Capítulo 4 - Crimes do Desejo
O sol brilhante da manhã derramava-se sobre as montanhas da cidade quando Damon saiu do tribunal e foi apanhar Alessa no hotel. Estava faminto. Não tivera tempo para alimentar-se como costumava, pois correra para o escritório onde tinha um encontro com André de Biasi e com Jonas Torres. Desejava saber como iam as investigações entregues aos cuidados dos dois auxiliares, antes de partir para Mateus Leme e Iparatinga, onde Zelda Abdala ficaria por alguns meses. A seguir dirigira-se ao tribunal, onde um cliente milionário o esperava para tratarem do depoimento feito na defesa dele.
Por volta das onze horas ele e Alessa já corriam pela rodovia. Carter fazia perguntas a respeito do pessoal que cercava Zelda Abdala, descobrindo que Lúcia Martins, encarregada da publicidade, e Eric Cardoso, esteticista, haviam sido contratados dois anos antes. Lydia Frabça desenhara todo o guarda-roupa da estrela desde 1970 a 2000 e fora substituída por sua filha Rose.
— Ronny é o único, além de mim, que trabalha exclusivamente para Zelda. — Explicou ela.
— Os outros devem ter mais clientes, não?
— Têm sim. Ronny mora num dos muitos quartos da mansão Abdala e está sempre pronto quando se precisa dele.
Quando saíam da rodovia para pegar a rota ao longo da praia, em direção ao interior do estado, ele voltou a insistir no ponto mais importante da questão.
— Deve compreender, Alessa, que ficaria tudo mais fácil se você me revelasse que ameaça o chantagista está usando para extorquir dinheiro.
Ela agitou-se, sentindo a garganta apertada e os nervos tensos. Percebia que não estava sendo justa com Damon, mas o segredo de Zelda precisava permanecer escondido.
— Sinto muito, mas só posso contar que diz respeito a algo em que Zelda se viu envolvida quando era apenas uma aspirante a atriz sem maior importância.
Ele olhou-a rapidamente e voltou a fixar a atenção na estrada.
— Se eu soubesse do que se trata, a lista de suspeitos diminuiria bastante. O chantagista teria de ser alguém que a conhecesse desde aquele tempo. O que me diz de Lydia não-sei-o-quê?
— Lydia França? É dona de uma butique Du França, em Belo Horizonte do Sudoeste. A filha dela, Rose, dirige a filial em São Paulo.
— Acha que uma delas poderia precisar de duzentos mil reais ou mais?
Alessa sorriu com descrença.
— Lydia não consegue contar a mais inocente mentira sem ficar vermelha como uma pimenta malaguenta. Rose é uma grande amiga minha.
— E Davi Miranda, o agente? Você disse que os dois se conhecem desde a chegada de Zelda ao Rio de Janeiro. O homem deve saber muitas coisas, não?
— Pegou o atalho errado novamente em suas deduções. Davi tem sido um bom amigo para Zelda. E grato. Ganhou muito dinheiro tendo Zelda Abdala como cliente. Tanto, que começou a participar como co-produtor de filmes nos estúdios Viscaro.
— E ainda trabalha como agente?
— Apenas para alguns clientes selecionados. Estrelas de primeira grandeza do cinema brasileiro.
Ela olhou através do vidro do carro e admirou a beleza do sol dourado batendo na arrebentação das ondas e na areia branca à esquerda da rodovia. Procurou contagiar-se com o encanto da cena, mas quando mais se aproximavam de seu destino, mais nervosa ficava.
Ao passarem por um campo gigantesco de girasóis, explicou que a residência de Zelda ficava no meio do caminho entre aquela duas cidades consideradas pequenas. Pouco depois saíam da estrada e enveredavam por uma alameda de cascalho que serpenteava num verdadeiro bosque de eucaliptos e acácias. A frente, numa elevação, tendo como fundo a encosta da Serra, surgia a casa imensa, em puro estilo colonial, de telhado avermelhado e rodeada por palmeiras imperiais. Aproximaram-se dos portões de ferro trabalhado presos a gigantescos pilares de pedra e uma guarita com um segurança começou a andar na direção do carro. Viu Alessa, acenou amigavelmente e voltou para a guarita, onde acionou o mecanismo que abria os portões monumentais. Impressionado, Damon passou com o automóvel.
A mansão da atriz Zelda Abdala. Construída nos anos do império, recém reformada era uma mansão imponente de dois andares e mais de vinte cômodos, além das dependências de serviço. Nas grossas paredes de adobe avermelhado, abriam-se janelas profundamente incrustadas e balcões graciosos repletos de flores de maio e Outubro. Na frente estendia-se um lago artificial circundado por palmeiras imperiais e pés de frutas variadas, um pomar que se estendia até onde sua vista poderia alcançar, a direita se podia ver os parreirais de uvas em flor. Realmente a propriedade era lindíssima, e antigamente deveria ter pertencido algum político ou melhor, algum agroprodutor de vinhos.
Damon seguiu a alameda que contornava o lago e dirigiu-se à área de estacionamento, no lado sul da propriedade. Dando a volta no carro para abrir a porta para Alessa, viu que nos fundos da mansão havia duas quadras de tênis e uma piscina, onde uma mulher esbelta, de maiô branco, dava passos de dança no trampolim. Ela recuou e a seguir deu três passos rápidos para a frente. Lançou o corpo no ar e logo depois cortava a água com graça e precisão de movimentos.
Alessa levou-o através de um pátio aberto até chegarem a uma escadaria de pedra.
Subiram e rodearam a casa até atingirem o local onde ficava a piscina. O sol do começo da tarde estava forte e batia na água produzindo centelhas vivamente prateadas. Ele observou os braços delgados da mulher movimentarem-se graciosamente, enquanto ela nadava na direção deles.
— Essa é Zelda? — Perguntou.
— Sim.
Damon viu a mulher inclinar a cabeça para trás e passar as mãos pelos cabelos loiros que iam até os ombros. Mesmo sem nenhuma maquilagem ela era bela apesar da idade. O rosto oval conservava a juventude, não revelando os seus mais de cinquenta anos da famosa estrela brasileira. Então Zelda abriu os olhos e sorriu. Enlevado, ele retribuiu o sorriso. Os olhos possuíam mesmo aquele azul lindo demais para ser verdadeiro.
— Alessa, querida... — Exclamou ela com sua voz musical, começando a subir a escada de aço inoxidável. — Todo mundo estava perguntando por você.
Acabou de sair da piscina e apanhou uma enorme toalha branca de cima da mesa de madeira protegida por um guarda-sol.
— Foi tudo bem, ontem? — Alessa quis saber.
— Maravilhosamente bem! — Respondeu a mulher, pousando os olhos magníficos em Damon. — Quem é seu amigo?
— Este é Damon Carter, o homem que contratei para examinar nosso sistema de segurança.
— Srta. Abdala, sempre gostei de seus filmes e de seu desempenho. Acredito, porém, que a tela não lhe faz justiça. É ainda mais bonita em pessoa.
Na verdade estava quase em estado de transe por conhecer a estrela que admirava desde a adolescência. Observando-a mais de perto, notou as linhas finas ao redor dos olhos, mas Zelda Abdala continuava a ser uma das mulheres mais atraentes que já vira.
Ela sorriu contente.
— É muito gentil, Damon, mas na minha idade já não sou considerada bonita. Acredito que se referem a mim dizendo que estou bem conservada.
— Não concordo. Continua linda para mim! — Afirmou Alessa.
— Quanto ao meu desempenho, Damon, aprendi muito cedo que, na arte de representar, o essencial é ser honesto. — Sorriu com malícia. — Depois que comecei a fingir honestidade com perfeição, fui considerada uma estrela.
— Sabe o que vai acontecer, Zelda? — Perguntou Alessa ajudando-a a vestir um roupão atoalhado branco. — No futuro essa sua citação vai ficar famosa.
— Ser uma estrela não é ganhar uma fortuna em cada filme. É ter talento!... — A outra mulher continuou. — Estive horrorosa no meu primeiro filme, nos anos que provavelmente os dois eram crianças ainda. Outras atrizes que agora que nem mais são lembradas pois partiram cedo demais, elas sim, foram verdadeiras estrelas.
— Você também é!... — Declarou Alessa com firmeza.
— Hoje em dia todos são astros, principalmente se aparecem na televisão ou no cinema. —
Contestou Zelda, calçando as sandálias de salto alto. — Já prestou atenção nos letreiros, no início dos filmes, Damon? "Estrelando." "Astro convidado." "Participação especial." Palavras que se tornaram banais. E prova velmente no futuro nem irão existir mais também.
— Mas uma estrela continua sendo uma estrela! — Ele contrapôs.
— Vocês dois já almoçaram? — Zelda indagou, mudando de assunto abruptamente.
Alessa disse que não e a atriz insistiu para que a acompanhassem na refeição, no pátio fechado, além do terraço. Em uma das extremidades uma pequena fonte borbulhava ritmadamente, acompanhando a música que vinha de um aparelho de som invisível.
Palmeiras-anãs e mais palmeiras imperiais estavam espalhadas por todos os lados que se olhasse, minúsculas árvores chinesas e plantas coloridas rodeavam o lugar também. Na extremidade oposta do pátio via-se uma exposição de orquídeas floridas dispostas em troncos de arvores retorcidas, dando uma beleza bastante exótica ao local. As flores vibrantes e perfumadas sobressaíam das longas folhas verdes e da grade de madeira branca que as sustentava. Havia também muitas bromélias, de cores variadas e de todos os tamanhos.
Zelda apertou um botão no lado da mesa de tampo de mármore claro e uma mulher, com aparência elegante e jovial, surgiu carregando pratos variados. A atriz não poupou elogios à mulher ao explicar a Damon que se tratava da governanta que, juntamente com a família, praticamente cuidava da propriedade. Dona Maria Coelho cozinhava e servia as refeições, enquanto o marido, Vicente, trabalhava como gerente na administração da propriedade. O filho deles, Elmo, cuidava dos jardins e das estufas e as duas filhas, Mariana e Rita, organizavam o trabalho doméstico, limpavam a casa e cuidavam da roupa. O marido de Mariana morrera na Nicarágua e a moça tinha uma filha, Bethânia, de três anos.
A admiração de Damon por Alessa redobrou quando Zelda falou da luta da família Coelho. A família viera da Venezuela como imigrantes ilegais, quatro anos antes, e passara a ganhar o parco sustento trabalhando como empregados temporários em fazendas da região. Elmo, o filho de vinte e cinco anos, fora o primeiro a fugir do regime de semi-escravidão, conseguindo emprego de jardineiro no clube de campo da cidade mais próxima daqui, usando documentos falsos. Quando Alessa o entrevistou, antes de contratá-lo para cuidar dos jardins da propriedade, descobriu que sua família encontrava-se espalhada por todo o estado de Minas Gerais. Como estivessem precisando de empregados na mansão Abdala, resolveu contratar a família inteira, em caráter experimental.
Todos provaram ser trabalhadores eficientes e então ela passou a lutar para conseguir o visto de permanência da família Coelho no Brasil. Foi bem-sucedida e como recompensa recebeu a estima e gratidão da família inteira.
— Espero que goste de saladas, Damon. — Disse Zelda olhando para o próprio prato sem muito entusiasmo. — Espinafre cru e tomates, tudo temperado com suco de limão e sal. Daria meus dois Globos de Ouro por uma batata assada com manteiga e um bife suculento e mal passado, mas Ronny teria um ataque. Além de me ajudar a ensaiar, cuida da minha saúde e dieta.
— Onde está ele? — Alessa perguntou.
— No salão de ginástica, supervisionando a montagem de uns aparelhos novos.
Podem crer, o homem é sádico completo. Agora quer que eu me mate na musculação e no pilates. — Os olhos brilhantes examinaram os ombros largos de Damon. — Faz levantamento de peso?
— Só quando preciso mudar móveis de lugar. Minha mãe muitas vezes precisa de ajuda e meu pai não tem muita paciênca para os seus rompantes emocionais. Ela cisma de mudar os móveis de lugar todo o final de ano. — Confessou rindo.
— Pensei que se dedicasse a esse tipo de exercício, por causa do físico que possui.
— Zelda tomou um gole de água mineral com suas finas fatias de limão siciliano antes de prosseguir. — Alessa cismou que necessitamos de mais segurança e devo admitir que apenas sua presença já me faz sentir mais segura.
— Já lhe disse por quê, Zelda. — Atalhou Alessa. — Tivemos duas tentativas de invasão e toda a área da propriedade anda ameaçada por assaltantes. Além disso, tem os malditos repórteres da imprensa marrom.
— Tentar é uma coisa. Conseguir é outra.
— Alessa tem razão, srta. Abdala. — Observou Damon. — É melhor prevenir do que remediar.
— Está bem, Damon, vocês venceram. — A estrela sorriu e limpou os lábios com o guardanapo de linho verde. — Mas sinta-se como nosso hóspede, sim?
— Obrigado.
— Liguei para cá ontem e não consegui falar com você, Zelda. — Comentou Alessa em tom casual.
— Eu estava comemorando de um jeito bastante especial minha querida. — Declarou a atriz com um brilho travesso no olhar.
— Comemorando? — Repetiu Alessa franzindo a testa.
— Tudo muito inofensivo, minha querida. Todos queriam me felicitar por haver mantido as mesmas medidas que tinha quando fiz o último filme. Não sabem como passei fome para manter a forma. No fim convidei o pessoal para um delicioso piquinique noturno pela propriedade, mas é claro que deixei o local em segredo. Meus convidados ficariam envergonhados se vazassem alguma nota nos jornais. Sabe como é lindas atrizes e belos homens correndo nus por esse jardim rederiam muito nos artigos de fofoca.
— O que?
— Deixe de ser puritana minha querida, sexo faz maravilhas para pele. Acredito que você deveria experimentar de vez enquanto. Disse sorrindo e olhando em direção á Damon. — Vocês jovens deveriam aproveitar mais a vida. Afinal se vive apenas uma vez não é mesmo?
— Zelda por favor, o que Damon irá pensar e...
— Irá pensar que gostaria de ter chegado horas antes. Riu mais ainda fazendo Carter rir também, pois os dois viram o quando Alessa estava vermelha.
— O que andou bebendo Zelda?
— Ontem uma taça de champanhe e hoje tomei apenas um cooler de vinho para despertar, minha querida.
Damon viu que Alessa fitava as portas que levavam ao interior da casa. Seguiu-lhe o olhar e deparou com uma mulher de formas esculturais que saía para o pátio carregando uma pasta de couro. O vestido de seda, cor de pêssego, era da mesma tonalidade de sua pele, os cabelos ruivos estavam presos severamente na nuca rabo de cavalo. Tinha aparência imponente e os gestos demonstravam eficiência. Aproximou-se da mesa e os olhos verdes, pesadamente delineados, fixaram-se em Damon em primeiro lugar. Ela o avaliava de modo malicioso e a atmosfera ficou estranhamente pesada.
— Boa tarde para todos.
Alessa apresentou-a como Lúcia Martins, a publicitária de Zelda.
— O que estão comendo? — A mulher perguntou fazendo uma careta. — Saudável demais para o meu gosto.
— Não quer um pouco de salada? — Ofereceu Alessa.
— Nem brincando. Trouxe um esboço do que pretendo fazer, Zelda. Se aprovar, levaremos o plano à frente.
— Leia, Alessa, por favor. — Pediu a estrela.
Alessa pegou os papeis que a outra mulher lhe apresentou e começou a lê-los.
Lúcia pôs-se a bater com os dedos na mesa, impaciente.
— Também preciso saber quando aqueles cinco filmes de Zelda serão lançados nos cinemas.
Alessa pousou um cotovelo na mesa, apoiando o queixo na mão.
— Ainda não há uma data definida. Davi entrou com uma ação no Supremo Tribunal de São Paulo para conseguir os direitos de volta, mas o antigo estúdio parece quer levar o processo adiante. Só temos os direitos para a televisão e os produtores alegam que não incluem a exibição doméstica. Então teremos que esperar os advogados resolverem toda essa situação na verdade.
— É uma pena. — Comentou Lúcia.
— Lúcia está desesperada para dar uma boa publicidade. Ironias do Destino, o filme que vou fazer para a televisão. — Explicou Zelda a Damon.
A publicitária e Alessa passaram a discutir o assunto como se a atriz não estivesse presente e ele não pôde deixar de imaginar se Zelda na realidade não se incomodava de ser deixada de lado na conversação, ou se apenas aparentava indiferença.
Lúcia sentou-se e serviu-se de uma dose de uísque a governanta trouxe.
— Considerou minha sugestão de mudar a imagem de Zelda aos olhos da imprensa? — Perguntou em tom pedante.
— Já discutimos isso, Lúcia. — Respondeu Alessa.
A publicitária suspirou exasperada.
— Os frequentadores de cinema, e os telespectadores, são, em esmagadora maioria, jovens. Como espera que se identifiquem com Zelda se sua imagem cheira a passado? Dê-me uma chance, Alessa, e mudarei isso.
— Você tem feito um trabalho fantástico, Lúcia, sem apelar para o mau gosto. De modo algum permitirei que Zelda seja fotografada dançando em boates ou desfilando por aí com roupas que mais parecem trapos feitos por estilistas que não tem um mínimo senso sobre moda.
— Mas...
— Além disso, as estatísticas provam que homens e mulheres acima de trinta anos preferem os filmes feitos para a televisão. Os mais jovens gostam de séries e clips musicais. E esse público adulto aplaudirá Zelda Abdala, respeitando-a por seu talento e elegância.
2740 Palavras
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