da sala, eu me concentro e começo a ver o ar tremular. Estranhamente nada muda no ambiente além da repentina clareza da luz do dia, que invade minha casa por todas as janelas. Surge a silhueta de uma mulher rechonchuda de meia idade, mas a imagem dela não é muito clara, como se estivesse borrada e cinzenta. Ela parece apressada. Usa um longo vestido de malha decorada e carrega uma imensa pilha de roupas dobradas que bloqueiam sua visão, de modo que só nota tarde demais os brinquedos espalhados no chão. A mulher escorrega e cai. Depois, claramente com dor, ela se levanta enraivecida e grita "ANA JÚLIA!".

Uma garotinha de talvez uns 10 anos de idade aparece, tensa. Assim que a viu, a mulher dá um esporro sobre como a menina deixava os brinquedos largados por aí sem cuidado nenhum, como nunca obedecia quando a mãe mandava que ela os guardasse e disse dramaticamente que podia ter morrido com aquele escorregão. Por fim, declarou que a garota não ia mais para a casa da Letícia porque estava de castigo. Antes de ir embora com a pilha amassada de roupas, a mulher ainda mandou a garota arrumar os brinquedos.

A menina ficou com o rosto vermelho e fez bico, cruzando os braços.

Estranho. Senti um calafrio como se fosse um arrepio. Um segundo arrepio.

A garotinha para e se vira para mim... como se conseguisse me ver... ah, droga, ela pode me ver, não é? Ela deve ser a criança fantasma que me fez ir dormir na sala. Droga. Esqueci meu crucifixo na cozinha junto com o pacote de sal grosso. Eu devia ter mais kits anti-assombração espalhados pela casa. Acho que tenho água benta em algum lugar da sala... se bem que isso é para vampiros. Estou divagando demais.

A garota ri, como se estivesse lendo meus pensamentos (ou o texto que estou escrevendo), e desvanece no ar como fumaça. O ar tremula e agora todo um ambiente novo está se formando...como se só agora a visão tivesse começado. Então aquilo tudo foi só uma assombração normal e eu me dei ao trabalho de...

Aagh! Tudo bem, tudo bem! Estou relatando!

A porta da minha sala se escancara subitamente, fazendo com que eu pule de susto. Lá fora, o ar parece tremular... como se outra visão estivesse acontecendo em paralelo. Ah, que maravilha, vou morrer de dor de cabeça amanhã. Na última vez em que eu mergulhei nas memórias de duas almas ao mesmo tempo, tive que faltar dois dias no curso. Ok, continuando. Para ter melhor visão das coisas acontecendo, decido ficar no batente da minha porta, de onde posso observar ambas as visões.

Dentro da sala, à minha direita, ironicamente a visão mostra um cenário de fora da casa: a rua que desce a ladeira e termina, se eu não me engano, numa igreja e no cemitério mais antigo da cidade. Ali, a garotinha está descendo com sua mochila de pano surrada e sua boneca Susie. Está emburrada e com a cara molhada de choro. Sua mente ecoava um "já que ninguém me ama, eu vou embora pra casa da Letícia". A típica birra de criança. Tento observar mais o ambiente ao redor dela, mas tudo está opaco e minha cabeça dói pelo esforço. Acho que minha visão vai ficar limitada mesmo.

A menininha marchava com firmeza, seguindo o rastro de sua memória das vezes em que a mãe a levara para a casa da Letícia. Ela sabia o caminho decorado e parecia determinada em sua fuga revoltosa... até não conseguir mais ver sua casa quando se virou. De repente, seu senso de direção pareceu sumir. O mundo parecia muito grande e ela, muito pequena. Uma ponta de medo espetou o balão de sua coragem. A ladeira se erguia sobre ela, imponente, quase como se dissesse "esquece isso, garotinha, e volta pra casa". O sol brilha, deixando a tarde mais quente. Devia ser umas 2 da tarde nessa visão. A rua está vazia. Numa árvore próxima, apenas a cara branca de uma coruja a observa.

Hesitante, a menina fica parada naquele ponto do caminho apertando sua boneca com firmeza à espera de mais daquela coragem belicosa que tinha feito com que saísse de fininho pelo quintal quando sua mãe não estava olhando minutos atrás. Atrás dela, um homem soturno se aproxima, subindo a rua, o olhar vidrado na criança.

Um vento frio passa por mim e sopra essa visão, que desvanece. Viro o rosto para a esquerda e olho para onde deveria estar a rua daqui de casa. Não consigo ver ao certo o cenário dessa visão, já que ele está muito embaçado - e a dor de cabeça piora se eu olhar demais -, mas parece ser o interior da minha casa. A mãe, um espectro bem mais nítido que o cenário a sua volta, passa por mim como um vento frio, "entrando" na casa da visão. Ela coloca o cesto vazio de lado, abre a sacola que carregava e chama pela filha uma vez, evidenciando que trazia um pacote de bolacha. Nenhuma resposta. Revirando os olhos para a birra da filha, ela vai até a cozinha, deixa o pacote sobre a mesa e começa a lavar a louça suja. Alguma hora Ana Júlia apareceria.

Minutos se passam e o silêncio permanece.

Estranhando a ausência de sons, a mulher sai da cozinha e vai até o quarto da menina. Nada. Com mau presságio, ela procura a filha no banheiro, no seu próprio quarto e na despensa. Nenhum sinal da menina. Vai ao quintal, chamando por Ana Júlia várias vezes. Nenhuma resposta. Com uma inquietação crescente no peito, a mulher começa a percorrer cada cômodo, resmungando cada vez mais alto que não estava gostando da brincadeira e que não era hora de esconde-esconde.

Abriu cada armário, olhou embaixo de cada cama, verificou cada canto onde a menina poderia ficar escondida - tudo isso enquanto apurava sua audição, esperando ouvir alguma risada da menina por estar brincando com a mãe ou um som de passos que delatasse a presença da filha.

Mas só havia silêncio.

Repetiu o nome da menina várias e várias vezes, tanto dentro de casa quanto no quintal. A cada chamado não respondido, sua voz se enche de mais preocupação. Seus olhos estão arregalados pelo nervosismo enquanto ela ruma para a porta onde eu estou e me atravessa como se fosse de ar. Na "rua" à minha direita, ela continua gritando o nome de sua filha... sem resposta. Um vizinho sai de casa para saber o que havia de errado e então o vento sopra, fazendo os espectros e a ilusão sumirem.

O cenário da ladeira substitui essa visão, preenchendo o ar do interior da minha sala. A menina está conversando com o homem de antes. Não consigo ouvir o que dizem, há uma mistura de sons sobrepondo o diálogo, como sons de choros, sirenes, um ruído úmido que não consegui identificar...

O sujeito é estranho. Sua pele e as escleras de seus olhos são amareladas, assim como seus dentes pontudos e salientes. Sua pele parece áspera, com uma textura irregular parecida com feltro. Ele usa um gorro marrom que enfatiza suas profundas olheiras e suas roupas cobrem quase seu corpo todo, deixando de fora apenas as mãos com luvas de pedreiro. Nas costas, carrega um saco de estopa aparentemente vazio e repleto de manchas amarronzadas e avermelhadas. Quase consigo sentir seu cheiro estranho de serragem e ferro. Gesticula as mãos com amplitude, sempre apontando para o fim da rua, e se inclina cada vez mais na direção da menina, tentando envolvê-la com seus ossudos braços.

A garota só se encolhe e recua, tentando se afastar do sujeito.

Ela ouve o grito da mãe, distante, e se vira no ímpeto de subir a ladeira sem sequer pensar na bronca que levaria. Só queria voltar para casa. Atrás dela, a expressão amigável do homem se fecha e ele coloca o saco de pano vazio no chão, abrindo-o.

Vejo uma movimentação de espectros pelo rabo de olho e isso me distrai. Ao me virar para a esquerda, vejo a rua da frente da minha casa do jeito como era, sem estar embaçada. Naquela visão, o sol está se pondo, refletindo sua luz alaranjada no rosto molhado da mãe da menina enquanto ela explica aos vizinhos sua situação. Ela tinha passado o dia todo procurando nas ruas ou em casa. Tinha até mesmo ido à casa da Letícia, mas não havia sinal de onde Ana Júlia pudesse estar. Era como se ela tivesse evaporado. Os vizinhos balançam a cabeça, murmuram. Nenhum deles parecia ter visto a menina sair ou andar na rua. Ninguém sabia o que tinha acontecido com ela. A mãe chora mais e uma vizinha idosa fica ao lado dela, tentando confortá-la. Uma mulher de azul, no orelhão, está em chamada com a polícia. Ela desliga e sua face, antes séria e contida, desmorona em lágrimas. Onde Ana Júlia está?!

Ouço um grito agudo e me viro para a ilusão de dentro da minha casa, onde ainda era dia. Ana Júlia está correndo, tentando subir a ladeira. Sua expressão é de puro pavor. Atrás dela, o homem de antes está correndo, mas ele não parecia mais tão humano. Seus olhos estão completamente escuros e com um brilho sobrenatural que ressoava seu único pensamento naquela hora: fome. Seu corpo se deforma, o peito se inflando a cada passo. Suas pernas e braços se alongam e se contorcem, dobrando como as pernas de uma aranha. Ele persegue a menina em uma velocidade insana, quadrúpede, feroz.

Num salto, seus longos braços alcançam a mochila da garotinha e ela cai para trás pela força. Ela se remexe, dividia entre tentar se desvencilhar das alças ou gritar por sua mãe, que estava a poucos metros dali! Porém, antes que pudesse fazer qualquer uma dessas coisas, o monstro ergueu uma pedra e sorriu, cruel, exibindo seus dentes animalescos.

Virei o rosto e apenas escutei o som da brutalidade. O baque surdo da pedra atingindo seu alvo em um só golpe ainda chegou aos meus ouvidos. Olho para onde estava a mãe. A noite já tinha caído por completo na visão da minha esquerda. A mulher tenta conversar com dois policiais que estavam ali, a viatura lançando luzes coloridas na noite cinzenta. Sua sirene ecoava continuamente. Os soluços da mulher interromperam sua fala várias vezes e ela se derramava em lágrimas. A mulher de azul que ligara para eles tenta confortar a mãe de Ana Júlia, mantendo-a em um abraço, mas seus braços trêmulos delatam o estado emocional que os olhos tentam esconder. Parece mais desolada que todos os outros vizinhos dali. A mãe chora em silêncio enquanto o policial explica o que podiam fazer naquela situação e como fariam as buscas. No entanto, ela sabe o óbvio: dificilmente achariam sua filha de volta. O mau pressentimento apertava seu peito com a incerteza.

Não saber o que houve é muito pior do que saber. A mente é uma máquina terrível e incansável quando quer imaginar cenários negativos.

Olho para o cenário da direita. Nele, o sol continua brilhando, sufocante, enquanto a criatura se dobra como uma aranha por cima do corpo infantil, sua pele sobrenatural mostrando-se como sendo estopa tal qual o saco que carregava.

De forma frágil e inconstante, a garotinha continua respirando. A boca do monstro, agora um oco escuro e sem dentes visíveis, se abre. Uma longa língua bífida sai de lá, lambendo o sangue que jorra superficialmente da cabeça da vítima. Ele ergue a cabeça, ouvindo os gritos da mãe aumentando conforme ela se aproxima da cena do crime. Com rapidez, enfiou a menina inconsciente dentro do saco como se ela fosse uma boneca de pano. Filetes de sangue ainda saíram pelo ferimento feito com a pedra, deixando uma pequena mancha na rua. O monstro, então, também entra dentro do saco, fecha a abertura e ele, a menina e o saco desaparecem no ar, como se nunca tivessem existido.

A mãe logo aparece descendo a ladeira, já rouca. Ela para um pouco, se apoiando em seus joelhos para pegar fôlego enquanto seus olhos começavam a lacrimejar no início do que seria um dia infernal. Logo vê a mulher de azul subindo a ladeira com um saco de roupas sujas e corre até ela, em prantos. Estava tão nervosa que não notou quando passou perto das manchas restantes do sangue da menina, talvez a única coisa que poderia delatar o que acontecera com a menina. A brisa que sopra na rua, de repente, se intensifica, sumindo primeiro com o sangue, depois com todo o cenário. Toda luz do mundo pareceu sumir, me deixando no breu absoluto, só.

Sei que fisicamente estou dentro da minha casa, mas está tudo escuro e indistinguível. A escuridão da visão não é afetada pela luz da tela do meu celular, me envolvendo de forma intensa, opressora. Tenho receio de me mover mesmo sabendo que, sendo tudo isso ilusão, não tem como algo realmente me tocar ou me ferir. Ouço um ruído úmido, como se alguém estivesse mexendo em um pano encharcado... ou em carne crua. Também há um leve tilintar de metal se chocando. Choro de criança ecoa de todos os lados, baixinho, abafado. Um calafrio percorre minha espinha quando sinto algo encostar em mim.

Isso é uma visão, não é real. Não é real. Não é real. Não é real...

Uma lâmpada vacilante se acende num canto ao meu lado, iluminando muito pouco, como se a escuridão fosse densa demais para ser perfurada por sua luz frágil. Havia ripas de madeira e pregos empilhados num canto junto a martelos. Pude ver pilhas de jornal também e baratas saíam das sombras, velozes. Resisti ao ímpeto de procurar meu sofá para subir nele e me lembrei, mais uma vez, que aquelas baratas não eram de verdade. Era só uma memória, eu não precisava ter medo...

É quando sinto minha mão encostar em algo pegajoso. Paraliso. Um ruído baixo ecoa dali, como um gemido de dor ou choro abafado. Reuno meus cacos de coragem e apalpo aquilo. Sinto cabelo… está úmido. A lâmpada começa a balançar, como se estivesse sendo soprada por um vendaval. Ela também pisca, como se estivesse perdendo a energia. Vultos indistinguíveis se movem na escuridão, parcialmente revelados vez ou outra pela pouca claridade vacilante.

Um som estranho e úmido começa a ecoar ao meu lado e os pelos do meu braço se eriçam, como um sinal de perigo. Hesitante, tento usar a luz do meu celular para ver fora do alcance da lâmpada e entender o que estava fazendo o som "molhado" que eu estava ouvindo, porém, é claro, é o mesmo que nada: a escuridão era muito densa e, claro, tudo isso era uma memória. Torço para tudo acabar logo.

Ao ouvir o choro baixo aumentar um pouco, me abaixo até estar no nível da fonte desse som. Sinto meus joelhos tocarem algo molhado, uma poça de um líquido viscoso, e percebo com as mãos uma estrutura áspera e dura, como uma mesa de madeira. De repente, a luz da lâmpada parece se estabilizar mais. Consigo enfim ver outros recortes embaçados do ambiente, como mesas, material cirúrgico cheio de sangue e… crianças amarradas. Seus rostos sujos estão parcialmente tampados por trapos de estopa que tampam suas bocas. Há meninos e meninas, nenhum com mais de dez anos. Todos olham para mim com absoluto pavor.

Não. Não olham para mim, logo percebo. Olham para algo atrás de mim.

A lâmpada para por completo e foca. Lentamente me viro. Ao meu lado, eu finalmente vejo a fonte do som gorgolejante e úmido que ocupava o ambiente até agora.

O monstro estava ali.

Uma criatura gigante com a pele de trapo. As órbitas de seus olhos são totalmente vazias, como buracos negros. Seus braços saem do tecido em carne "viva" numa coloração escura de cadáver. Os músculos pulsantes estão à mostra em meio a fiapos e costuras soltas no tecido aberto.

Ele está curvado ao meu lado por cima de… Ana Júlia. A menina jaz sobre a mesa, imóvel, paralisada pelo pânico e pela desorientação que o golpe de mais cedo lhe causara. Seu sangue desce pela mesa em profusão, formando uma poça no chão de carpete, o fluido vermelho pintando até a pilha de folhas de jornal empilhadas. Suas pálpebras tremem em seus últimos esforços para manter os olhos abertos numa expressão de absoluto pavor.

Em sua frente, a grotesca cena do monstro com as mãos dentro de sua barriga aberta, o interior rubro exposto. Um sorriso animalesco se rasga na face monstruosa e os olhos completamente pretos dele parecem faiscar enquanto ele retira enfim as mãos de pano de dentro do abdômen da menina.

Com o fígado escuro dela em mãos, a criatura olha nos amedrontados olhos dela com suas órbitas vazias e então estremece. De sua barriga de pano, surge um rasgo vertical que vai crescendo, crescendo, crescendo… Até virar uma boca. Seus dentes afiados e amarelos se projetam do rasgo e logo ficam vermelhos quando recebem o órgão da menina, o triturando com voracidade. Em consonância, a boca falsa da cabeça se entorta, formando um perturbador sorriso de deleite.

Por fim, rendida a esse último choque, a garotinha tomba a cabeça na mesa, fechando os olhos e mergulhando na inconsciência derradeira.

A lâmpada vacilante se apaga, me deixando no escuro completo novamente.

Dessa vez, porém, não há mais som ambiente. Tudo está inquietantemente silencioso. De alguma forma, consigo sentir a movimentação da criatura, sua presença insalubre, o som molhado de seus passos na poça de sangue enquanto vem na minha direção. Confesso que caminhei pela sala, procurando fugir do ser que eu não conseguia mais ver, procurando, em vão, localizá-lo com a luz da tela do meu celular. É em vão, mas não posso evitar. Viro em todas as direções até esbarrar no meu sofá. Paro, em pânico, tentando não fazer barulho. De repente, sinto um bafo quente e metálico em meu rosto.

Tem cheiro de sangue.

Quase pude sentir minha alma saindo do corpo nessa hora. O cheiro ficou no ar por alguns segundos antes de se dissipar com a brisa.

A visão do interior da casa enfim se dissolveu e pude ver minha diminuta sala, com seu sofá e a televisão desligada. Tremo de frio, virando-me para a porta aberta, de onde vinha um burburinho. É o espectro da mãe, entrando na casa aos prantos. A mulher de azul está com ela em um abraço apertado e constante. Ela diz que iriam encontrar a garota e que ficaria tudo bem. No fundo, ambas sabem que não era verdade. A porta se fecha, escurecendo tudo e elas desaparecem.

Lentamente a sala se ilumina com a luz diáfana do sol nascendo na visão do dia seguinte. A mãe está na rede, dentro de seu quarto, dormindo um sono inquieto. De repente, ocorrem batidas na porta. A mulher de azul, que estava na cozinha, decide ir atender antes que a outra mulher acordasse. Segurando seu chá de camomila, ela abre a porta. Confusa, não encontra viva alma do lado de fora.

Antes de fechar a porta, porém, nota que havia algo no chão.

Horas depois, a mãe acorda com o barulho na sala. Eram sons de conversas feitas com o mesmo tom grave e funesto que ocorre nas casas onde se realizam algum funeral. Sussurros sutis discutem sobre um pacote na porta. Sentindo um mau agouro ao ouvir um chilrear distante, a mulher desce da rede e vai para a sala. Um pequeno aglomerado de vizinhos próximos está ali, aglutinado ao redor de alguém. A mulher de azul chora intensamente, sentada em uma cadeira enquanto alguém oferecia um copo de água com açúcar para ela. Ela treme ainda mais do que na noite anterior.

Confusa, a mãe se aproxima e só então vê um pedaço de uma grande e comprida caixa de madeira ocultada pelos corpos das pessoas na sala. Uma das vizinhas se coloca em sua frente, com uma expressão grave, em um pedido silencioso para que não fosse olhar.

Com um aperto no peito que a faz começar a lacrimejar, a mãe segue mesmo assim.

Ela se abaixa e abre o pacote.

Interrompe sua ação de levantar a tampa, estagnada pela perplexidade.

Por fim, cai para trás, em choque.

Enrolada em folhas de jornal como um bebê, o cadáver da filha jaz ali. Lá dentro, também está um intocado e grosso maço de notas de 100 reais. Um bilhete com garranchos dizia apenas "Para o funeral".

Não demora para que a polícia aparecesse.

Mas, em um lugar como Serra Baixa, não é como se fosse de grande ajuda. Nunca descobririam o assassino. A mãe, em choque, teve que ser levada para o hospital. Ela nunca se recuperou da perda. Mudou de casa, indo morar com a mulher de azul e… ai! Está difícil ver o que aconteceu além desse ponto. Minha cabeça parece que vai implodir.

Todas as visões desaparecem.

A garota fantasma, triste, está me encarando fixamente na porta do quarto - o antigo quarto de sua mãe. Eu não entendo o que ela quer. Depois de todos esses anos, por que só agora ela decidiu assombrar a casa? O que aconteceu? Sei que, se eu for além do meu limite, vou acabar passando o dia todo com uma baita dor de cabeça, mas eu preciso saber o que ela quer para libertá-la desse mundo. Esse é meu enfadonho trabalho, afinal.

Inspiro fundo e vou até a garotinha. Eu só tinha feito o que farei agora duas vezes no passado por motivos… pessoais. Talvez funcionasse agora também, especialmente porque eu só queria ver o rosto nítido da mãe dela e não uma memória completa.

Estiquei minha mão na direção da fantasma esperando que ela entendesse que precisava tocá-la. A menina entendeu e senti seu toque frio e ausente de vida. Inspirei profundamente, usando toda a força que me restava para achar uma única memória dela onde a mãe estivesse com o rosto completamente nítido. Isso foi difícil. Não só porque eu me exauri acompanhando duas visões ao mesmo tempo antes, como também porque as memórias dos fantasmas costumam ser mais sobre os arrependimentos que os mantêm presos a esse mundo. Senti pena dela. Felizmente achei o que eu procurava. Era hora de dar uma de Inception.

Com toda a força mental que me restava, forcei conexão com a mãe, me concentrando em seu relato pela metade. Uma dor agoniante explodiu em minha testa, mas eu continuei mesmo assim. Com o que me restava de energia, vi como ela acabou: após ir morar com a mulher de azul, passou anos sofrendo a perda trágica da filha. Por fim, teve um derrame, falecendo no hospital de Serra Baixa… ontem.

Caí no chão, sem forças para continuar digitando, então essa parte foi apenas o que consegui me lembrar do fim daquela noite.

Assim que os flashes de memória sumiram, eu pude ver um grande clarão aparecendo na frente da porta da sala. De dentro do meu quarto, vi a silhueta da mãe saindo, translúcida. Ela olha para os lados, então vê o fantasma da filha e vai correndo abraçá-la. Lembro de, em meio à dor angustiante de cabeça, me perguntar quantos fantasmas ainda sairiam daquele quarto. A menininha apontou pra mim e vi a mãe se inclinar pra mim e gesticular um "muito obrigado". Digo gesticular porque a dor era tanta que eu mal conseguia ouvir as coisas. Ela deu a mão para a menina e, juntas, elas caminharam na direção do clarão da porta, desaparecendo e me deixando no escuro. De novo.

Dessa vez, pelo menos, eu estava só de verdade. Ou pelo menos foi o que eu esperava quando fechei os olhos, desmaiando. Apesar da dor, porém, eu senti satisfação. Acho que nunca antes eu tinha visto de fato algum bem que eu pudesse estar fazendo ao simplesmente escrever os relatos que vinham até mim do Além. Aquele obrigado foi suficiente para eu me sentir em paz, mesmo estando com uma dor de cabeça insuportável.

Consegui libertar duas almas numa digitada só. Acho que foi um grande feito, já que consegui passar o dia todo sem que o arrepio começasse a apertar minhas entranhas para que eu fosse transcrever tudo que digitei no papel. Da última vez, mesmo morrendo de gripe e com febre, o arrepio não me deu folga.

Enfim...

Depois dessa, eu definitivamente vou me mudar de casa.

De preferência, vou para uma sem o histórico de que uma tragédia aconteceu com a família dos donos.










Ah, o que eu estou falando? É Serra Baixa! Mais fácil achar um roteador de internet do que um lugar onde alguém não morreu.

Mesmo assim, eu vou embora. Dois fantasmas saíram do quarto onde eu dormia. Não vou mais conseguir dormir lá.

Vai que sai um terceiro.

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