- 11.2 -
Duas semanas depois
- Ande logo com isso, seu lixo bastardo! Eu não tenho a noite inteira!
De pé, num dos cantos da sala úmida de chão lodoso e paredes emboloradas, Jezemew esbravejava. Seu olhar de desdém e ódio somado a uma nuance indecifrável fixava-se em Devimyuu. De maneira leve e rítmica, batia contra a palma da mão uma vara de açoite que mantinha em punho. O som da ponta do objeto batendo contra as luvas de couro ecoava pelo cômodo vago, intercalando com o gotejar dos canos que saíam da parede, criando uma sinfonia desconfortável de tensão e melancolia.
No lado oposto do decadente quarto de banho dos serviçais, Devimyuu revoltosamente se despia, procurando ficar de lado para aquela mulher asquerosa que não tirava os olhos dele, na melhor tentativa de não ter que se expor tanto e manter o mínimo do que restava de sua dignidade.
Não entendia a razão daquilo. O motivo de quase toda noite, Jezemew o obrigar a se banhar na frente dela; com a própria rainha que era tão soberba se sujeitando a descer ao nível inferior do castelo, na repudiada área dos empregados apenas para esse fim. Será que as constantes humilhações e maus tratos diurnos não bastavam?
"Um vermezinho desprezível como você sequer sabe se lavar direito! Eu sou a rainha! Não vou deixar que meu escravo pessoal se aproxime de mim sendo um moleque imundo e nojento!"
Era o que Jezemew afirmava. Que precisava garantir que para servi-la, um "pivete sujo" como Devimyuu estava devidamente limpo. Mas, se era assim, por que então não mandava um servo para que o vigiasse? Por que ela fazia questão de estar ali o assistindo pessoalmente?
Devimyuu simplesmente não entendia. Não haveria como ele saber que na mente doentia daquela fêmea vil, uma parte de si acreditava que aquilo causaria ciúmes em Mewpester; e outra sentia uma satisfação hedionda em observá-lo constrangido e humilhado, sob o olhar perturbador que guardava seus mais ocultos e inapropriados desejos. Desejos que não estavam sendo saciados por poder tocá-lo apenas quando ele dormia em sua cela, nas ocasiões em que a própria rainha ordenava que drogas soníferas fossem misturadas na última refeição limitada dele.
- Se esfregue com mais força, seu rato imundo! Ainda posso sentir o fedor daquela vagabunda exalando de você!
Não me faça ter que ir até aí para limpá-lo direito, garoto inútil!
Ela exclamou, jamais perdendo uma oportunidade de insultar a mãe biológica do Herdeiro das Trevas.
Devimyuu a fitou com o canto dos olhos, sem esconder a chama de ódio que refletia neles. Na vida antes de seu rapto, apenas havia olhado assim para um único felin - o irmão de seu pai adotivo, quem sempre o abominara simplesmente por sua raça. Como se Devimyuu tivesse culpa de ter nascido um reverso; como se fosse escolha dele ser o que era.
Jezemew percebeu o olhar, e ela certamente não gostou.
- Não ouse me encarar desse jeito, sua peste detestável! Jogue mais um balde e termine logo com isso!
Devimyuu voltou a encarar o chão cinzento e áspero sob seu pés. Próximo, havia um ralo precário coberto por uma substância pegajosa e verde, misturada aos cabelos e pelos emaranhados que o entupiram. O garoto podia ver o reflexo distorcido de si mesmo na poça de água gélida onde, sem opção, pisava. Via seu corpo tremendo involuntariamente, não apenas por estar nu e molhado numa sala fria de paredes de pedra, mas também pela raiva que percorria cada fibra de seu ser e era obrigada a ser contida. E, obviamente, pelo indescritível constrangimento pelo qual era submetido ali sem que pudesse fazer nada.
O jovem semideus havia completado 15 anos há exatamente uma semana. As mudanças devido a idade estavam cada vez mais evidentes. Já seria estranho por si mesmo observar seu corpo em meio a toda aquela transformação tão repentina. Ter a abominável Jezemew a devorá-lo com olhos repletos de ódio e malícia noite após noite transformava tal experiência tortuosa num verdadeiro pesadelo psicológico para Devimyuu.
Ele respirou fundo. O ar que exalou dos pulmões estava tão frio quanto seu esguio corpo molhado. Então girou uma espécie de válvula com marcas de ferrugem que havia na parede. O encanamento externo e mal feito preso a mesma rangeu. Águas o percorreram e encheram um velho balde sobre o suporte pregado na altura acima de sua cabeça. Devimyuu puxou a corda que o prendia, e se preparou para a cascata gélida que o atingiria.
O garoto arfou conforme a rajada de água gelada o acertou como um chicote. Os cabelos encharcados cobriam seu rosto. Com os braços cruzados, os segurava junto ao corpo na tentativa de tremer menos. O frio castigante que o acometia parecia estar penetrando através de sua pelagem, se infiltrando em cada gota de seu sangue e cada centímetro de seus ossos. Devimyuu abraçou a si mesmo com mais força, tentando despistar a terrível sensação de que poderia congelar a qualquer instante parado ali.
Jezemew ordenou que ele virasse de frente para ela. Aquele era o momento que o futuro Lorde mais repudiava em sua rotina de humilhação.
Contudo, não havia nada que ele pudesse fazer para evitar isso. Nada que pudesse fazer contra a própria rainha perversa.
Só restava ao garoto outrora um príncipe suportar o insuportável, como vinha fazendo desde a noite em que perdera seu lar e fora arrastado para aquele inferno.
Ainda com a sensação de estar prestes a sofrer uma hipotermia, Devimyuu enrolou sua longa cauda em volta da cintura e virilha, na tentativa de esconder o máximo que poderia do olhos infames de Jezemew.
A fêmea o fitou de cima abaixo. Devimyuu desviou o rosto, trincando seus dentes com força, as presas a se destacarem. Entre constrangimento e raiva, era difícil definir qual dos dois o consumia mais por ser obrigado a se expor de tal forma.
De repente, Devimyuu ouviu o som do salto alto de suas botas de couro estalando sobre o piso encharcado. Mesmo molhados, os pelos de seu corpo se eriçaram conforme ergueu o rosto e encarou Jezemew caminhando em sua direção.
Embora sempre ameaçasse, ela nunca havia de fato tentado tocar nele no intuito de "limpá-lo direito". Com um arrepio de aversão percorrendo sua espinha, Devimyuu se perguntava o que ela realmente pretendia fazer. No entanto, isso não importava. Seja lá qual fosse a ideia transviada que se passava por sua cabeça, ele não permitiria que acontecesse.
Como uma fera acuada, Devimyuu franziu o cenho com uma expressão feroz conforme ela se aproximava. Sibilando*, o felin adolescente recuou dois passos um tanto desequilibrados devido a cauda envolta em si. A cruel rainha guardou a vara de açoite na bainha de seu cinto, e ficou face a face com o futuro Lorde das Trevas, agora encostado contra a parede.
Antes que Devimyuu pudesse pensar em qualquer coisa ou tomar alguma ação, ela desferiu um forte tapa em seu rosto.
- Eu disse para se esfregar direito, seu verme! Acha que vai me servir com toda essa imundície que ainda está em você?! Já vi que terei que limpá-lo eu mesma!
Jezemew o agarrou pelo braço, contudo, no instante em que o tocou, Devimyuu sentiu um furor incontido a dominá-lo. Um ódio misturado a repulsa; mais forte do que qualquer temor pelo que Jezemew poderia fazer com ele por ter a audácia de a confrontar.
- Me solta! Sua... vadia! - O garoto gritou em fúria, puxando o braço que ela segurava e a empurrando para trás.
A pérfida rainha não esperava que ele reagisse. Desde que Mewpester o tirou do calabouço e o entregou para servi-la, o menino jamais havia mostrado qualquer indício de que se oporia a ela. Nas poucas vezes que a retrucou, Jezemew o puniu através de dor e sangue derramado; deixando cicatrizes em seu corpo como um lembrete para nunca mais respondê-la.
Por um tempo, acreditou que tivera sucesso em fazer com que o príncipe repudiado a temesse. Contudo, naquele instante percebeu que qualquer medo que Devimyuu pudesse ter de suas punições havia desaparecido, tal qual sempre desapareciam as cicatrizes que ela tanto se orgulhava em fazer, regeneradas por seu poder de semideus.
Fosse por te chegado ao seu limite ou por estar tomando pela ira que intensificou seus reais poderes de arquemônio - possivelmente um tanto de ambos - Devimyuu a empurrou com muito mais força do que seria esperado de um garoto de 15 anos que não fazia mais do que duas refeições mal servidas por dia.
A fêmea adulta cambaleou para trás. O altíssimo salto fino de suas botas se partiu, fazendo-a perder o equilíbrio e cair de costas no chão áspero e enlameado pela água suja. Pelo baque surdo, definitivamente tal queda deixaria um ou mais hematomas merecidos em seu corpo.
Atordoada pelo modo repentino que tudo sucedeu, Jezemew levou alguns instantes para se situar. Ela olhou ao redor, incrédula. O vestido finíssimo estava encharcado, e um pouco de sangue escorria da mão esfolada que usou para amparar o tombo.
Para a rainha, tal situação era inaceitável. Seus olhos se viraram para Devimyuu refletindo uma ira demoníaca.
- S-eu... SEU...-A raiva que a possuía era tão tremenda que a fazia ranger seus dentes afiados - ...LIXO BASTARDO! MALDITO! COMO SE ATREVE... A ME ATACAR?!
Devimyuu deveria estar com medo, mas não havia tempo para isso. O cenário havia mudado totalmente. Ele nem sequer estava mais envergonhado. Indignação e fúria eram tudo que conseguia sentir. Se afastou da parede, parando de tentar se encobrir e esconder-se. Sua cauda agitava violentamente de um lado para o outro, externando sua raiva tremenda.
Com passos imponentes, se aproximou da fêmea caída, que o encarava desacreditada por sua audácia.
- Cale a boca. - Disse Devimyuu, num tom friamente diabólico.
- O... o quê?! COMO VOCÊ OUSA...
- Eu mandei calar a boca!
Devimyuu gritou. Seus olhos de raras íris douradas refletiam um brilho vermelho pulsante.
- Você mereceu! Você merece coisa muito pior! O que estava tentando fazer comigo, sua vagabunda?! Eu não sou um objeto! Não sou o seu brinquedo! E também não sou nenhum bastardo! Eu sou o filho de um Rei Supremo, e não vou deixar que me toque! Nunca mais... TENTE COLOCAR SUAS MÃOS IMUNDAS EM MIM!
Os pelos da rainha se eriçaram ao ouvi-lo rugir tais palavras. No lugar de seus olhos, duas centelhas amarelas pareciam ter surgido. O penteado imponente transformou-se num emaranhado louro espetado e sem controle, conforme correntes elétricas começaram a circular em volta dela.
Jezemew se levantou. A tensão elétrica que emitia repercutiu por toda a área próxima, fazendo as luzes do lado de fora entrarem em pane. A fraca lâmpada pendurada no teto do quarto de banho estourou, não suportando a sobrecarga.
Devimyuu instintivamente se protegeu dos estilhaços que caíam, mas havia algo bem maior em termos de perigo com o que ele devia se preocupar.
Mesmo sem a lâmpada, toda a sala de banho era iluminada pela aura de eletricidade que emanava de Jezemew.
Ela abriu os braços, conduzindo as correntes de alta voltagem a se enlaçarem neles traçando o caminho até suas mãos.
A energia condensada e instável ricocheteava, como se Jezemew segurasse duas grandes enguias ávidas para um ataque. Ela usaria o principal de seus golpes, seu movimento signature - o Açoite Elétrico.
A reação de Devimyuu em sua própria defesa foi mais do que a rainha abusiva - que esperava um menino coagido e submisso - soubesse lidar.
No fundo, Jezemew sabia que seu único papel como rainha era ser uma reprodutora para Mewpester. Ela não tinha autoridade, reconhecimento, poder, ou tampouco o mínimo respeito daquele com quem se casou. Jezemew sequer recebia a atenção deturpada tão desejada do marido, que por sua vez preferia intermináveis noites de luxúria com as concubinas de seu harém do que estar com a fêmea que gerou seus descendentes.
Jezemew achava que seria idolatrada pelo fato de apenas ter lhe dado filhos homens. Pois sabia que a primeira jovem esposa de Mewpester foi expulsa por ter dado à luz a uma menina, sendo mandada para trabalhos forçados nas Minas dos Condenados junto com a criança, onde nenhuma delas sobreviveu.
Contudo, o nascimento de cada um dos quatro príncipes jamais fez diferença no tratamento de menosprezo que Jezemew recebia.
Até que chegou o dia em que Mewpester tirou Devimyuu de sua cela na masmorra do palácio e o levou a rainha despeitada.
"Você não odiava Renesmew por ser minha predileta? Fique à vontade para descontar sua raiva no filho bastardo que tive com ela."
Foram as palavras ditas pelo odioso rei ao entregar o menino de quem mentia ser o pai. Após mais de vinte anos recebendo as misérias da atenção dele, Jezemew encarou tal ato como um presente.
Embora de fato fosse a rainha, ela não tinha nada, não significava nada. Era uma ironia cruel porém bem merecida para sua alma vil. No entanto, em sua mente destorcida e deturpada, ela achava que era alguma coisa ao ver Devimyuu como sua posse. Tinha alguém para fazer com que a temesse, sobre quem tinha pleno poder, e só restaria ao adolescente prisioneiro obedecê-la sem questionamentos. Enfim sentia que detinha autoridade sobre algo em sua frívola existência.
Mas as coisas não eram como imaginava. A quebra de ilusão ficou bem clara no instante em que Devimyuu se impôs. Jezemew percebeu que todo o poder que acreditava ter era falso. Suas palavras e ações nada significam nem mesmo para quem supostamente pertencia a ela.
O choque de realidade a fez entrar em colapso. Seu corpo estremeceu como se fosse convulsionar, e as ondas elétricas que emitia se tornaram mais fortes.
- Sua escória... seu moleque dos infernos... Tinha que ser você... tinha que ser a praga que saiu daquela puta! Basta...! Eu já devia ter feito isso há muito tempo... Desgraça de bastardo! Eu vou matar você!
Movida a toda força de sua fúria insandecida, Jezemew ergueu os braços, e colocou o açoite elétrico em ação.
Naquele momento, a onda de adrenalina que corria pelas veias do príncipe das Trevas deu lugar a razão. Ele olhou em volta. Os enormes chicotes elétricos viriam certeiros em sua direção. Por si só já teriam carga o suficiente para matar um ou mais felins adultos. Havia água espalhada por todo o chão da sala onde ele pisava descalço. As paredes estavam úmidas, e o próprio Devimyuu continuava molhado e nu. Gotas d' água escorriam ao longo de seu cabelo encharcado e desciam por suas costas. Não havia uma única parte de seu corpo que estivesse seca.
Devimyuu não precisava pensar muito para adivinhar o que aconteceria no instante em que o ataque de Jezemew o atingisse. Ele tinha plena consciência do que aquilo significaria.
"Eu vou morrer."
Notas:
Sibilar = Som de "chiado" emitido pelo rosnado dos gatos quando estão com raiva/acuados.
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