Desvario
Depois de tantos anos nesse emprego amaldiçoado, só agora eu estou questionando a minha sanidade.
Eu sei, eu sei, coisas insanas definem uma terça-feira qualquer da minha semana. Mas mesmo minha vida sobrenatural tem alguma lógica. O arrepio tem seu mecanismo, sua forma normal de funcionar e sua forma anormal quando eu extrapolo o uso dos meus dons. Não é só um monte de visões de eventos aparecendo do nada ou de pessoas que brotam das paredes aleatoriamente. Tem sempre uma ordem.
Só que agora as coisas estão estranhas.
Se você, caro leitor do blog, viu minha última postagem, eu falei sobre a última visão que eu tive e sobre como ela foi... peculiar. As visões pareciam time lapse e... ah, só vai ver a última postagem logo!
Eu achei que tudo voltaria ao normal depois de um tempo, como aconteceu na vez antes dessa, anos atrás. Era só eu descansar e tudo ficaria nos eixos. Simples. Ou não, já que, desde que a visão se encerrou, eu sinto esse constante sentimento de ansiedade, de que algo vai dar errado. É um aperto, um sufoco na garganta e ao mesmo tempo uma energia intensa percorrendo meu corpo como uma corrente elétrica! Sim, eletricidade. Um letreiro imenso e brilhante dizendo "Algo vai dar errado" e eu simplesmente não sei o que vai acontecer!
Também tem essa dor de barriga e esse mal estar constante que poderiam tanto ser uma expressão da ansiedade quanto os efeitos da insolação que eu peguei depois de passar o dia no sol escaldante contra a minha vontade.
O problema é que ansiedade não faz você ver nitidamente uma criatura bizarra tentando puxar seu pé quando você desliga a luz do quarto, obrigando você a correr para cima da cama e se cobrir com os lençóis. Quer dizer, eu nem sei se eu realmente vi isso. A essa altura, não sei mais o que é visão, o que é real, o que é só viagem da minha cabeça...
Enfim, esse foi só um desabafo mesmo. Uma explicação caso eu passe mais de uma semana sem postar de novo.
Pensando bem, talvez essas minhas alucinações tenham sido um tipo de "trailer" da visão que eu tive ontem. Talvez o arrepio tenha sido leve e eu não reparei que uma visão já tinha começado... há... uma... semana...? Pode ser.
Agradeço por ter lido até aqui e eu deixo com você a transcrição do que eu escrevi na visão de ontem.
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Depois de uns 5 minutos, o lugar da visão surge ao meu redor. Essa é a visão com o começo mais lento que eu já tive.
O ar tremulante formando o cenário demorou tanto para se organizar em uma "imagem 4D" que eu tive tempo de ir até o quarto, pegar o material de escrever, me preparar psicologicamente para alguma morte trágica e contar o número de estrelas nesse céu limpo e ilusório. No entanto, assim que o mundo terminou de se criar ao meu redor, a imagem estática passa a ter vida e eu tenho que correr para escrever.
Eu estou em alguma área periférica de Serra Baixa. A rua é de terra, o lixo está amontoado perto de um contêiner enferrujado e os únicos seres vivos aqui são um cachorro comendo restos e gatos brigando. Ah, sim, e também tem essa garota empurrando uma bicicleta. Eu chuto que ela tem uns treze anos. Calça jeans, blusa de uniforme de colégio público... vindo da escola talvez? Mas está tão tarde...
Ao seu redor, vejo trechos de suas memórias. Pelo visto, ela disse ao pai que ia estar estudando na escola, tomou um caminho mais longo para visitar a casa de alguém e perdeu o horário de voltar para casa - o que significaria um baita sermão. Sua face se contrai pela previsão do que iria acontecer.
Claro, a bronca do pai não deveria ser o único motivo de ela estar apreensiva. Ela é uma garota de treze anos andando sozinha, à noite, numa rua com iluminação precária. Isso já é coisa suficiente para causar medo no momento. Talvez ela ficasse ainda mais assustada se conseguisse ver a criatura oculta nas sombras que está em seu encalço.
Será que é o Corpo Seco de novo?!
Não, não, esse ser é diferente. É uma aura de maldade mais... embaçada? Acho que a vítima da vez só sentiu a presença do monstro, não o viu de fato.
Os passos do tênis desgastado ecoam em uníssono com os rangidos da bicicleta velha. Os gatos briguentos e os cães famintos fogem ao sentirem no ar o cheiro de fuligem que o monstro emite. Depois de um tempo, acho que a própria garota começou a sentir o odor de queimado. Talvez esteja sentindo também uma comichão na nuca.
Sabe, humanos têm uma espécie de sensor para quando estão sendo observados. É quase um arrepio, eu diria.
Os indistintos olhos em chamas continuam encarando.
A esse ponto, conforme a garota avança pela rua, seu medo vai ficando cada vez mais palpável, quase sólido. Ela transpira muito, ofega bastante e seus olhos estão arregalados, movendo-se para todos os lados como se estivessem enxergando algo que eu não consigo ver. Seu coração está acelerado, mas não pelo esforço de empurrar seu meio de transporte. Ela sabe que está em perigo. Como um velho instinto de sobrevivência, seu corpo está reagindo. Gradualmente sua caminhada fica apressada até se tornar uma corrida, e a criatura acompanha a presa com igual velocidade, mas ainda escondida.
Por fim, a garota percebe que a sensação de perigo não sumiu e sobe na bicicleta, disparando pelo resto do caminho até sua casa. A criatura para diante da fuga desesperada. Seus olhos amarelos faiscantes observam a casa da presa com ambição, eu sinto. A energia de sua ânsia é tão forte que parece queimar minha pele. Não é exatamente fome, mas excitação por estar brincando com a comida.
Com urgência, a garota tenta várias vezes enfiar a chave no portão de casa. Seus dedos tremem, fazendo o objeto deslizar várias vezes, errando o buraco como se ele estivesse se movendo, como se não conseguisse enxergá-lo de fato. Pelo canto de olho, ela vê a rua de onde veio. Em seus olhos, verdadeiro pavor. Percebo que tem algo faltando, então encosto minha mão na cabeça da garota e me concentro. Como esperado, minha mão atravessa seus cabelos ondulados ilusórios, e sinto uma pontada na cabeça. Pisco, ouvindo o som distante de uma cantiga infantil cantada por uma voz áspera.
Sabe, visão periférica é um negócio interessante. Mesmo com o olhar fixado na chave finalmente entrando no portão (que só agora parou de ondular), a guria ainda é capaz de ver, à distância, o monstro. Seja lá o quê é esse bicho, é tão grande quanto um carro, se desdobrando como um contorcionista de modo a ficar tão alto quanto uma casa.
Seus olhos amarelos flamejantes observam a presa, única parte do corpo do monstro que não está embaçada na visão. As chamas amarelas e sobrenaturais parecem queimar ainda mais quando percebem o medo da presa aumentar.
De repente, numa pequena rajada de fogo, suas narinas também ficam expostas, pontos luminosos se destacando como os olhos incandescentes. O corpo, porém, ainda é um borrão preto alongado, já que a garota permanece paralisada diante do portão, assustada demais para entrar logo em casa ou mesmo para virar o rosto e encarar a criatura cara a cara de vez. Tudo o que ela é capaz de perceber é a silhueta meio indistinguível.
Agora que está saindo das sombras, o monstro caminha de um jeito estranho, dando pulinhos e cambalhotas, eu acho, enquanto a cantiga distorcida que ecoa até agora fica cada vez mais alta, apesar de sua letra ainda ser incompreensível. A voz da criatura, porém, fica cada vez mais nítida, tão rouca e grossa que parece ressoar dentro dos meus ossos mesmo tudo isso sendo apenas uma memória.
De repente, como focos de fogo, pares de olhos emergem nas paredes com um som úmido grotesco.
São dois, três, cinco! Dezenas de pares! Todos brotando dos muros, dos portões, das árvores, das paredes das casas em padrões que atacariam a tripofobia de qualquer pessoa... como uma infecção perniciosa corrompendo a realidade, desintegrando as paredes e transformando-as em colagens monstruosas de corpos distorcidos. Por fim, a peste alcança o asfalto e, no chão aos pés da garota, abre-se um bizarro olho humano com íris amarela bem detalhada. Ele gira no buraco do chão lentamente até encarar a menina.
Atrás dela, formando uma trilha surrealista de pesadelos, todos os outros globos oculares olham para a garota ao mesmo tempo enquanto o ser se aproxima cada vez mais, saltitante - cada salto seu ecoando como um estrondo, como se ele fosse ficando maior conforme se aproximava.
Com o coração acelerado e a mente em pane diante da insanidade que a cercava, a garota fecha os olhos. Juntando seus cacos de coragem, ela volta a abri-los, virando a cabeça para encarar a cacofonia de globos oculares e...
Nada.
Era a mesma rua de terra com iluminação precária de sempre.
As paredes, os muros, as árvores, tudo continuava como sempre. Balançou a cabeça, questionando sua sanidade e seus instintos. Sem demorar mais, abriu o portão, passou a bicicleta por ele e entrou em casa. Deu ainda uma última olhada para a rua vazia e fechou a entrada.
A visão acompanha seu movimento, como geralmente funciona, então, ao invés de uma rua escura, eu agora estou dentro de uma casa escura que se iluminou conforme a garota acendia as luzes. Por coincidência, meu sofá está no mesmo lugar que o sofá da casa da garota, então eu me sento.
A guria entra ainda mais em casa, desconfiada, encarando os cômodos silenciosos. Para sua sorte (ou talvez azar), o pai não tinha chegado também.
Suspira, aliviada. O alívio não dura muito. Um calafrio passa por seu corpo e ela observa, através da grande janela da sala, a noite lá fora. Estava escura e silenciosa... ou nem tão silenciosa, pois, prestando atenção, ainda era possível ouvir, de forma distorcida e lenta, a cantiga infantil assustadora soando no vento. Um trovão ecoa à distância e riscos luminosos amarelos de um relâmpago pintam o céu. Iria chover.
Cansada e ainda tensa, a garota decide ocupar sua mente com outras coisas após sua aparente e incompreensível alucinação. Precisava de paz. Felizmente não virou o rosto para trás nesse momento, senão teria visto, pela janela da sala, o vulto da criatura pulando por cima do muro.
Jogou sua mochila sobre a cama, tirou a calça jeans, vestiu um short folgado de bolinhas e tirou a blusa de uniforme, revelando por baixo uma blusa azul. Parece que outro motivo de seu atraso foi o fato de ter até banhado na casa de sua amiga.
Sem observar diretamente a garota, decidi olhar o ambiente da casa.
A sala é bem simples, com um sofá, uma televisão meio antiga e espaçosa, um tapete trançado por cima do chão de cimento e as paredes não têm reboco. Alguns retratos da família e quadros de "casa de vó" com paisagens do campo e retratos de pessoas velhas (talvez santos?) preenchem as paredes...
Quase tive um infarto ao ver os olhos amarelos através janela da sala.
E... eles estão... me olhando?
Eu preciso manter a calma. Eu não estou realmente aqui. Não tem como esse monstro estar me vendo de verdade... claro que o fato de os olhos estarem seguindo meus movimentos agora não colabora para eu acreditar nisso... ah, do que eu tenho medo? É só uma visão. Só uma visão. Não pode me machucar. Onde eu deixei meu sal grosso mesmo? Eu devia ter acendido um incenso quando dava tempo.
De repente, o cenário muda. Eu estou na cozinha.
A menina hesita antes de entrar no ambiente escuro em busca do interruptor. Caminha lentamente e em silêncio, como se não pretendesse acordar alguém ou chamar a atenção de algo na escuridão. A geladeira estala, fazendo a garota se assustar. Ela tenta se acalmar, já que "era só a geladeira", mas sei que também está ouvindo o ruído das paredes sendo arranhadas do lado de fora.
É um som sutil, quase oculto pela chuva forte. Mas está lá, como se garras afiadas estivessem raspando os tijolos. O som para momentaneamente e escuto um breve cantarolar vindo do beco que fica entre a parede da cozinha e o muro. O ruído diminui, como se estivesse indo embora pelo beco. Olho para a garota e ela está atenta também, suas narinas se expandindo e contraindo com a respiração forte e os olhos arregalados estavam fixos na parede que dava para o beco...
Plim!
Ela se sobressalta, assustada, com o som da goteira ao seu lado, desviando, enfim, o olhar do beco. Lá fora, a chuva parece piorar. Acelerada, se apressa na direção da parede em que sabia estar o interruptor. Ali, consigo ver a sombra de uma criatura com longos chifres, como se... ela estivesse atrás de mim...!
E eu não acredito em como eu fui trouxa. É CLARO que o monstro não está atrás de mim, caramba! ISSO É SÓ UMA VISÃO!
Ok, ok, eu preciso me acalmar haha...
Não sei se a cena deu um salto temporal, mas a cozinha já está com a luz acesa, a panela com o que sobrou da sopa do almoço está fervendo no fogão e a menina observa a comida com atenção. Ela aperta as mãos, inquieta. Vez ou outra dá olhadas rápidas para todos os lados. Seus pensamentos estão tomados pela imaginação de cenários do que seu pai irá dizer quando chegar. Será que ele sabia que ela tinha se atrasado? Será que ele estranhou que ela ainda não tinha chegado quando anoiteceu e decidiu sair para procurá-la? Será que ele teria ficado muito preocupado que algo tivesse acontecido com ela e a essa altura estava em pânico dando voltas no quarteirão do colégio tentando encontrá-la?
Aperta os dedos, ansiosa. Ele iria brigar tanto... ela tinha se esquecido de pedir para a direção ligar pra ele e avisá-lo sobre ela estar saindo com a amiga. Mesmo na casa da outra garota, poderia ter pedido para a mãe dela ligar para o pai. Foram tantas oportunidades de avisar que estava bem...
Morde os lábios, ainda mais nervosa.
Desligando o fogo, ela pega a panela fumegante de sopa e derrama em sua tigela, levando, então, o recipiente para a humilde mesa de jantar. Sentando-se, inspira profundamente, tentando aspirar o cheiro de seu jantar para se acalmar, mas estranhou não sentir o cheiro da comida. Mesmo assim, segue com a refeição, assopra a tigela por longos instantes para não queimar sua língua, junta o macarrão ao redor do garfo e o coloca na boca... o problema é que ele estava vazio. Confusa, ela olha para a mesa, piscando. Sua tigela também não estava lá, já que permanecia na pia, esperando ser preenchida. A menina recua, percebendo que a panela de sopa ainda estava no fogão, fervendo. Encabulada, levanta-se e apaga o fogo. Como tinha ficado tão distraída assim?
Usando todas as suas forças, ela segue com sua refeição e ignora o medo e todas as coisas estranhas. A trilha sonora ambiente era o som das várias goteiras espalhadas pela casa se chocando com as vasilhas de plástico que a garota colocara.
Lava a louça, tensa e ainda encafifada com sua distração. Isso a lembrava de uma história assustadora que sua tia costumava contar sobre um tipo de bicho-papão que ia atrás de crianças desobedientes que sumiam na rua e deixavam os pais preocupados. Engole em seco, mais nervosa ainda. Será que tudo o que tinha visto de bizarro até agora era o tal bicho-papão? Os olhos de fogo na rua eram mesmo reais?
Uma risada rouca ecoa no beco e a menina se assusta, de forma que a vasilha cheia de água com sabão voa em seu rosto, a encharcando. Desesperada com a perda parcial da visão, ela corre meio cambaleante para o banheiro. Não queria mais ficar na cozinha. Sabia que, o que quer que fosse o monstro, ele estava por perto, do outro lado da parede da cozinha.
No banheiro, joga água no rosto com afinco, tentando tirar o sabão, mas era como se mais sabão aparecesse, fazendo seus olhos arderem e sua visão ficar embaçada.
De repente, surgindo do ar, talvez de um ponto que a menina não estava olhando, baratas começam a aparecer pelo chão. Eram só cinco, mas foram suficientes para eu me recolher, com nojo, no meu sofá invisível. Estavam opacas assim como a criatura na rua, embaçadas como se estivessem por trás de um vidro sujo. Na janelinha do banheiro, pude ver os olhos amarelos passando por um segundo e a melodia volta a ecoar, distorcida.
As baratas, assim, começam a subir pelas pernas da menina e ela, parcialmente cega, tenta afastá-las, batendo as próprias pernas e andando pelo apertado espaço do banheiro. As patas ásperas continuavam escalando o corpo da garota, se enfiando no cabelo volumoso e entrando na boca dela, que estava aberta pelos gritos de desespero. A garota se mexe, bate, cospe e derruba algumas baratas, mas elas reagem mordendo suas pernas, seus pés e seu rosto, fazendo a garota chorar de dor enquanto tentava tirar uma barata insistente de sua testa. Ela pula e esperneia, até que escorrega no chão molhado e cai.
A cantiga do monstro ecoa mais forte na janela do banheiro, sua voz ilegível como um quadro negro sendo rabiscado por um giz seco ou um prato sendo arranhado por um garfo. Em debandada, as baratas embaçadas descem do corpo da garota. Saindo de seu cabelo, de suas orelhas e de suas pernas, correm para o ralo e somem no exato instante em que a menina consegue enfim tirar o sabão dos olhos e enxergar o ambiente.
Olha para todos os lados, ainda perplexa e aterrorizada. Nada. O som da torneira aberta derramando se misturava ao som da chuva forte do lado de fora. No ralo, era possível ver as antenas dos insetos balançando, em um complô silencioso, mas acho que isso foi só impressão minha. Chorando de medo e de dor pela queda, toda molhada de sabão e água, a menina custou a se levantar por estar olhando paranoicamente para as suas pernas e para o chão do banheiro. Ainda passou as mãos pelo cabelo, tentando encontrar alguma das baratas que ela sentiu lá minutos atrás. Mas não havia mais nada. E isso era incompreensível.
Era como se nunca tivessem estado lá.
Fechando a torneira, se levanta rapidamente e sai com ainda mais rapidez, procurando fugir das baratas invisíveis. Por sua cabeça, flutuou um pensamento imaginando como seria se tivessem sido aranhas no lugar das baratas, o que foi suficiente para ela se contorcer de horror e correr para seu quarto.
Ainda em choque, cheirou suas mãos, pernas e cabelo, tentando captar algum fedor de barata. Tremia, o que fez com que corresse para trocar sua blusa molhada. Tudo estava tão estranho. Ela sentiu as baratas subindo por sua pele, sentiu quando elas morderam sua pele e entraram em sua boca. Não tinha sido impressão. Então onde estavam elas? O que estava acontecendo?! Em pânico, ficou dando voltas dentro do cômodo, nervosa. Olha, receosa, para a janela fechada do quarto, que a chuva açoitava com força, como se fosse um temporal. O som das goteiras ecoava mais alto, o que é enervante, como uma sinfonia do caos.
Então a energia cai.
Apavorada em meio ao breu, a garota tem um pequeno ataque de pânico enquanto se percebe no meio da escuridão completa. Sai pela porta, hesitante, ouvindo a sinfonia bizarra das goteiras. Então, tentando não esbarrar nos móveis, corre a toda velocidade para o quarto do pai, tranca a porta e vai em busca de tudo que imaginava ser essencial nessa situação. Achou velas junto à pequena estátua de Ogum. Vasculhando as gavetas, achou o esconderijo dos maços de cigarro do pai e, é claro, o isqueiro e o cinzeiro dele. Tentando não tremer de nervosismo para juntar a chama e o fio da vela, conseguiu acendê-la e a fixou no meio do cinzeiro.
A chama pequena e bruxuleante do cilindro é um pontinho de luz frágil e reconfortante em meio ao breu completo.
Um trovão ribombeia lá fora e as goteiras agora parecem fluxos constantes de água caindo em cascata, como se verdadeiros buracos tivessem se aberto no teto. Não só isso, mas elas pareciam formar um som anormalmente organizado... a cantiga distorcida que a criatura cantava. Percebendo apenas que estava em risco, a garota pega o facão que o pai deixava escondido embaixo da cama e deixa ao seu lado no colchão. Não estaria indefesa.
Então, ela esperou. Talvez tivessem sido minutos, talvez horas... não tem como saber, já que a escuridão distorce a noção de tempo das pessoas.
A garota foi ficando cansada e desatenta, mas, paradoxalmente, paranoica e assustada também. Ouvia sons estranhos por toda parte... algo batendo nas janelas, portas rangendo e sendo abertas, passos e risadas... e tinha a cantiga. Era impossível entender a letra com o barulho assustador da tempestade lá fora, mas a melodia não parava, se repetindo continuamente, pouco a pouco se gravando na mente da menina, perturbando-a, mostrando que ela continuava em perigo e que a qualquer momento o monstro iria sair da sala e tentaria invadir o quarto.
Barulhos mais altos apareciam do nada, às vezes como se o monstro estivesse exatamente ao lado dela, às vezes como se ele estivesse em cima de sua cabeça. A luz fraca da vela não colaborava na visibilidade e, do ponto onde eu estou, vejo como as sombras formadas por esse ponto de luz formam no chão uma silhueta com grandes chifres. Dois olhos humanos de íris amarelas surgem na silhueta e olham... pra mim...?! Não, não, é só impressão.
A silhueta desliza como uma cobra e se enfia embaixo da cama da garota, seus olhos amarelos virando duas pequenas chamas flutuantes.
Em cima da cama, a menina assustada agora chora, implorando para a necessidade mais básica de um ser humano. Ela queria seu pai ali. Queria que ele voltasse logo para casa e afastasse o monstro, como ele sempre fazia quando ela era criancinha. Em meio a murmúrios, tentou se lembrar de alguma reza para afastar o medo ou o mal, mas não conseguiu. Estava muito cansada e, ao mesmo tempo, muito nervosa.
Então só permaneceu ali, parada, esperando.
Seu pai com certeza logo viria.
Sim. Com certeza viria. Ela só precisava esperar.
A não ser que...
Uma pequena voz em sua mente começou a se manifestar. Ao redor da garota, pude ver seus medos serem desenhados, cenários ruins que davam supostas repostas para por que o pai não tinha chegado ainda.
Talvez tenha acontecido um acidente.
A voz da imaginação mórbida prossegue.
Se ele realmente foi atrás de você, dá para imaginar o que aconteceu depois... aquela esquina da escola era um ímã de acidentes, em um dia chuvoso então... talvez a moto dele tenha derrapado em algum lugar e ele ficou muito ferido. Talvez ele tenha passado mal de preocupação e foi para o hospital.
Talvez o monstro já tenha o devorado antes de você chegar em casa.
Esses pensamentos tão terríveis fizeram a menina chorar de medo baixinho e eu não soube dizer se era o medo dela imaginando coisas ou se era o monstro agindo. De repente, ouve um baque forte na porta do quarto. Segura o cabo do facão com força, tentando afastar esses cenários horríveis de sua mente. Sem saber mais o que dizer, o que pensar ou o que rezar, começa a recitar promessas.
Prometeu que não iria mais sair sem avisar.
Bam. Bam.
Prometeu que não iria mentir sobre onde estava.
Bam. Bam!
Prometeu que não deixaria o celular descarregar de novo.
Bam!
Prometeu que seria obediente.
Aperta o cabo do facão, esperando a continuação dessa tentativa do monstro de arrombar a porta.
Mas o próximo baque nunca veio.
Confusa, ela aguça seus ouvidos, procurando ouvir o que acontecia do lado de fora. Através da madeira e dos tijolos que a rodeavam, o único som é o do fluxo incessante da água das goteiras que logo se chocavam com as tigelas cheias de água. Concentra sua audição, tentando captar o som da movimentação da criatura ou mesmo a cantiga que ela cantava.
Nada.
Nenhum sinal do monstro.
Não fazia sentido. Para onde ele tinha ido?!
Assustada, segura o cinzeiro, se concentrando na frágil segurança que a vela acesa dava. Quais as chances de a criatura ter ido embora por perceber que não conseguiria capturá-la?
Bam!
Com a volta dos baques, teve sua resposta. O som de batidas na madeira retorna com tudo.
Bam!!
Porém, como a garota percebeu, aterrorizada...
Bam!!!
... o som não vinha da porta.
BAM!!!
Vinha de debaixo da cama.
Em pânico, ela fica de pé e derruba um travesseiro no chão. Logo após ele alcançar o solo, uma garra enorme sai de debaixo da cama. Sua pele é cinzenta e solta fuligem. Finas veias incandescentes se destacam nela, indo até as unhas longas e afiadas. O monstro agarra o travesseiro e o puxa para o escuro. A outra garra, porém, começa a subir o colchão para agarrar a garota, que começa a entrar em pânico.
Ciente de que seria capturada se ficasse ali, ela pega o facão e dá um salto, aterrissando exatamente na frente da porta. Como esperado, a criatura estica seu braço para agarrar a perna da garota, mas, por sorte, ela é rápida o suficiente para erguer o facão e atingir o braço do monstro, que solta um urro grosso e distorcido enquanto, de seu pulso decepado, jorra um líquido negro que mancha todo o chão e a lâmina do facão. Sem esperar mais, a garota empurra a porta e sai do quarto, ainda sendo possível ver os dois braços cinzentos da criatura se contorcendo para que ela saia de debaixo da cama.
Com uma força tirada de não sei onde, a menina empurra o sofá pequeno da sala, derrubando as vasilhas de plástico nos arredores, que se chocaram com o chão, vazias. Mais rápido do que se espera, a garota consegue colocar o móvel na frente da porta para bloquear a passagem do monstro. Tomada pela adrenalina, corre para a porta da sala. Uma estranha ventania começa a soprar com força no ambiente, a cantiga da criatura soando terrivelmente alto nos ouvidos da menina, que larga o facão limpo no chão para tampar os ouvidos enquanto a voz rouca do monstro ressoa por todo o seu corpo.
O vento gira em alta velocidade, como se houvesse um tornado dentro da sala. O som da voz ilegível do monstro ecoando como se de cem alto-falantes fez a garota se sentir dentro de um enorme liquidificador que trituraria tudo, inclusive ela.
A criatura logo começa a avançar contra a porta do quarto, fazendo um baque muito alto, como se fosse destruir a barreira, e a garota começa a chorar. Se lembra da história de sua tia, de como esse monstro ia atrás das crianças desobedientes.
Sem saída, começa a gritar com todas as suas forças todas as promessas que era capaz de fazer. Prometeu que não iria mais sumir sem dar sinal, que não iria mais preocupar seu pai... prometeu que não seria mais desobediente!
Quando chega nessa parte, como um vídeo pausado, o vento, o monstro, a música, tudo para repentinamente. O silêncio reina, anormal, enquanto a chuva caia lá fora, forte.
Surpresa mas ainda desconfiada, a garota dá alguns passos na direção da porta do quarto. Coloca o ouvido lá e ouve com atenção, tentando captar algum ruído do monstro preso lá dentro...
Batidas na porta da sala fazem com que se sobressalte.
Dessa vez, porém, a voz que ecoa é a de um homem. Seu pai. Ele parece impaciente enquanto chama por Elen - provavelmente o nome da garota. Com a demora, foi ficando mais bravo, especialmente por ela tê-lo trancado fora de casa durante uma chuva torrencial. Enquanto ouvia as broncas dele, a garota se enche de alívio por ele finalmente ter chegado. Sem hesitar, ela gira a maçaneta e abre a porta, pronta para receber seu pai.
Foi nessa hora que se lembrou de três coisas:
1- Portas de quartos não abrem para fora.
2 - Seu pai tinha a chave de casa.
3 - A porta da sala não estava trancada.
Estática, com o sorriso de alívio ainda gravado no rosto, ela foi envolta pelas garras da criatura, que escancarou sua enorme boca e engoliu a menina num movimento só. A garganta comprida e dilatada do ser, como a barriga de uma cobra, se acendeu, em brasa. Curtas labaredas saíram pelos buracos de sua cabeça ossuda e os gritos de agonia da garota ecoaram na noite por apenas alguns segundos enquanto seu corpo era consumido inteiramente pelas chamas, sua carne sendo carbonizada em instantes com o fogo infernal que preenchia o monstro.
O jeito mais doloroso de morrer: queimada viva.
Nessa hora, enfim, como um frame pausado de um vídeo, eu consigo visualizar o monstro por completo e nitidamente, não as ilusões que ele tinha feito a garota ver até agora.
Sua cabeça era o crânio descarnado de uma cabra com um par de longos e pontiagudos chifres. Os olhos e as narinas soltavam fogo e fuligem preenchia o ar: era o pó do que restara da menina. Pelas brechas de seus dentes cinzentos, as chamas saíam, tão quentes que quase senti minha pele queimar. Sua garganta de fornalha era longa e contorcida como se fosse de pano, ligando sua cabeça demoníaca a um corpo vagamente humanoide coberto de olhos de fogo que olhavam para todos os lados. Seus braços eram semelhantes àqueles que saíram de debaixo da cama, mas eram menores e se dobravam em ângulos estranhos. Por fim, suas pernas eram peludas, escuras e terminavam em cascos de cabra, como afinal era a forma que a criatura assumia durante o dia.
Em cima do muro, com seu conhecido ar melancólico, estava uma coruja, obviamente a Matinta Pereira de sempre. Ela deu seu pio fúnebre e partiu pelo céu azul cobalto limpo e cheio de estrelas, de onde não tinha caído sequer uma única gota de água naquela noite.
De repente, o monstro virou seus olhos flamejantes na minha direção e, apesar de não ter lábios, pareceu sorrir, fuligem voando através dos espaços de seus dentes. Recuei um pouco quando escutei sua risada rouca, mas eu com certeza não estava com medo. Eu com certeza não estava com as pernas tão trêmulas que caí no sofá. E também não tateei a sala em pânico atrás do meu sal grosso, que eu não derramei quase todo ao meu redor na esperança de estar fazendo um círculo, mesmo que torto.
Lentamente, tão vagarosamente como seu começo, a visão foi se dissipando como fumaça, já que ela era exatamente isso: uma visão.
Eu sinto muito por você, garota, mas, como eu descobri no dia seguinte enquanto fazia uma pesquisa para me proteger desse troço, o que te matou provavelmente foi a Cabra Cabriola. Ela devora qualquer criança, mais novas ou mais velhas, desobedientes... ou obedientes... ela devora até adultos se eles estiverem vulneráveis e fracos. Você deu muito azar e eu sinto muito pelo que aconteceu, sinto muito que sua vida tenha recebido um final tão horrível e precoce. Espero que seu espírito fique em paz e descanse agora que eu anotei seu relato.
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E foi isso.
Minha vizinha conhecia essa lenda por uma coincidência tremenda e, graças à dona Onésia, eu agora tenho mais uma coisa para preencher meus pesadelos, mesmo que eu não seja criança há anos. De qualquer forma, conhecimento é melhor que ignorância... né? Minha ansiedade parece que piorou depois disso, mas eu vou ficar bem... eu espero. A dona Onésia é bem simpática e está me dando uns chás meio misteriosos.
Espero não ficar mais tanto tempo sem postar.
Ah, e uma última coisa, leitores do blog...
QUEM NÃO COMPARTILHAR ESSE RELATO COM MAIS DEZ PESSOAS VAI RECEBER UMA VISITA DA CABRA CABRIOLA, INDEPENDENTE DE SER CRIANÇA OU NÃO.
Pronto, joguei minha praga.
Valeu por ler = )
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