Even
27/06/xxx3
Hoje é mais um dia comum. Comum. Eu saí do meu trabalho há algumas horas e agora estou estudando. Bem comum. Claro que, com a diferença que eu não conseguia mais me concentrar nos estudos. A neve se jogava contra minha janela continuamente, o cheiro da sopa que minha mãe fazia na cozinha enchia minhas narinas e atiçava meu estômago. A sensação de estar sempre em cima da hora, sempre atrasado, perdendo alguma coisa, não saía da minha cabeça.
Larguei o lápis em cima do caderno. No pior dos casos, eu ainda seria aprovado. Pior dos casos... Eu poderia largar tudo e viver de livros. Coloquei as mãos no rosto, a ideia soava idiota demais, como sempre. Eu escrevo, as vezes, mas ninguém nunca leria aquele lixo. Resolvi ir ao banheiro, lavar o rosto.
Olhei no espelho, mas só consegui encontrar um imbecil. Tá, não tanto, eu ainda era um bocado inteligente, ao contrário de alguns colegas, eu nunca havia repetido um ano escolar. Mesmo assim, sentia que meu tempo estava acabando. Meu cabelo estava grande demais, e eu tinha olheiras sobressalentes. Precisava fazer minha barba. Ah meu Deus, eu tô um traste.
Trinta minutos depois, eu já estava um pouco mais bonito, ou o quanto a minha cara deformada permitia. No fundo da minha mente, uma voz pedindo pra que eu não reclamasse tanto. "Tudo bem que você não tem uma boa relação com seu pai, muita gente nem tem pai". "Sua mãe vive uma vida passiva, como você, eu entendo. Mas muita gente nem tem mãe". Espera, o que quer dizer com vida passiva? — pensei comigo mesmo. "Você sabe".
— Eu não faço ideia... – falei em voz alta.
— Hein! – minha mãe exclamou, no fundo – Falou comigo?
— Não.
— Não fala assim com a sua mãe – 'Ele' falou, sua voz vinha da sala, parecia um pouco bêbado, pra variar.
Antes de mandar ele calar a boca, preferi só me enfiar no meu quarto. Não estava com fome mesmo.
Se acalma, poxa, fica tranquilo — pensei sobre o quanto podia estar pior. O pior dos casos... Acho que penso muito nisso. Desde cedo eu persegui uma vida mais segura. Ri enquanto deitava na minha cama. Segura... O mundo tá literalmente desmontando ao meu redor, sou privilegiado o bastante de viver numa área segura e boa do país, mas... Essa guerra acabou com a vitalidade de muitas áreas do mundo. Muita gente já morreu... Eu tenho culpa? Eu não fiz nada, eu não escolhi onde nasci. Claro que escolheria nascer onde nasci, só que essa não é a questão.
Resolvi parar de ficar pensando merda e coloquei minhas lentes Wix, minha mãe me forçava a estudar sem elas, dizia que no tempo dela ninguém tinha essa moleza. É, eles tinham Google no tempo dela também, mas não era ativado pelos hipersensores de uma lente que mudava os padrões de programação pra cada situação possível. Coloquei, uma em cada olho, e já percebi a diferença. As lentes faziam uma leitura do ambiente ao meu redor e corrigiam as cores para que não ficassem machucando os meus olhos, ela detectava os movimentos dos meus olhos, e meus impulsos elétricos do meu sistema nervoso, tentando estar sempre um passo a frente do meu cérebro. De alguma forma, ela era recarregada só por ficar em contato com meus olhos, e nunca se manchava. Eu costumava a passar um tempo estudando sua história e criação, mas eu esqueci completamente, porque já faz um tempão, não é tão interessante quanto parece. Só me lembro de uma coisa: As lentes Wix foram a maior invenção da humanidade, logo após a internet.
Apaguei as luzes e deitei na cama, as lentes se apressaram para dizer quem dos meus amigos estava online no jogo que ela já sabia que eu queria jogar. Bastou alguns movimentos de olho e certos padrões de pensamento, e a lente ativou minha conta padrão e entrou na rede online. Ao contrário do que os outros devem pensar, a rede online tem, no máximo, acesso de uns 50% de todos os usuários da lente. É muita gente? É, mas a maioria dos usuários não tem a capacidade nem de entrar na internet sozinho; tem muita gente burra por aí.
— David! – uma voz invadiu minha cabeça, era um amigo virtual meu que parecia estar sempre online. Sua voz veio direto ao meu cérebro graças a lente, aliás. Não sei como isso funciona, mas funciona.
— E ae, como vai? – disse baixinho, ainda bem que já havia calibrado isso, senão ele estaria me ouvindo tão baixo quanto eu estou falando.
— Tá pronto pra passar aquele maldito?
Suspirei, era a hora de imergir.
— Tô mais que pronto, rapaz.
***
Eu estava patinando, minhas pernas se moviam o máximo que podiam enquanto eu focava no meu objetivo.
Vencer a corrida.
A montanha de gelo em que eu corria havia sido projetada justamente para isso. Pistas de patinação no gelo corriam por toda sua extensão, descendo a montanha, onde vários competidores de diferentes partes do mundo corriam de maneira esportiva. Todos eles vestiam uniformes de seus países de origem, que consistia em uma roupa especial contra o frio que ia dos pés a cabeça, um capacete parecido com o de um ciclista, e um óculos escuro de realidade aumentada. O óculos servia mesmo para proteger os olhos, mas também dava uma limpada na visão de nossa lente Wix virtual. Era muito útil, principalmente porque as vezes acontecia de a neve voar nos seus olhos e atrapalhar o equilíbrio. Nenhum corredor tinha tempo pra se limpar enquanto guiava o corpo montanha abaixo a mais de 100kmph.
– David! Direita! – desviei meu corpo um pouco para a direita, desviando de um obstáculo alguns metros a frente – Esquerda! Esquerda! – lentamente, meu corpo se virava para a esquerda, onde a pista se abaulava, dando um pouco de impulso na curva.
– Cara, dá pra ficar quieto? – Eu disse, enquanto analisava as possíveis rotas de corrida sendo avaliadas pela lente Wix rapidamente – Não precisa mesmo gritar. Eu tô concentrado! Aquele bosta do Horseone não vai ganhar desta vez.
Eu disse, determinado, calmo. Na verdade, tentando manter a calma. Horseone disparava sempre na largada de alguma forma, e nenhum corredor tinha notícias dele até o fim da corrida. Não desta vez, agora ao menos eu conseguia ver seu rastro. Mesmo ele sendo do mesmo país que o meu, eu e meu amigo queríamos ser os ganhadores.
– Se mantém agora na esquerda, você vai pegar um puta impulso se girar naquele loop, vai cair na frente dele! – Richard, meu amigo guia, falava cada vez mais empolgado, mas agora ao menos sua sugestão era boa. Boa, mas arriscada.
Horseone estava bem na frente, mas nem ele tinha a coragem de pegar o Loop. Onde a pista fazia uma curva fechada em 360° para cima, como numa montanha russa, e um impulsor fazia o competidor voar até a linha de chegada. Com certeza era o último recurso para qualquer maluco que estivesse disposto a ganhar a qualquer custo. Bem, nesse momento, eu era esse maluco.
Preparei meu corpo e limpei todas as informações visuais da lente Wix que poderiam me distrair, dei outro impulso com o corpo e gritei durante todo o percurso do loop gigante. Por um momento, era como se eu estivesse voando. Os outros corredores, todos lá embaixo, perto da linha de chegada. Eu ri. Ninguém era louco de fazer o que eu estava fazendo.
– PRESTA ATENÇÃO, DAVID!
– Oi?
Perdi muito tempo olhando para trás, o impulsor já estava embaixo de mim. Me desequilibrei, meu coração acelerou. Agora eu ia voar de verdade!
– Aí, meu Deus! – quando passei por cima do impulsor, ele me jogou pra frente como se eu fosse uma mosca, e ele uma mão gigante me dando um tapa.
A inércia fez meu corpo ir para trás, mas minhas pernas voavam a uma velocidade que nem minha lente Wix conseguia discernir. Meu corpo girou, e eu estava gritando. Não conseguia enxergar a montanha, e nem nada, estava girando tanto que pensei que iria desmaiar.
– Puta merda, David! – Richard gritou no meu ouvido, mas até sua voz parecia arrastada pela velocidade em que eu estava.
Levantei minha cabeça para cima tentando recuperar o equilíbrio, lá estava a linha de chegada. Horseone corria, ele já havia me visto, estava com medo de que eu caísse em cima dele. Não que isso fosse uma escolha minha, mas, parando para pensar, seria até engraçado. Ele corria em ziguezague, corria e corria o tanto que podia, mas minha lente Wix calculou meu ponto de impacto. A notícia não era tão boa pro Horseone.
Tentei estabilizar meu corpo, fechei meus olhos. Só os abri novamente quando estava em cima de Horseone.
– Me desculpe, desculpe! – eu disse quase caindo na risada, enquanto me levantava e via ele me encarando como se eu tivesse matado a mãe dele.
– Desculpa?! Tá maluco porra? – sua voz estridente soou no meu ouvido.
Voz feminina.
– Calma, cara. É só um jogo – me aproximei para ajudar ele a se levantar. Ela. – Você é mulher? – Não que isso fosse tão ruim, mas, pensando bem, nunca havia considerado que poderia ser uma mulher, eu tava um bocado surpreso.
– Sossega, Jay! Foi um contratempo – ela olhou para o lado, respondendo alguém que provavelmente estava em conferência com ela naquele momento.
Por alguns instantes, eu havia ignorado que Richard gritava na minha orelha.
– Como assim Horseone é mulher? Tá falando sério? – ele parecia bem mais surpreso do que eu.
– Aparentemente – Ouço ele rindo como um retardado – Ela manda bem.
Horseone segura minha mão e se levanta. Seu corpo, com o uniforme correspondente ao meu país, era de um atleta patinador no auge, como o meu. O padrão. Mas sua voz era de uma garota provavelmente não tão velha. Era sempre bem estranho de se ver.
– Que foi? Tá se achando um merda por perder pra uma garota? – disse ela num tom meio ácido.
– Não! – coloquei minhas mãos para frente, acuado.
– Tá sim... – Richard sussurrou no meu ouvido.
– Olha só, eu ganharia essa corrida se não fosse você abusar do jogo. – ela se virou e ultrapassou a linha de chegada – Não me atrapalhe, nunca mais, tá ouvindo?
Dito isso, o atleta que ela controlava desapareceu, sem luzes, sem transições. Eu patinei devagar até a linha de chegada, enquanto refletia sobre o que havia acontecido. Com os outros competidores passando a minha volta.
— É por isso que eu não entro em jogos de velocidade, Rich – eu disse enquanto voltava ao Lobby principal da Rede, pra encontrar o avatar de Rich e dar nele uns tapas.
Ele já havia saído da conferência em que a gente estava e já esperava com seu avatar ostensivo no lobby. Richard era meu amigo virtual há anos, nunca chegamos a nos ver, mas já conversamos pra caramba. Mesmo morando na mesma região, ele disse que não fica muito a vontade com encontros na vida real. Não podia julga-lo, eu também não, e a maioria das pessoas também não.
— Você caiu que nem um animal naquele impulsor – ele disse, levantando a mão para me cumprimentar.
— As pessoas o evitam por algum motivo, não é mesmo? – respondi. Ele deu risada.
— Agora, Horseone ser uma mulher me broxou. – ele se sentou no banco de praça do Lobby público, que, aliás, parecia uma praça gigantesca, e balançou os cabelos de seu avatar.
Não era uma surpresa pra mim o que ele havia falado. Richard era gay, e foi bem legal ele assumir isso pra mim, só fortaleceu nossa amizade, disse que eu sou o único que sabe. Eu ri de sua decepção, ele já vinha falando de Horseone há um tempo, pareceu desapontado.
— Eu tava prestes a convidar ele pra tomar umas biritas. – ele disse enquanto eu sentava ao seu lado.
— Acho que eu vou voltar pra Sobrevivência. Velocidade não é pra mim – comentei, ele colocou a mão no meu ombro.
— Bora lá! Zumbi ou radiação?
— Battle royale.
— Eu sou pessimo nisso, cara.
— Tem importância não, só fica de olho nos flancos.
Ele revirou os olhos.
— Até quando você vai me fazer de suporte?
Eu sorri, eu o conhecia, ele não se importava nem um pouco em me ajudar, mas adorava um drama.
— Até quando eu quiser – respondi.
***
A Rede tinha milhões de jogos diferentes, que os desenvolvedores Wix lutavam para projetar e competir. Um gigantesco open source virtual, usando o modo de imersão da lente. Milhões de pessoas jogavam nos milhões de servidores que a Wix oferecia. E os jogos mais famosos, os mais disputados, apareciam até mesmo nas olimpíadas.
Os jogos eram divididos em muitas, muitas categorias mesmo. A maioria, é claro, quase nunca tinha gente jogando. O que a grande maioria gostava mesmo eram os jogos do Top 10. O jogo de patinação, por exemplo, estava dentro do Top 10 por ser o melhor simulador de velocidade aplicada em um jogo que existe. Havia muitos outros jogos da categoria Velocidade, mas ele era o mais realista e divertido.
Dito isto, o meu favorito, e o de mais de 97 milhões de pessoas mundo a fora, era Warkz. No primeiro lugar do Top 10, jogo mais acessado da Rede e também o mais almejado por jogadores profissionais. Um jogo de sobrevivência com vários estilos, sendo o oficial o Battle Royale. Sim, Todo mundo já deve saber o que é isso, mas vou explicar mesmo assim.
Battle Royale é a batalha extrema de sobrevivência, sozinho ou em bando. Era você e seu amigo contra todo mundo. Buscando recursos diversos: água, comida e armas. E eu descobri que tinha talento para isso. Profissionais ganhavam milhões em campeonatos pelo mundo, e eu almejava ser um deles.
Tá, não é tão fácil, mas eu não sou ruim. E, se você estiver lendo isso, faça-me o favor de não rir dos sonhos dos outros, certo?
Eu estava entrando no lobby particular de Warkz com Rich neste momento. Um salão bem grande, com uma gigantesca no fundo, sacadas e algumas cadeiras. Tudo para deixar o avatar confortável antes de teleporta-lo para algum lugar aleatório no mapa gigante do jogo. Eu olhei ao meu redor enquanto Rich já procurava um lugar para se estirar. Todo mundo checava suas roupas, adesivos e acessórios; Warkz era bem justo, nenhuma arma de fora do jogo entraria na partida, os avatares eram desequipados de sua arma antes de entrarem. Deixava alguns irritados, com suas armas ostensivas compradas ou ganhadas de algum outro jogo da Rede, mas eu e Richard estávamos nem aí.
— ... Seu lixo! – alguém gritou, perto de onde eu estava, até achei que tinha sido comigo. – Duo filho da puta!
Um avatar guerreiro medieval estava sendo segurado por alguém enquanto xingava outro avatar, que estava calado com a mão no rosto. Aparentemente havia levado um soco, mesmo não sendo uma área de batalha livre, levar um soco nunca era agradável. E o pior, estava sendo acusado de Duo, ou seja, alguém que duplica a Lente Wix pra própria vantagem, permitindo que mais de uma pessoa controle o avatar. Se usar isso bem, da pra vencer qualquer jogo — um avatar com o poder de dois jogadores ao mesmo tempo é quase invencível —, mas se for descoberto, além de banido é excomungado da sociedade da Rede para sempre. Basicamente.
— Calma ae cara – Rich se levantou, ele era da paz sempre, queria separar qualquer briga – Como você sabe que ele é um Duo? – perguntou, apontando pro avatar que o olhava com indiferença.
O acusado deu as costas para Richard e se aproximou de mim distraído, enquanto o guerreiro acusador desferia várias acusações. Ele parecia não se importar e não querer briga, então o guerreiro ficou mais calmo.
Brigas em lobbys de jogos de sobrevivência não eram tão incomuns assim.
— Acho que não deveria fazer isso, Jay – uma voz feminina sussurrou do avatar acusado. Eu já havia ouvido ela.
— Horseone? – eu perguntei, queria ser amigável porque aparentemente ninguém mais estava sendo.
Ele — ou melhor, ela — olhou para mim confusa.
— Me desculpa ter caído em você na patinação, não era minha intenção, eu juro. – estendi a mão – Eu sou DaviGoliah – disse meu apelido – Me adiciona na sua lista de amigos, você é muito boa em velocidade.
— Ah, tá... Okay, obrigada. – ela sussurrou, quase como se não pudesse falar. Fechou os olhos com força de repente, eu olhei sem entender. – Desculpa...
Não sabia se era comigo, se eu havia feito algo de errado, então só acenei de volta. Nesse momento, o portão principal do salão abriu.
O jogo iria começar.
— Quando eu te ver lá fora, eu não vou atirar, invés disso, vou gritar seu nome – ri, de tão bem eu fazia o papel de pessoa amigável – Vamos matar esses lixos juntos!
Ela me olhou com um misto de confusão e apreensão, e então, desapareceu.
E eu também.
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