Capítulo dezoito - Purgatorium (Parte um)
Um vazio colossal circundava a adolescente que ainda caía em queda livre. Já havia perdido a noção do tempo ou espaço e também desistira de debater seus braços e pernas na falsa esperança de que pudesse retroceder seu caminho. Não importava o quanto apertasse seus olhos, não havia nada para enxergar ou mesmo algo que fizesse com que a garota identificasse onde estava. Tudo era vazio, sem cheiro, sem som e sem vida. Amargamente, ela cogitou a possibilidade de colidir com o núcleo da terra, visto que caía sem qualquer opção de freio. A velocidade da queda era tamanha que esfolava sua pele, chicoteando todo seu frágil corpo.
Já estava sem esperanças, quando surpreendentemente se chocou contra algo duro e minimamente quente. Ela gritou com a dor agonizante que percorreu todos os seus músculos com a queda brutal e contorceu seu corpo na tentativa de amenizar a dor que lhe dominava. Após longos minutos de lamúrias e retorcendo seu corpo na superfície desconhecida a dor começou a se esvair de seu corpo fragilizado vagarosamente. Ela podia sentir o sangue molhando suas costas e consequentemente a superfície em que havia aterrissado de forma nada delicada.
Com muito esforço e uma série de gemidos dolorosos, Scarlett se limitou a sentar e analisar o lugar ao seu redor. A primeira coisa captada por seus sentidos, fora o cheiro repulsivo de carne morta que impregnava o local. Tratava-se de um enorme campo arenoso rodeado por inúmeros destroços materiais e orgânicos, até mesmo os prédios que cercavam o local, estavam abandonados e destruídos, desafiando a física e a gravidade para manterem-se intactos. Scarlett concluiu que o lugar se assemelhava a uma cidade devastada pela guerra e pelo caos onde o sol havia deixado de brilhar a muito tempo.
O ar da cidade fantasma era espesso, quente e maçante, mesmo que desprovido de sol, o que tornava aquilo ainda mais surreal, pois estranhamente a claridade dominava o local.
Scarlett usou sua mão direita para cobrir seus olhos das rajadas de vento que traziam grãos de areia até sua visão sensível e se apoiou na primeira coisa que apalpou no chão para se levantar. Percebeu tarde demais, após esticar seu corpo verticalmente, que havia usado o crânio de um corpo humano em decomposição e deu um pulo para trás tampando sua boca enojada.
-Merda, Onde eu estou?- sua voz ecoou pelo lugar devastado, sem obter uma resposta. Não assemelhava-se a nada que já tivesse visto.
Suor começava a escorrer pelas laterais de seu corpo, e sua boca implorava por uma gota de água. Ela soube imediatamente que precisava encontrar um abrigo ou mesmo algum ser vivo para ajudá-la antes que tivesse o mesmo destino do homem - ou que quer que fosse, que estava morto ao seu lado.
Começou então a caminhar sem rumo, pulando destroços de materiais e partes de corpos terrivelmente destroçadas. Seus pés já estavam começando a doer, quando subitamente a temperatura do lugar caiu e a claridade se esvaiu rapidamente dando lugar a um céu escuro e um ar gélido e sombrio, seguido por rajadas de vento ainda mais fortes. A mudança drástica de temperatura era surreal e inacreditável, se bem que a maior parte dos últimos dias poderiam ser classificados desta forma.
Scarlett abraçava seu próprio corpo tentando se aquecer inutilmente. O suor que antes escorria pelo seu rosto havia se transformado numa fina crosta de gelo, seus músculos tremiam assim como o resto de seu corpo e a jovem ainda se arrastava dolorosamente pela superfície arenosa em busca de qualquer sinal de vida em meio aos prédios abandonados. Estava quase desistindo de continuar, quando ouviu um relinchar de um cavalo sinistro vindo em sua direção, e não demorou muito para ouvir mais relinchos e o barulho de dezenas de cascos trotando logo à sua frente. Por mais que apertasse seus olhos, não conseguia enxergar nada na densa penumbra, mas podia sentir a aproximação dos animais grotescos conforme os sons aumentavam. A lâmina celestial em sua cintura queimou sua pele, a garota gemeu, mas tratou de empunhá-la instintivamente. Quando estava prestes a bater de frente com quem quer que estivesse conduzindo os animais, sentiu alguém agarrar seu braço com força e contra sua vontade fora arrastada para dentro de um dos prédios abandonados.
-Você ficou maluca, garota? É a caçada selvagem. Você não teria nenhuma chance!- uma voz masculina disse atrás da jovem, ao passo em que ela observou os cavalos negros trotando do lado de fora da construção montados por cavaleiros sem face sinistros e nada amigáveis que brandavam chicotes prateados. A cena a fez sentir arrepios na espinha.
Imediatamente, a assassina se virou para o dono da voz atrás de si, encontrando um rapaz que lhe encarava com um misto de espanto e estranheza. Ela pôde notar que seus cabelos eram claros e levemente ondulados, na altura de seus ombros e seus olhos eram um tom vívido de escarlate cintilantes. O indivíduo era alto, esguio e um pouco pálido, suas roupas rasgadas e sujas eram antigas e desconhecidas pelo senso de moda da garota, mesmo que o rapaz fosse jovial, algo sobre sua postura denunciava que ele aparentava ser muito mais velho do que parecia.
Vampiro. A palavra bombardeou seu cérebro imediatamente.
-Caçada selvagem? Eu não sei o que é isso.- arriscou olhar para fora mais uma vez, ainda um pouco receosa, mas os cavalos já haviam desaparecido na tempestade arenosa.
-Então você é uma novata?!Hmmmm...- ele coçou o queixo, reflexivo.- O que você é? Seu sangue tem um cheiro...peculiar. Amargo.- ele fez uma careta.-Nunca vi algo assim! E para estar aqui, com certeza não é humana.- ele encarou a assassina minuciosamente, analisando cada parte de seu corpo e a jovem se sentiu tão constrangida com o ato que levantou sua adaga ameaçadoramente na direção dele.
-Não me olhe desse jeito!- ralhou, apontando o objeto pontiagudo para o peito do rapaz, que levantou suas mãos para cima assustado, em sinal de rendição.
-Eu só estava curioso sobre você...- ele deu de ombros.
A Assassina o olhou com os olhos semicerrados, para ter certezas de suas intenções.
-Você é mesmo um vampiro?- ela precisava confirmar, pois segundo os anjos, essa espécie de sobrenaturais estava em extinção.
O rapaz lhe respondeu quando suas presas começaram a aumentar de tamanho, saltando para fora de seus lábios rachados, cortando sua própria pele, e dando lugar a dentes pontiagudos e letais. A cena toda não passou de alguns segundos, mas chocaram um pouco a garota. Ela nunca tinha visto algo do tipo em toda sua vida. Falar que o mundo sobrenatural é real era fácil, presenciar suas criaturas surreais, no entanto, continuava sendo uma tarefa árdua.
-Logan?! Quem está ai?-
Uma súbita familiaridade tomou conta do peito da jovem, ao ouvir a voz suave e masculina que provinha da escuridão logo atrás do garoto.
-Apenas uma garota suicida...- ele respondeu dando de ombros se voltando para o lugar onde passos se aproximavam vagarosamente.
Scarlett apertou seus olhos curiosa, tentando identificar quem se aproximava, e quando o sujeito finalmente deu as caras, a assassina sentiu seu coração vacilar, seus se esbugalharem e sua boca ficar ainda mais seca.
Poderia ser mais um sonho?
-Phill...?- o chamou, e o homem abriu um sorriso fácil antes de se apressar na direção da garota.
-Minha doce, garotinha...- ele começou abrindo os braços para a garota que ainda o encarava estática e boquiaberta.
Phillip estava exatamente como no dia em que Scarlett o havia assassinado, apenas suas roupas eram diferentes, e sua expressão que era sinistra no dia do incidente, agora era doce e afável, como sempre costumava ser. Seus olhos transmitiam uma mistura de alívio e surpresa quando ele puxou a garota relutante para um delicioso abraço de urso.
-Eu...Não...Você...Não é possível...-balbuciava confusa, sua voz entonando pela emoção. Não pôde evitar que lágrimas teimosas escapassem de seus olhos, o abraço era quente e extremamente real.
-Você não está sonhando, meu doce. Eu realmente estou aqui.- ele assegurou, se afastando minimamente para limpar as lágrimas da jovem que soluçava em seus braços.- Me surpreende que você esteja aqui...- ele juntou suas sobrancelhas.-Não me diga que...-ele suspirou e olhou para o garoto atemporal ao seu lado que meneou sua cabeça negativamente.- Se você não está morta... Como veio parar aqui?- questionou, sem rodeios.
-Eu deveria estar morta?!- exasperou boquiaberta.- Eu não sei como eu vim parar aqui, apenas...Espere, que lugar é esse?- olhou mais uma vez ao seu redor, tomando conhecimento do edifício destruído em que se encontrava.
-Onde o tempo não existe e a solidão é eterna.O lar dos sobrenaturais.- a resposta veio do garoto de olhos vermelhos.- Você está no Purgatório. Ou como fora carinhosamente apelidado por nós sobrenaturais...- riu sem humor.- Bem vinda à Cidade das Almas Renegadas. - seu timbre era tenebroso e nada receptivo.
Scarlett resolveu sentar-se no chão arenoso antes que seus joelhos se dobrassem por vontade própria. Ela encarou o mundo devastado ao seu redor e se esforçou para assimilar as palavras que tinham acabado de lhe dizer. Sentiu uma mão apertar seu ombro acalentadoramente e de soslaio viu Phill lhe lançar um sorriso compreensivo.
-Você me salvou, sabia?-seu padrasto começou, parecia extremamente sincero.-Eu sei que você acha que me assassinou. Mas a morte definitivamente era mais apetitosa do que ter aquela coisa dentro de mim.-ele analisou o rosto de Scarlett por um momento, ela evitava encará-lo desenhando círculos na areia.-Se isso for de grande ajuda, não é tão ruim assim estar aqui. As vezes eu posso invadir seus sonhos.- ele sorriu largamente, as rugas evidentes em sua face, e finalmente ganhou a atenção daquele par de olhos verdes.
-Aquela coisa...Você quer dizer que foi possuído por um demônio?- questionou e viu o olhar do homem mudar, um misto de surpresa e preocupação, mas ele não lhe respondeu.- Eu tenho aprendidos algumas...coisas, sabe.- ela deu de ombros, sem graça. Mal acreditava que estas palavras surreais saíam de sua boca.- Você realmente pode invadir meus sonhos?- mudou de assunto quando seu padrasto pareceu incomodado com o rumo da conversa. Phill assentiu, mas mal parecia prestar atenção nas palavras da jovem.
Ela o viu trocar um olhar apreensivo com a criatura vampiresca em pé ao lado deles.
-Ariella, o que andou acontecendo ultimamente?- soou sério.-Não tenho muitas fontes de informações por aqui...- explicou, soltando um longo suspiro.
Obviamente, seu padrasto não tinha como ter conhecimento dos acontecimentos recentes e não era uma opção para a jovem contar-lhe. Principalmente porque não queria ver o mesmo olhar de Elisabeth inundar aqueles olhos de um castanho tão amável.
-Eu preciso de...água.- desconversou incomodada. Viu Phill fazer um aceno de cabeça para o sobrenatural cabeludinho que saiu de suas vistas de forma surpreendentemente rápida.
-Eu preciso que você me conte. Acredite em mim, poucas coisas irão me surpreender nesse momento.- instigou, acariciando a mão gélida da jovem, num gesto simples e acalentador.
Scarlett fechou seus olhos por um momento e ponderou contar-lhe. Ela tinha consciência de que ele precisava saber, apenas não queria ser a portadora de más notícias, no entanto, com o padrasto muito distante do mundo dos vivos, ela era a única que poderia lhe contar.
-Tudo bem. -concordou.
Respirou fundo antes de começar a despejar todos os últimos acontecimentos surreais sobre o homem que lhe encarava atentamente. Desde a morte de Elisabeth, até a descoberta de um mundo repleto de criaturas sobrenaturais e o sequestro de Joe-que havia lhe levado até ali, ela relatou tudo dolorosamente. As palavras pareciam cortar sua garganta seca e a jovem agradeceu quando Logan retornou com um pouco de água, esperando que o líquido amenizasse o ardor em seu corpo, no entanto, não fora de grande ajuda. Ao final da história macabra e surreal, as lágrimas já escorriam livremente por seu rosto sujo, ela viu Phill abaixar sua cabeça e praguejar algo inaudível antes de encará-la novamente, com um lampejo de medo transpassando seus olhos castanhos.
-Você poderia me explicar mais detalhadamente quem é esse Nicholas?- ele tinha seus olhos semicerrados e uma mão no queixo, parecia pensativo.
-Arcanjo. Guerreiro Celestial. Criaturinha fofa de asinhas e auréola.- ela gracejou, tentando amenizar a tensão evidente sob os ombros de Phill, mas ele não pareceu bem-humorado ao seu comentário. E mais uma vez, trocou olhares estranhos com o vampiro.
-Eu lhe aconselho a manter distância dele.Na verdade, eu não quero que você volte a se aproximar dele, Scarlett. Isso não lhe fará bem algum, pelo contrário, será sua ruína.- sua voz era tão firme e imponente, que chegou a causar arrepios na jovem.
-Por que? Eles precisam de mim, e outra, ele já salvou minha vida algumas vezes...- ela mal acreditava que estava defendendo o garoto que a irritava tanto, mas não pôde evitar a necessidade que sentiu de fazê-lo. No entanto, o que mais lhe intrigou foi o comportamento de seu padrasto.- Phill, o que você não está me contando?- ela pressionou, arqueando suas sobrancelhas.
Antes que o homem pudesse respondê-la, a adolescente sentiu uma súbita ânsia de vômito, seguida por um ardor forte se alastrando por todo seu corpo gélido que começou a tremer sem parar.Ela tossiu uma, duas, imensas vezes sem parar, mas o que mais lhe chamou a atenção fora o líquido avermelhado expelido por sua boca. Arregalou os olhos e alternou seu olhar entre o sangue manchando a areia, e os dois homens que lhe encaravam igualmente boquiabertos.
-Ela não deveria estar aqui. Já está começando a sentir os efeitos.- se pronunciou o vampiro.
-Phill, o que está acontecendo?- murmurou, abraçando seu próprio corpo. Seu padrasto suspirou e massageou suas pálpebras antes de se pronunciar.
-Pessoas vivas não deveriam jamais atravessarem as barreiras que cercam o purgatório.- ele explicou, se apressando em jogar uma manta velha sobre os ombros da menina, que mal conseguia se mover.- Nós temos que tirá-la daqui. Mas como?- ele começou a caminhar de um lado para o outro, como se cogitando qualquer possibilidade.
-Scarlett, o quanto você se considera boa?- a pergunta veio de Logan, que a encarava pensativo.
-Logan! Nem pense nisso! - Phill contestou, mas o vampiro acenou negativamente para ele.
-Não muito...-ela riu pesarosa por si mesma.
Assistiu o vampiro balançar sua cabeça como se duvidasse da veracidade das palavras da assassina, para então puxar Phill para um canto escuro da construção. Ela os ouvia sussurrando, mas não conseguia identificar sobre o que eles falavam. Bateu sua cabeça com força na parede atrás de seu corpo, irritada consigo mesma. Todo seu corpo estava tomado pela agonia de que tudo ao seu redor estava congelando, ao mesmo tempo em que gotículas de suor começaram a escorrer pelo seu rosto. Depois de alguns minutos observando a tempestade arenosa do lado de fora do edifício, uma movimentação estranha chamou a atenção da jovem, viu formas inumanas correndo em meio a tempestade desesperadas enquanto proferiam urros ensurdecedores. Todos pareciam estar fugindo de algo.
-Então o que faremos?- ela ouviu a voz do vampiro atrás de si, ao seu lado, caminhava Phill visivelmente exausto e desolado.
-O que está acontecendo lá fora?- disparou, apontando para um comboio de criaturas com partes de corpos despedaçadas que caminhavam o mais rápido que podiam na tempestade.
Os lábios esbranquiçados do vampiro, ganharam uma cor ainda mais mórbida diante do que via. Phill apenas praguejou um quase inaudível "Estamos ferrados". A garota estava pronta para questionar a reação dos dois quando algo ou alguém entrou correndo desesperadamente no edifício indo ao encontro do vampiro e seu padrasto.
-Nós precisamos tirá-la daqui! AGORA!- a voz feminina berrou.
Scarlett cogitou estar delirando pois a mulher que seus olhos flagraram definitivamente não poderia ser real. O vestido longo de seda na cor creme estava maltrapilho, seu cabelo castanho sedoso e hidratado estava um pouco mais longo, na altura dos ombros , e mesmo sua pele, apesar de suja ainda era extremamente impecável e atemporal. E o olhar, ainda era o mesmo que a assassina se lembrava; Determinado e Imponente.
Donatella.
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Vocês imaginavam que era esse o destino da nossa assassina? Hahaha. Aliás, como vocês acham que ela foi parar lá? Rsrsrs. Galera que odiava o Phill, ainda estão ai?
Eu dividi esse capítulo em dois porque ficou MUITO extenso. Deu pra imaginar o lugar? Preparem-se, na parte dois teremos um pouco mais sobre o Purgatório e seus segredos. Beijinhos, espero que tenham gostado! ❤❤
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