Capítulo 39
8995 Palavras
A poucos segundos deixei Nicole para trás, e agora avanço pelo céu, seguindo em direção a intensa onda de vento de momentos atrás. Conforme avanço, percebo como a energia presente aumenta constantemente, por isso sei que estou na direção certa.
E caso não conseguisse sentir a energia presente, poderia deduzir isso pela grande quantidade de fantasmas pairando por aqui. Eles estão imóveis, ignorando minha presença por completo e nem ao menos tentando me seguir.
Procuro correndo meus olhos pela mata escura, mas não encontro sinal algum da responsável por isso, quando percebo um foco de luz não muito longe, mais acima nas montanhas. Parece ser a luz de uma fogueira.
Pelo visto, Eleonor não foi para muito longe, mas foi bem alto.
Vou me aproximando, vendo que o local onde ela se encontra é uma grande clareira em um dos pontos mais altos da montanha.
Aqui existe um tipo de altar de pedras cinzentas, um círculo com um pentagrama desenhado e incontáveis símbolos estão presentes, cinco pilares altos em cada ponta da estrela, e no centro do altar, existe um espaço vago onde uma enorme chama queima intensamente.
Ocupando uma das extremidades do pentagrama, a bruxa mãe está com suas mãos unidas frente ao busto e mantém seus olhos fechados, realizando o que me parece muito um rito religioso. Nas demais extremidades, estão presentes algumas orbes, flutuando e irradiando energia de algum objeto em seu interior.
Com cautela me aproximo e toco o chão fora do altar, dissipando minhas asas e observando a mulher, que neste momento está de costas para mim.
Estou cansado. Muito cansado. E neste momento estou muito fraco. Com muita dificuldade consigo manter meus olhos abertos e permaneço de pé, quando o que meu corpo mais quer é ceder. Por isso, tenho certeza que esse confronto não será nem um pouco fácil.
E é isso que me deixa mais empolgado. Essa situação e tal perigo faz meu coração bater com tanta intensidade, que finalmente sinto a emoção de estar vivo ardendo em meu peito.
- Você veio, como o esperado. – Ouço ela dizer, sem se virar. – Estava me perguntando quando você iria chegar.
- Demorei demais para chegar. – Respondo de imediato, sem ousar me aproximar. A energia dela está muito diferente, está muito maior do que da primeira vez que a vi.
A mulher solta uma risada curta, e seus braços caem em volta do corpo. Devagar ela vira até ficar de frente para mim, e o que consigo ver é apenas sua silhueta em frente à chama, ocultando os traços de seu rosto.
- Pelo contrário, você chegou no momento exato. – Ela responde.
É impressionante como me sinto nervoso diante dela. Sua presença está muito mais intimidadora agora do que já esteve antes, parece até mesmo outra pessoa.
As chamas se agitam de repente, e por um instante, tenho a impressão de ver uma figura imensa tomando forma dentro das chamas atrás da bruxa. Uma silhueta possuidora de asas e uma auréola... Será que...?
- Chegou a tempo de presenciar o meu maior ritual. – Eleonor diz, erguendo suas mãos lentamente, e como se obedecessem sua vontade, as chamas crescem ao céu de uma vez, transformando a chama num gigantesco pilar flamejante, que se expande continuamente nas alturas. – O ritual que me tornará uma das bruxas mais poderosas desta existência.
Os vários fantasmas ao redor aproximam-se da grande chama, como se fossem moscas atraídas por uma luz forte, e percebo que todos os espíritos mais ao longe começam a vir em nossa direção.
Ao centro de todo esse evento, Eleonor mantém sua postura imponente e repleta de poder, da mesma forma de quando a vi pela primeira vez. A alta sacerdotisa causadora de tudo isso se porta como uma verdadeira rainha.
- Impressionante, não acha? – A mulher comenta, e volto meu olhar a ela. Sua atenção está voltada aos vários fantasmas pairando ao redor da chama – Tantas almas, tantas pessoas... Todos à minha mercê, prontos para serem consumidos.
- Todas essas almas pertencem as pessoas das vilas? – Pergunto observando os vários fantasmas presentes.
- Sim, mas nem mesmo a metade chegou ainda. – Ela solta uma risada. – Até o alvorecer do próximo dia, muito mais almas virão até aqui para me alimentar... E seus corpos vazios se tornarão os leais servos do meu Coven.
Observo atentamente tantos espíritos presentes – Impossível. Isso é demais para você absorver sozinha, seu corpo não irá resistir.
A mulher solta uma gargalhada, ficando de costas para mim. – Talvez, mas tenho algo que irá me ajudar a absorver todos...
Observo a mulher abaixando suas mãos, e obedecendo seu comando, as chamas recuam novamente, batendo no chão de uma vez, espalhando uma onda de fogo sobre o altar.
Ainda de costas, percebo que Eleonor desce lentamente parte de seu vestido, a ponto de deixar suas costas livres, onde linhas avermelhadas surgem, e brilham em sua pele – E agora, você terá a honra de ver o segredo que guardo em mim.
Um imenso par de asas são abertas de uma vez, sua plumagem dourada com vermelho cintila com a luz do fogo e emanam seu próprio brilho, dourado, impuro e selvagem como as chamas atrás de si, enquanto que algumas penas levemente brilhantes surgem no ar junto a partículas brancas que voam pelo ambiente. E lentamente, uma pequena auréola de chamas igualmente douradas se forma acima da cabeça de Eleonor.
Surpreso com a presença e o poder emanado, capaz de fazer meu corpo inteiro tremer, observo a mulher com um sorriso empolgado no rosto. Isso está ficando bom. – Agora entendi seu segredo... Você tem um demônio selado em seu corpo.
- Exatamente, minha cara Cria do Abismo... O ódio que guardo contra o anjo que destruiu minha vida me fez tomar tal decisão. Indo contra todos os ensinamentos do meu antigo mestre, fiz um pacto com um dos demônios do inferno, para poder esmagar o maldito celestial que arrancou tudo de mim! – Me responde e num bater de asas, a mulher ascende para acima das chamas, que reagem em obediência e servidão. Virando-se lentamente a mim, a vejo erguer uma mão – E quanto a você, o mais poderoso do Abismo, será o primeiro que irei consumir. Contemple o poder da bruxa mãe!
Percebo várias flores crescendo pelo chão ao meu redor, cobrindo completamente todo o chão da clareira. A única coisa em comum entre elas, é que todas são consideravelmente grandes e estão bem altas, a ponto de chegarem na altura da minha cintura, e também as diversas linhas vermelhas que crescem em suas pétalas.
Acho estranho tantas flores surgindo de uma vez, além do forte aroma presente no lugar.
Tento avançar um passo, porém meu corpo não reage e o sinto muito pesado, de forma que me desequilibro e acabo de joelhos.
Meu corpo não reage, e mal tenho sensibilidade do que acontece a minha volta. Parece até que estou sob o efeito de uma anestesia muito forte. Acho que entendi, todas essas flores são venenosas.
Observo a bruxa mãe pousando logo à minha frente, caminhando até mim devagar, enquanto passa a ponta dos seus dedos pelas várias flores presentes. E a cada toque, pequenas brasas surgem, subindo ao céu.
Já bem perto, ela se abaixa e com certa gentileza, ela segura meu queixo e ergue lentamente meu rosto, olhando bem nos meus olhos com um sorriso sereno. Somente agora, posso ver que a íris de seus olhos assumiram um tom âmbar intenso.
- Essas flores não são comuns. São trombetas de anjo. – Ela começa a falar, e sua voz está um pouco ecoada para mim – Naturalmente são flores tóxicas, e caso ingeridas elas causam efeitos de paralisia, confusão, alucinações visuais e auditivas e aumento intenso da frequência cardíaca... E enriquecidas com meu poder demoníaco, seus efeitos são intensificados, sendo mais rápidos e muito mais devastadores.
A mulher segura meu rosto com mais firmeza, e sinto algo crescendo em torno do meu corpo, com firmeza o bastante para arranhar minha pele e me prendendo assim que se firmam. Até tento me mover, mas meu corpo não responde.
- E a propósito... Não absorverei todos sozinha, deixarei diversas almas para minhas filhas desfrutarem. – Ela se levanta, caminhando novamente para o altar. – Se me permite, continuarei com o ritual.
- E por que quer tanto poder assim? – Questiono, observando enquanto ela retorna ao seu local em frente as chamas. - O que tem agora já não basta para lidar com o tal anjo?
- Porque...? – Começa com um tom de diversão – Quero proteger a mim mesma e as minhas filhas. E para isso, alguns sacrifícios devem ser feitos.
- Mas tantas pessoas? – Tento me soltar, mas seja lá o que está me prendendo, não se move nem um pouco.
- E qual o problema? – Ela vira-se para mim, e sua imagem dança com o fogo. – Entenda, eu nunca pedi por isso e nunca quis que as coisas fossem assim, mas você já viu como é este mundo, não é? Repleto de conflitos por motivos pífios. Pessoas odiando umas às outras pelo simples motivo de serem pessoas. Oportunismo, interesse, mentiras, ganância e violência... Este é um mundo podre, que exige que criemos oportunidades para nos protegermos, e devora impiedosamente todos aqueles que não são poderosos o bastante... E além disso... Existem seres muito perigosos vagando neste mundo, seres muito maiores que nós pequenos humanos, e esses seres são uma ameaça para minhas filhas.
A mulher abre suas asas, e as chamas a sua frente balançam com fúria e violência, de forma que labaredas sejam lançadas por todos os lados, caindo sobre algumas das flores, árvores, e também queimando alguns dos fantasmas mais próximos.
- Apenas faço o necessário para cuidar do que é importante para mim, e para isso, não me importo de usar e descartar pessoas que não ligam umas para as outras! Este é o papel de uma líder, e também de uma mãe! – Aperto o olhar a assistindo proclamar cada palavra com força, e cada vez mais as chamas se agitam ferozmente, queimando os fantasmas mais próximos. – Diga-me, Cria do Abismo, fazer isso é assim tão errado?!
Baixo meu olhar e não dou uma resposta a ela. Apesar de não concordar nem um pouco com o que Eleonor está fazendo, ainda assim encontro sentido nas motivações dela... Isso é, se suas motivações forem verdadeiras, e não uma máscara para uma busca irrefreável por poder.
Eleonor diz algumas palavras, mas na distância que estamos e na altura que ela fala, não consigo escutar muito bem o que ela está falando. Mas percebo que o ambiente ao redor começa a reagir lentamente ao seu ritual.
Uma brisa surge de repente, carregando o frio da noite junto do calor das chamas, além do aroma das várias flores espalhadas que dançam com o vento leve. A brisa é contínua, criando uma profunda melodia tocada pelas árvores, que sacolejam suavemente no alto.
Com as asas bem abertas, a mulher ergue seus braços num movimento suave, e vendo daqui, poderia dizer que ela está desfrutando da sensação que a natureza proporciona, quase como se fosse uma com ela.
Nesse momento, é impossível não confundi-la com um verdadeiro anjo... Um anjo amaldiçoado e completamente corrompido pelas chamas.
- Sei que não é justo. – Ela diz de repente, após uma longa pausa – Sei muito bem que não é justo e que na visão de muitos, o que faço agora é errado. Pessoas que não tem culpa alguma serão afetadas pelas minhas ações...
Solto uma risada – Pelo menos você sabe que não é algo justo.
- De fato, mas não faz diferença alguma. – Ela rebate de imediato – Pelas minhas filhas, e nossos objetivos, eu farei tudo que estiver ao meu alcance, usando todos que estiverem à minha frente!
Suas palavras continuam sendo ditas, e mesmo me forçando a ouvir, não consigo entender o que é dito por Eleonor. Entretanto, consigo perceber que algo começou a acontecer ao nosso redor.
O pentagrama desenhado no altar começa a brilhar, em pequenos pilares luminosos. As chamas voltam a se agitar e explodem ao céu em um novo pilar flamejante, ao mesmo tempo que as cores mudam do amarelo intenso para uma chama azul cinzenta.
Apesar da grande chama, começa a ficar cada vez mais frio. Um frio sepulcral que me faz recordar da sensação que tive em cada uma das vezes que fui atingido pelos fantasmas. Esse parece ser o frio da morte.
Encaro o que está prendendo meu corpo, e forçando meus olhos, percebo que são raízes de plantas. Tento forçar elas para me soltar, porém elas resistem, e na verdade, tenho a impressão de que elas firmaram ainda mais em torno do meu corpo.
Acabo notando também que a própria natureza está reagindo ao ritual. O vento está mais marcante, o aroma das flores mais forte. As árvores ao redor crescem cada vez mais, alcançando proporções imensas e densas coroas bem ao alto dos densos troncos. Flores crescem nas árvores, musgos se espalham e deles, esporos são liberados, flutuando lentamente no ar.
Percebo que toda essa natureza, apesar de extrema, bela e intensamente poderosa, não ousa se aproximar demais de Eleonor ou da chama, não sei se em sinal de respeito ou em medo a tal poder presente... Acredito que um pouco dos dois, julgando pela intensa conexão que a alta sacerdotisa tem com a natureza.
As várias almas próximas rodeiam a chama, e ao que vejo, repetem os movimentos feitos por Eleonor, e a bruxa mãe vira-se a mim, tendo agora um punhal em mãos. – Mais tarde, me desculparei com Nicole por roubar você dela.
- Não está brava com ela por ter me deixado escapar? – Arqueio uma sobrancelha.
- É claro que não. Entendo que não foi culpa da minha filha, ela fez tudo o que estava ao alcance. – Ela se aproxima, descendo do altar em passos lentos – Estou orgulhosa por Nicole ter trago alguém como você para nós, só é uma pena que ela não poderá cumprir com o ritual.
Um sorriso discreto me surge. Fico imaginando o quanto Nicole gostaria de ouvir essas palavras de sua mãe, e também sua líder. Certamente, faria o dia dela, por ser o reconhecimento que ela sempre quis ter.
- E por que fica triste? – Pergunto, a vendo cada vez mais próxima.
- Sua alma era para pertencer a ela. Já que foi Nicole quem o trouxe, ela quem deveria realizar o ritual e reivindicar seu corpo e sua alma para si. É a regra do nosso Coven e sinto-me mal por esta regra não ser cumprida desta vez, afinal Nicole merece. – O punhal é erguido devagar – Mas infelizmente, não posso mais correr o risco de deixá-lo livre. Por isso, tomarei a frente e farei o ritual eu mesma, e mais tarde compensarei minha filha da maneira como merece... Entregando sua alma a ela.
Solto uma risada encarando a mulher – Não será fácil como imagina...
Fecho meus olhos e, me concentrando em meu interior por alguns instantes, faço meu poder manifestar pela minha pele, e em segundos as raízes que prendiam meu corpo são partidas, permitindo com que eu volte a me levantar.
A bruxa me olha surpresa – Como conseguiu se soltar? Essas raízes estavam fortalecidas com feitiços e também essência infernal...
- Achou mesmo que simples raízes seriam o bastante para me conter? – Pergunto com um sorriso, tocando meu pescoço e me alongando – Peço desculpas por te decepcionar.
Olho ao redor por alguns instantes, dando alguns passos cautelosos na direção da bruxa mãe, que me observa atentamente. Passo minhas mãos pelas flores mais altas, sentindo as várias pétalas nos meus dedos, e sei que ela acompanha cada passo meu.
- Por que tantas flores? – Pergunto, erguendo meu olhar a ela. Aos poucos, vou liberando minha escuridão de forma suave que não afeta as flores. Lentamente a energia sombria vai se moldando ao redor do meu corpo.
- Apesar da essência demoníaca que habita meu corpo, antes de tudo sou uma bruxa. – Ela começa a explicar numa calma profunda – Meu poder vem tanto da natureza, quanto das almas e do ser que habita em mim... Entretanto, minha união com a natureza prevalece, acima de qualquer poder infernal ou divino.
- Entendo... – Respondo, enquanto as sombras continuam se moldando – É na natureza que está sua verdadeira essência, não é?
- Exatamente, meu caro. – Ela sorri de canto, sem deixar de me olhar. Consigo sentir uma certa ansiedade vindo dela, e enquanto abre suas asas, sua hostilidade cresce a ponto do ar ficar pesado – E agora, como vai ser?
Um novo sobretudo formado apenas pela energia sombria veste meu corpo, e nas minhas costas, meu par de asas de escuridão estão formadas. – Vamos descobrir agora.
Num bater de asas a mulher salta, e no mover de seus dedos, uma nova brisa noturna corre o ambiente, e um tipo estranho de névoa surge a partir das flores e toda natureza que me cerca. Uma névoa contendo o aroma das flores misturado ao das árvores, tendo também esporos e pólen das plantas, que em segundos faz meu nariz coçar, seguida da minha respiração prendendo.
As flores começam a emanar um forte calor, ao mesmo instante que suas pétalas ganham tons ainda mais avermelhados. Além disso, todo o pólen presente assume a mesma tonalidade, agora se assemelhando mais a fagulhas de fogo.
Já sei que ela tentará me dopar novamente, por isso abro minhas próprias asas e pulo, mas mal alcanço uma altura razoável quando uma forte luz surge na direção da bruxa, que me acerta com tanto impacto que sou lançado de volta ao chão, numa queda até suavizada.
Com os olhos cerrados, vejo a bruxa com suas mãos unidas, e delas, pequenos brilhantes podem ser vistos. Não sei o que é isso, apenas sei que cintilam repetidas vezes.
Levanto e esticando uma das mãos, concentro uma densa dose de escuridão e solto contra a sacerdotisa, que prontamente cria a mesma intensa luz de antes, não somente defendendo meu ataque, mas dissipando as sombras e vindo até mim, que me acertam num novo impacto ao qual sou capaz de resistir e me manter de pé.
A agressividade vinda dela cresce a cada instante, e as linhas vermelhas que vi surgindo em suas costas, agora crescem pela pele de seus braços, busto, e rosto, e a pressão presente fica ainda mais forte.
A mulher bate suas mãos e chamas surgem por entre seus dedos, e imagino que ela vai lançar uma nova onda de chamas contra mim. Entretanto, o que acontece não foi o que eu esperava.
Diversas raízes surgem do chão de repente, subindo pelas minhas pernas como serpentes frias, que me envolvem completamente. Assim que tento partir essas raízes como fiz com as anteriores, elas começam a emanar um brilho carmesim de seu interior, e imediatamente elas começam a me queimar.
Puxo um braço e depois o outro, giro o corpo partindo as raízes, porém outras novas crescem do chão e tornam a me envolver, até o instante que raízes maiores surgem e cobrem meu corpo, como se fossem um grande casulo.
Sem me conter e ignorando meu cansaço, crio uma onda de escuridão explosiva em torno do meu corpo, arrebentando todas as raízes que tentam me prender, e flexionando minhas pernas, pulo para longe do chão, evitando que novas dessas raízes tentem me prender.
Só que não tenho tempo para respirar, já que a iluminação avermelhada vinda da mulher só indica que mais um ataque está vindo, aproveitando da minha distração.
Ergo uma das mãos e deixo fluir o máximo do meu poder, na tentativa de conter as selvagens chamas que vem em minha direção.
Apesar da minha escuridão agir como uma parede que impede boa parte do fogo, ele é tão devastador que começa a atravessar minha defesa, a arrebentando em poucos segundos e me atingindo em cheio, e a dor que me atinge é muito maior do que eu esperava.
Aperto os olhos e meu corpo desaba novamente sobre as flores, e posso sentir meu corpo queimando por dentro. Ao me levantar, a mulher paira sobre mim, com uma mão apontada na minha direção.
Tento me erguer, entretanto as várias flores intensificam sua tonalidade avermelhada incandescente, e não leva um único segundo para eu entender que elas estão prestes a emanar fogo de alguma forma, e é isso que acontece.
Fagulhas incandescentes dançam ao redor, e rapidamente elas crescem e giram, transformando-se num grande turbilhão de fogo que envolve meu corpo num gigantesco pilar. É tão violento que sinto as chamas ferindo muito além do meu corpo.
Sem perder tempo, uso minha vontade para conseguir escapar do pilar flamejante que me envolve, me transportando para um local próximo.
O calor do fogo desaparece de imediato, e de forma brusca é substituído pelo frio da noite. Olho ao redor me orientando, e percebo ter ressurgido atrás da mulher.
Disparo rapidamente contra a bruxa, que já está com seus olhos voltados a mim parecendo até ter sentido minha presença, e reunindo meu poder entre meus dedos pronto para aceitá-la.
Apesar de ter ficado de frente para mim, a bruxa não consegue se defender a tempo, e minhas mãos acertam seu estômago numa explosão escura, forte o bastante para que seja lançada dentro da fogueira.
Tal como foi com as irmãs, terei que apelar se quiser ganhar de Eleonor.
Cruzo meus braços e aguardo, observando as pálidas chamas frias ao centro do altar. Sei que isso não foi o bastante e Eleonor logo levantará, e é isso que acontece.
Suas imensas asas douradas abrem por entre o fogo, e num salto, ela emerge das chamas. Aproveito para analisar a sacerdotisa, e confirmo que único dano presente são em suas roupas chamuscadas, porém ela está ilesa.
Erguendo sua mão direita e apontando o indicador a mim, uma luz avermelhada surge, onde ela começa a desenhar um símbolo no ar.
Avanço contra ela, na tentativa de impedir seja lá o que ela está fazendo. Mas ela é mais rápida e, erguendo sua outra mão, o símbolo cresce intensificando seu brilho, desaparecendo no ar, e imediatamente o mesmo brilho surge à minha volta e sinto como se meu corpo inteiro atingisse uma parede.
Olho para o alto e percebo que o símbolo ressurgiu bem acima de mim, abaixo dos meus pés existe um mesmo símbolo, e entendo que isso é um feitiço para selar meus movimentos.
- Fique aí por um momento... Tenho algo a fazer antes de continuarmos. – Eleonor diz e recua devagar, se posicionando logo acima da fogueira.
A mulher estica uma de suas mãos bem acima da cabeça, e estica a outra frente ao ventre. Seus olhos fecham, e numa suavidade fora do comum, ela move seus braços, desenhando um círculo com as mãos que agora inverteram suas posições.
Assisto ela prosseguindo, desenhando mais e mais símbolos com suas mãos. Formas que, conforme ela desenha, mais o frio gélido da chama se intensifica, ao mesmo tempo em que os vários espíritos próximos reagem, rumando para dentro do fogo, que lentamente incinera seus corpos espectrais, até que sejam completamente consumidos.
Tento me libertar de alguma forma, ao passo que a bruxa estende suas mãos, aos lados e um forte brilho branco surge em ambas.
A luz nas mãos da bruxa atrai o que parecem ser os resquícios das almas que permaneceram dentro da chama, e imediatamente esses resquícios são puxados para as mãos de Eleonor.
Seus dedos se fecham e uma explosão ocorre, em uma onda que sinto atravessar meu corpo. A força que sinto vindo de Eleonor agora é maior que a de instantes atrás, o brilho dourado de suas asas se intensificou junto com a luz de sua auréola. Já nem mesmo parece ser a mesma pessoa.
Ela me olha com um sorriso, satisfeita com o próprio resultado – Podemos continuar. O que está esperando para sair daí?
Olho para o feitiço que me prende, tocando a barreira ao meu redor com uma das mãos. Ela reage imediatamente, me impedindo de qualquer ação, e se eu atacar de formas normais, creio que não conseguirei sair.
Não tenho outra opção.
Minha vontade é romper essa barreira que me rodeia.
Afasto minha mão e, apenas com o indicador torno a tocar a barreira, que dessa vez se parte sem a menor resistência.
Tenho o olhar da sacerdotisa em mim, que não parece nem um pouco incomodada por eu estar livre novamente. – Por que não aproveitou a chance para realizar o ritual em mim?
- Não pense que não cogitei isso, é o que quero... Mas ainda não é a hora. Ainda tem poder demais, e pode resistir ao ritual. – Ela ergue as mãos, e novos símbolos surgem à sua frente.
A mulher abraça a si mesma, e logo a desfaz o abraço de uma vez. Ao fazer isso, os símbolos esvanecem no ar, e algo começa a acontecer por todos os lados.
Em muitos pontos diferentes, pilares luminosos aparecem repentinamente, lançando sua luz em direção do céu, e da ponta de sua luz, algo vai surgindo.
Ergo meus olhos, assistindo imensas linhas formadas por incontáveis runas se moldando no céu noturno. No instante em que as imensas marcações se completam, uma intensa luz se manifesta no horizonte, bem na direção das vilas.
- O que você fez? – Questiono.
- Apenas continuei o ritual. – Responde, e erguendo suas mãos na minha direção, a mulher gira seus dedos e um som irritante começa logo abaixo de mim, e uma nuvem escura surge do chão. – Depois de mais de um ano de preparação, este feitiço finalmente poderá ser realizado.
A nuvem fica cada vez mais alta e, ao estar próxima o suficiente, entendo que o som é um zumbido, e essa nuvem é formada por incontáveis insetos que emergem continuamente do chão.
Estendo os braços e libero uma onda de escuridão, densa o bastante para impedir o avanço dos insetos. Alguns poucos conseguem escapar, mas não é nada que realmente seja um incômodo.
O que realmente está me incomodando é essa luz vinda das vilas. Não sei o que Eleonor fez, mas certamente não é uma coisa boa. E para piorar, ela segue fazendo seu ritual ao mesmo tempo que me enfrenta, imagino que estou ficando sem tempo.
Não sei se forçar meu poder da vontade agora renderá algum resultado. Já usei demais desse poder e meu corpo está fadigado, então muito provavelmente será meu último ataque antes de desmaiar e cair em mais um dos meus pesadelos... E no caso de eu conseguir me manter acordado, ainda assim estarei muito vulnerável a ela.
Não posso usar esse poder a esmo. Se for preciso usar minha vontade mais uma vez, devo usar dedicando toda minha força, para que seja algo definitivo.
Novos ruídos começam, desta vez o mesmo zumbido vindo de todas as direções. Corro meus olhos ao redor, constatando os incontáveis insetos vindo por todos os lados, e antes que me alcancem, libero minha aura de escuridão por mais uma vez, tendo força o bastante para desfazer todos os insetos mais próximos.
Parecendo até entender o efeito da minha aura, todos os demais insetos passam a voar ao meu redor, tapando tanto minha visão quanto me impedindo de ouvir qualquer coisa que não seja esse alto zumbido. Até tento procurar por uma brecha, mas são tantos que não é possível enxergar um palmo de distância.
Disposto a não perder tempo, expando minha aura cada vez mais, e forçando meu corpo, causo uma intensa explosão que varre todos os insetos para longe.
Entretanto, eles tornam a se reunir e voltam na minha direção. Nesse curto instante, percebi a bruxa parada, com suas mãos unidas e olhos fechados.
A nuvem torna a me envolver, só que dessa vez não tenho defesa alguma envolvendo meu corpo, então além do zumbido extremo, agora tenho que aguentar essas coisas passeando pelo meu corpo.
Isso já me irritou o suficiente. Sem precisar focar em nada, reativo minha vontade, para que quaisquer insetos que existam nas proximidades sejam destruídos. E de um segundo ao outro, é exatamente isso que acontece.
Uma onda percorre meu corpo e o cansaço vem, e ao mesmo instante, uma onda se projeta ao redor, e todos os incontáveis insetos são, além de arremessados para longe, rasgados em vários pedaços que desabam continuamente no chão florido em uma suavidade silenciosa.
Algo chama minha atenção no céu, e erguendo meus olhos, percebo o que são várias almas reunidas neste lugar. Um número muito maior do que havia momentos atrás, a qual chega até mesmo a ser surpreendente.
Ao centro do altar, Eleonor paira suavemente. Seu cabelo e seu vestido voam com a brisa, suas asas estão bem abertas e emanando o brilho dourado que se destaca por entre as sombras da noite, e crescendo de suas mãos e espalhando pelo seu corpo, símbolos e mais símbolos, que mais se assemelham a letras, estão presentes.
Foi tudo apenas uma distração.
Estou levemente ofegante, cansado por ter usado o poder da vontade por mais uma vez, a qual acredito ter sido a última. Dessa vez é certo, se utilizar esse poder para algo grande mais uma vez, acabarei desmaiando.
Quando estava recuperado, até poderia arriscar anular o poder de todas as bruxas da família, poderia fazer isso e resolvido tudo em instantes... Mas caso optasse por esse caminho, seria levado ao limite e não sei quanto tempo ficaria sem meus poderes, nem quanto tempo ficaria desacordado... E cair novamente nos meus tormentos, só que sem hora pra voltar, é algo não quero fazer.
A mulher ergue suas mãos, e ao momento que as chamas se elevam ao céu num gigantesco turbilhão flamejante que envolve todo o lugar, as diversas almas presentes são sugadas, girando em torno do turbilhão numa intensa velocidade, até percorrerem em torno do corpo da bruxa que os absorve continuamente.
O mais inacreditável é que, por mais que ela esteja absorvendo tantas almas, mais e mais continuam chegando sem parar, de todas as pessoas que habitam as três vilas.
Volto minha atenção a bruxa e disparo para um ataque direto, envolvendo minhas mãos com o máximo de trevas possível. Ela, vendo meu avanço, une suas mãos frente ao corpo, e imediatamente uma intensa corrente de vento se inicia a sua volta, impedindo com que eu a atinja.
O vento se expande de forma que meu corpo é lançado para trás, e por muito pouco não perco meu equilíbrio ao atingir o chão. Foco meu olhar na bruxa, entretanto, ela já tem uma mão erguida na minha direção, e girando seus dedos ao alto, uma corrente de vento ardente me envolve a ponto de me tirar do chão e fazer com que eu caia sobre as flores.
Ergo meu rosto para a alta sacerdotisa enquanto me ergo devagar. Ela está com suas mãos erguidas, e as poucas almas que restavam, estão envolvidas no turbilhão, e avançam até Eleonor, que as absorve rapidamente.
O intenso turbilhão se desfaz, restando apenas a fogueira no altar, e um céu aberto, repleto de estrelas e o profundo brilho do luar. Não somente isso, não existe mais alma alguma no céu.
- Você... Absorveu todos? – Pergunto surpreso, encarando o céu que agora não possui mais nuvem alguma.
- Sim, todas as almas agora estão dentro do meu corpo... Logo chegarão as almas de mais pessoas. – Ela sorri satisfeita, lentamente tocando seus pés no altar com certa graciosidade, fechando suas asas devagar. – Impressionante que ainda assim, você tenha resistido ao ritual. Mas agora já chega!
Eleonor aproxima suas mãos do rosto, e ambos os pentagramas que tem tatuado em suas mãos começam a brilhar, seguido pelo brilho da pedra que a mulher carrega no colar em seu pescoço.
Uma esfera com tons azulados com vermelho surge bem a sua frente, e num movimento rápido a alta sacerdotisa aponta sua mão ao alto, e a esfera acompanha seu movimento imediatamente, parando bem acima de mim.
Raios vermelhos surgem na superfície da esfera, e imediatamente se projetam na minha direção. Ergo meus braços na tentativa de me proteger dos raios antes de ser atingido, mas os sons e as luzes me fazem notar algo.
Os raios não me atingem, mas sim atingem e percorrem o chão ao meu redor, criando um imenso símbolo no chão. Não é um pentagrama, é algo diferente disso, mas ainda é uma imensa esfera com diversas linhas e escritas que não consigo identificar.
Serpenteando pelo chão, os raios vem até mim e sobem pelas minhas pernas. A luz da esfera se intensifica, e por todos os lados, os raios se tornam ainda mais violentos, emitindo um brilho avermelhado muito mais forte, e sem que eu consiga escapar, uma imensa explosão elétrica acontece, envolvendo completamente meu corpo.
A intensidade aumenta de repente, e toda a corrente elétrica invade meu corpo de uma vez. Uma descarga tão intensa, que meu corpo sofre um tranco repentino, o calor invade minha pele e tudo se torna estranhamente conturbado, e apenas alguns segundos se assemelharam a arrastadas horas.
Meu corpo cede e acabo de joelhos, arfando sem parar. Apoio um braço no chão chamuscado, meus olhos ameaçam fechar, e já enxergo tudo embaçado. Mesmo assim, sei que flores tornam a crescer onde os raios acertaram.
As dores recaem em mim, de maneira que são tão enlouquecedoras que mal consigo raciocinar direito.
Tenho a impressão de ouvir algo se aproximando de mim, mas sequer consigo erguer meu rosto ou meu olhar. Estou fraco demais, e estou me sentindo exausto.
- Ferido desse jeito, não tem como você continuar resistindo ao ritual. – Ouço a voz ecoada da bruxa mãe. Ao que parece, ela também está arfando de cansaço – Você resistiu muito bem, mas agora é a hora definitiva. Tomarei sua alma.
Mesmo com meu corpo sem força alguma, e sem saber como ainda permaneço vivo, dou um sorriso. Um largo sorriso, que carrega toda a empolgação por ser levado a tal limite, encurralado em uma situação desesperadora desta maneira e me encontrar em tal perigo.
Ir ao limite da minha vida, fazê-la arder ao seu ápice... Sim, eu gosto disso.
Me esforçando ao máximo vou me erguendo, sem deixar de sorrir – É o máximo que você consegue...? – Provoco encarando a bruxa à minha frente.
- Mas... Como...? – Eleonor pergunta – Como ainda consegue se levantar?
- Nem eu sei direito, mas minha "vontade" não me permite morrer tão fácil... Só que isso não vem ao caso – Respondo endireitando minha postura com dificuldade. E mantendo meu sorriso, ergo uma mão, chamando Eleonor com o indicador – E então Eleonor... Não vai tentar tomar minha alma? Pode vir...
Manifesto o pouco poder que ainda tenho, fazendo com que as sombras envolvam meu corpo lentamente, preparado para lançar toda a força que ainda resta em mim sem me conter, e a minha frente, a alta sacerdotisa me encara com ar de espanto.
- Muito bem, se assim deseja, assim farei. Você de fato não é alguém comum, e muito me alegra tê-lo conhecido... – Ela ergue suas mãos, e o brilho de seu colar ressurge, junto com suas tatuagens que tornam a brilhar intensamente, e várias linhas surgem bem à frente da mulher – Mas agora, tomarei sua alma, e farei com que você sirva nosso propósito sob o comando de Nicole.
Forço minha energia ao extremo que posso, lançando tudo contra a alta sacerdotisa, que acaba de joelhos com a onda de escuridão que acabei de lançar, mas meu corpo inteiro dói demais e cesso meu ataque, me esforçando ao máximo para não ceder.
Apesar de não estar com força total, sei que consegui ferir seu corpo.
- Você já tem tantas almas para usar, e ainda quer usar a minha? – Questiono arfando, vendo a mulher se levantar – Quero ver você tentar.
- Mas é claro, irei usar pessoas... Homens, mulheres, adultos, crianças, culpados, inocentes, não importa quem seja, usarei todos que puder sem que tenham a menor possibilidade de se defenderem... Eu usarei todos para defender meus interesses e minha família, e trarei calamidade para todo esse país se necessário! – Eleonor assume um largo sorriso e junto a seu olhar intenso, suas asas douradas irradiam uma energia extremamente agressiva sem parar – E sabe qual o melhor, para expor a podridão deste mundo?! O fato que irei matar várias pessoas e trazer sofrimento a tantas outras, e ainda assim haverão outras pessoas que mesmo sabendo tudo que fiz, irão me aclamar como uma deusa!
- Como uma deusa? Quanta petulância. – Uma voz surge do céu de repente, ecoando com tanta pressão que mais se assemelha a um trovão de tão potente. Uma coluna de luz surge do céu, indo de encontro ao chão com força e calor extremo, e de dentro do pilar, uma silhueta se manifesta, a qual consigo sentir um poder gigantesco se manifestando, junto de uma calma e pureza imensurável – Sua arrogância apenas mostra como desconhece sua própria insignificância. Mostrarei qual seu lugar, pequena bruxa humana.
O pilar estoura de uma vez em incontáveis partículas de luz que cintilam e elevam-se ao céu, e de dentro dele, uma figura alada está presente. Suas imensas asas brancas estão abertas, manifestando um intenso brilho branco que o destaca nas sombras da noite, e sua inegável força pode ser facilmente sentida, tanto por mim, quanto por Eleonor.
A figura que não se parece nem um homem e nem uma mulher, mas sim, possui traços de ambos os gêneros em seu rosto e corpo. Seus cabelos são longos, o corpo é esguio e suave, os traços de seu rosto são delicados, e sua pele emana um suave brilho que representa sua aura divina.
- O que... Mas... Mas ele é... – Volto minha atenção para a bruxa, e a vejo com os punhos fechados, os dentes apertados e seus olhos tomados pela fúria que claramente cresce a cada segundo – Ion'Alia... O Maldito daquela noite...
- Eleonor, a jovem integrante dos bruxos rubros que escapou de mim. – o anjo diz com um sorriso sereno e muita calma – Você está crescida.
- Cale-se seu verme! – Ela responde enfurecida – Você arrancou tudo de mim! Destruiu as pessoas que me acolheram e foram minha família... Como ainda tem coragem de aparecer na minha frente?!
- Se não tivesse se escondido, teria compartilhado o mesmo destino e sido arrebatada junto deles. – Ele responde sem deixar de sorrir, porém a frieza de sua voz contrasta totalmente com sua natureza angelical e a serenidade de seu rosto – Mas peço que não se preocupe. A enviarei ao mesmo lugar que sua família de bruxos impuros se encontra... Deve ter sentido falta deles após todos esses anos.
Ion'Alia mantém seu olhar inflexível em Eleonor, e percebo como a bruxa está num intenso misto de nervosismo, com medo e ansiedade. Lentamente, ele volta seu olhar a mim, e de imediato sinto como se meu corpo acabasse de ser atravessado por uma lança invisível, e tenho completa noção do tamanho da ameaça que ele representa.
- Devo agradecê-lo, jovem humano. – Não entendo o que ele quer dizer, mas não deixo de encarar o anjo, que avança lentamente para Eleonor – Estive assistindo você enfraquecer a bruxa o suficiente, agora tomarei a frente desta batalha.
- Como é? – O anjo toca o chão e caminha até a mulher, me ignorando – Ei, espera!
- Cumprirei a tarefa que me foi dada naquela noite. Portanto, afaste-se! – Ele ordena, erguendo uma de suas mãos para Eleonor. Posso ver o olhar assustado da bruxa mãe, que recua um passo.
- Você não fará nada... – A alta sacerdotisa responde entredentes. O anjo se detém sem mudar sua expressão, e reparo como o ambiente começa a reagir a todo o poder exalado pela mulher – Eu esperei por toda minha vida por esse dia, que te faria pagar por ter acabado com minha vida...
Uma intensa ventania começa, extremamente quente e sufocante, que percorre todo o espaço onde nos encontramos. As chamas do altar enlouquecem e tornam-se muito mais violentas, as várias almas que pairam ao redor, mesmo distantes, ainda assim são afetados pelo fogo que consegue alcançá-los.
- Isso é... O calor das chamas do submundo? – Ion'Alia aperta os olhos.
- Você chama seus atos de arrebatamento... Mas o que vi naquela noite foi um extermínio sem sentido... – A mulher rosna, suas asas brilham juntamente da auréola sobre sua cabeça. Seu olhar está tomado pela ira, e o calor fica extremo. – Hoje é o dia que finalmente vou vingar toda minha família... Eu vou te fazer desaparecer!
Raízes crescem do chão, envolvendo o corpo do anjo com violência, sendo visível como apertam ao ponto de tentar esmagar seu corpo. Suas asas estão suprimidas e puxadas ao chão, e uma das raízes envolve seu pescoço e o puxa para trás numa clara tentativa de domar o anjo, que permanece impassível.
O mesmo feitiço que foi lançado em mim, agora circulam Ion'Alia, criando uma intensa aura ao seu redor que, se estou certo, está suprimindo ainda mais seus movimentos, ao mesmo tempo que fogo surge sobre o corpo dele, que logo se espalha numa grande chama que engole o anjo.
Entretanto, todos os feitiços são rompidos de uma vez, ao momento que Ion'Alia abre suas asas. Eleonor o encara surpresa, e sem titubear o anjo começa a avançar a ela em um caminhar lento.
Apesar de recuar um passo, a bruxa mãe junta suas mãos e as movendo depressa, o vento se altera bruscamente, criando uma intensa espiral que envolve o corpo do anjo como sendo uma prisão, que é facilmente rompida.
Ela tenta por mais uma vez, erguendo uma de suas mãos fazendo com que o vento ainda presente se altere outra vez. As flores se agitam e várias pétalas se desprendem, ascendendo ao céu num movimento rápido e voltam rapidamente para perto da bruxa, rodeando seu corpo sem parar.
Com a ponta de seus dedos, ela faz gestos aos quais o vento, e ao apontar seu indicador ao anjo, as pétalas se incendeiam e avançam como lanças contra Ion'Alia, que as recebe em seu corpo diretamente, resultando numa explosão carregada com o odor floral que antes me deu certo trabalho.
Não vejo nenhum sinal do anjo por entre a poeira, mas posso ver como Eleonor está respirando apressada, e seu olhar não esconde como está apreensiva.
Assisto a todo o embate, sem saber ao certo como intervir, ou se devo intervir. Essa briga já não é mais minha, sei que posso ir embora, mas ao mesmo tempo não quero apenas virar as costas e deixar este lugar.
Eleonor pode ter sido minha oponente até poucos minutos atrás e quase ter arrancado minha alma... Mas esse anjo não me passa confiança, e sim um estranho desconforto que não me parece um bom sinal... Não acho que estará tudo bem se ele vencer.
Toda a poeira é afastada numa forte onda de vento, revelando Ion'Alia que não sofreu dano algum. Suas asas destacam seu brilho branco das sombras da noite, sendo o único foco de luz além da fogueira que agora foi reduzida a uma pequena brasa.
Ion'Alia sequer muda seu semblante, e a bruxa está incrédula, vendo a figura caminhar e parar bem a sua frente – Já terminou sua última tentativa?
A observo recuar mais um passo, sem conseguir responder. Ela está ofegante, mesmo assim, os símbolos tatuados em suas mãos tornam a brilhar, e o fogo surge em torno do seu corpo.
- Muito bem. – O anjo ergue uma de suas mãos, e num instante ele avança até Eleonor, tocando seu busto e causando um forte impacto, que se espalha pelo lugar e faz com que as chamas se apaguem – Você está cansada demais, e nesse estado, não tem condições de me enfrentar...
Eleonor encara suas mãos repetidas vezes, e por fim volta a olhar o anjo. É nítido o pavor no rosto da bruxa, que agora mal tenta se afastar.
- Desista e aceite sua morte. – Ion'Alia proclama sorrindo calmamente, e um novo pilar de luz surge em torno da mulher, que tem seu grito abafado pelo zumbido causado pelo ataque.
No alto do pilar, algo emerge. Da mesma forma que ocorreu com aquela fantasma gigante, incontáveis feixes luminosos surgem, escapando para o céu e percorrendo por todos os lados, sem se afastar demais de onde estamos.
Ele está forçando todas as almas absorvidas para fora do corpo da bruxa?
A luz cessa e o pilar se desfaz, restando apenas a bruxa de joelhos bem no meio. Ela está ofegante e sequer tenta se erguer, e percebo o anjo tornando a se aproximar dela.
Quando bem próximo de si, Eleonor ainda tenta atacar, envolvendo sua mão em chamas e a disparando contra Ion'Alia. Só que o mesmo se desvia do ataque dando um passo ao lado, e aproveitando da brecha, o anjo a empurra com um tapa, fazendo a bruxa se desequilibrar e bater contra o gramado bruscamente.
A bruxa mãe mal esboça reações, entretanto o anjo se abaixa e sem a menor hesitação ou piedade, a força a ficar de joelhos, a puxando pelos cabelos.
- Agora... – Ele ergue sua mão, e uma luz cintila entre seus dedos – É a vez do demônio que habita seu corpo.
Apontando sua mão a ela, seu poder intensifica. Partículas brancas dançam em torno da figura celestial, suas asas contornam Eleonor e a auréola brilha num intenso tom branco, e sem demora ele toca a auréola de chamas douradas da bruxa mãe.
Seu grito de dor ecoa forte no lugar, ela se debate violentamente tentando escapar, porém o anjo a segura com força sem sequer mudar sua expressão, chegando até mesmo ao ponto de puxar a cabeça da mulher para trás.
Assistir a isso me incomoda profundamente. Me sinto mal por Eleonor, e em momento algum imaginei me sentir assim por ela, e meu corpo está tentado a avançar para impedir isso...
Mas devo intervir? Até momentos atrás, ela era minha oponente, e queria me usar como sacrifício em seu ritual... Mas...
De repente uma aura avermelhada com preto surge ao redor da mulher. Uma aura semelhante a chamas, e dentro dessa aura, é possível notar uma silhueta saindo do corpo da bruxa.
Suas asas douradas vão se desfazendo aos poucos, tornando-se transparentes e perdendo plumas douradas que logo se dissipam no ar.
Uma explosão flamejante acontece ao ápice dos gritos, tão forte que sinto o impacto e o calor atravessando meu corpo, e preciso me firmar ao máximo para não ser arrastado para trás.
Ao fim da explosão, tudo que resta é Ion'Alia de pé, ainda segurando a bruxa pelos cabelos. Já ela, sequer se move, seus braços pendem ao lado do corpo, e seu rosto está baixo.
- Está feito. – O anjo proclama – As almas que roubou foram separadas de você, e o demônio que habitava seu corpo também foi retirado.
- Seu... Maldito... – Ela diz com a voz fraca... Fraca e embargada. – Eu... Vou te... Te fazer pagar...
- Não se incomode em tentar. Já disse que a enviarei para o mesmo lugar que sua família de bruxos rubros está, deveria ser grata a minha benevolência. – Ele mantém sua mão erguida, mas dessa vez sem manifestar poder algum – E com alguma sorte, poderá reencontrar o demônio que esteve com você por tanto tempo. Ele se deliciará brincando com sua alma e seu corpo, isso se permanecerem inteiros no submundo.
A mulher ergue seu rosto devagar. Seu rosto está molhado por lágrimas, e mesmo assim, ela encara o anjo com a raiva ardendo em seus olhos enfraquecidos e nos dentes apertados, e ver isso mexe comigo.
- Adeus, última bruxa rubra. – Ele diz serenamente, abaixando sua mão de uma vez.
Pra mim já chega.
Meu corpo se move mais rápido do que eu poderia esperar, e antes que o ataque atinja a bruxa, já estou parado ao lado do anjo, segurando seu braço com firmeza.
Ion'Alia me olha surpreso, com seus olhos um pouco arregalados, enquanto que eu devolvo o olhar com seriedade.
- Mas... – Ele começa a falar – Mas o que você...?
- Já chega. Ela já está praticamente morta, você arrancou tudo que ela tinha. – Digo com firmeza – A única coisa que ainda resta é um pouco de vida em seu corpo... Não irá ganhar nada matando Eleonor agora.
- Não recordo de ter pedido sua interferência, humano. – Ele diz, apertando seus olhos – Solte-me imediatamente.
- Já terminou sua missão aqui Ion'Alia. – Insisto impedindo que se solte, vendo como força seu braço. Sei que matará a bruxa caso o faça – Reconsidere e vá embora.
O anjo puxa seu punho bruscamente, e dessa vez ele consegue se desvencilhar, mas sua atenção não está mais na bruxa, e sim voltada a mim. Apesar da serenidade e suposta paz em seus traços e de seu sorriso suave, vejo um lampejo de agressividade no fundo de seus olhos.
- Seu estado não é muito diferente do desta bruxa rubra... – Ele diz me avaliando de cima a baixo por uma vez – Se insistir em interferir, terá o mesmo destino dela.
- Quer tentar a sorte? – Provoco sorrindo de canto. – Posso garantir que não será tão fácil como imagina.
- Cansado desse jeito, o que poderá fazer? – Ele ergue uma mão ao meu rosto com uma intensa luz já presente, mas já imaginando tal ataque, desvio me abaixando e aproveitando da proximidade, avanço um passo desferindo dois socos fortes em seu abdômen e girando o corpo rapidamente, lanço uma cotovelada que acerta em cheio a lateral da face do celestial, que recua com um pulo.
O anjo me olha incrédulo, com uma mão tapando o local atingido. Apesar de seu gesto, sei que não o machuquei em nenhum dos meus golpes, mas o desorientei apenas por acertá-lo.
Não vou conseguir manter uma luta contra esse anjo. Estou cansado e fraco demais, então é certo que irei perder.
Minha única chance é usar o poder da vontade, uma última vez, com toda minha força restante, para acabar com isso em apenas um único ataque. Se eu errar, é meu fim.
Olhando de soslaio, aproveito essa brecha para checar como Eleonor está. Me abaixo ao seu lado e trago seu corpo caído para perto de mim, mas apenas de tocar ela, percebo como ela não esboça reações. O que restava de vida nela já desapareceu.
E também, sua expressão tensa e as lágrimas que já secaram em seu rosto mostram que ela não partiu em paz. Apesar de tudo, me sinto verdadeiramente mal por Eleonor.
- Pelo que vejo... – Ouço o anjo falar – Minha missão foi cumprida.
Deito o corpo de Eleonor no gramado com cuidado e até certa gentileza, tocando sua testa e fechando meus olhos por um curto instante, logo reparando que as diversas flores que haviam antes, agora desapareceram.
Enquanto me levanto e encaro o anjo, reflito como a mãe das bruxas tinha uma conexão com a natureza bem mais forte do que eu imaginava.
- Cumpriu sua missão aproveitando do fato que Eleonor estava cansada por ter me enfrentado. – Alfineto dando um passo à frente.
- Isso não faz diferença, mas sim os resultados que obtive. Por que me dar ao trabalho, se já havia alguém o fazendo por mim? – Ele sorri como uma criança – Tudo que precisava fazer era aguardar o momento certo para tomar as rédeas.
- Um aproveitador, não fez nada e depois vai dizer que cumpriu a tarefa. – Alfineto novamente sem deixar de sorrir, e ele torce a boca – Desse jeito fica fácil cumprir com suas tarefas. Que belo pedreiro de obra pronta, em Alia?
Percebo como Ion'Alia franze levemente suas sobrancelhas após eu chamá-lo apenas de "Alia". Ele segue me olhando, mas não faz nada.
- Normalmente, eu o castigaria por seu desrespeito para comigo... – O anjo ergue sua mão, e suas asas abrem – Entretanto, meus superiores anseiam por notícias do cumprimento do meu dever. Por isso, partirei e o isento de sua punição.
- Quanta generosidade, sou muito grato. – Ergo uma sobrancelha.
- Antes de ir, quero te perguntar... – Ele me encara fixamente – O poder que manifestou enquanto lutava é a escuridão, estou certo? Por acaso... Você é aquele que chamam de "Cria do Abismo"?
- É como costumam me chamar. – Salto uma sobrancelha, e um ar de assombro toma a feição de Ion'Alia, que imediatamente recua um pouco.
- Como suspeitei. Você encaixa exatamente na descrição. – Ele aperta os olhos, e partículas luminosas surgem a sua volta lentamente. O anjo me encara e percebo como o ar torna-se denso e cada vez mais ameaçador, e sei que ele anseia por me atacar, contudo, ele bate suas asas e deixa o chão, e plumas brancas surgem de sua ascensão ao céu – Alguém como você não deve ser enfrentado sozinho.... Pois bem, tornaremos a nos encontrar em breve.
O corpo do anjo começa a brilhar com mais força, até que por fim ele desaparece em pleno ar como se nunca estivesse ali. Os únicos vestígios restantes são apenas pequenas partículas e algumas plumas, que se apagam conforme sobem ao céu.
Fico parado encarando o céu, e meu corpo continua tenso.
As dores incessantes recaem em mim, e não somente minhas pernas, mas meu corpo inteiro treme de cansaço, e sei que posso desabar a qualquer momento. Meu corpo fraqueja e sem forças, caio sobre os joelhos e apoio as mãos no gramado morto, arfando devagar.
Eu estou exausto, já não aguento mais.
Mas apesar do meu cansaço, eu não posso cair... Ainda existe algo que preciso fazer.
Encarando o céu, observo as diversas almas vagando em rumo por vários lados diferentes. Por entre as árvores ao redor, algumas outras vagam timidamente.
Todas se assemelham levemente aos fantasmas que minha irmã e eu enfrentamos, muitas características são iguais, porém essas almas são mais distorcidas, alargadas num estranho efeito que lembra um espaguete.
Por uma última vez olho para Eleonor, porém seu corpo já não está onde a deixei. Ela desapareceu, mas agora, não tenho tempo para pensar nisso.
Me concentro por longos segundos e deixo minhas sombras surgirem, moldando minhas asas devagar, e assim que estão prontas, pulo ao céu para encarar o horizonte.
O que vejo ao longe é o mesmo que encaro próximo de mim. Muitas almas vagando iluminando o céu com seu brilho, sem qualquer tipo de rumo. O ritual da Eleonor chegou muito perto de ser finalizado.
E apesar de ter sido impedida, agora as almas de sei lá quantas pessoas estão vagando sem um corpo e talvez sem um destino, e não sei ao certo o que pode acontecer se deixá-las dessa forma.
Acredito que ainda tenho poder o bastante para isso... Só que, estou ciente do que irá acontecer comigo depois que o fizer.
Não importa, não tenho outra escolha. Não deixarei as coisas assim.
Respiro fundo por uma vez, tentando me preparar para o que está por vir. Olho para o horizonte uma última vez, observando todas as almas vagando sem rumo, e erguendo meus olhos para o alto, observo as estrelas e a lua, enquanto o vento noturno abraça meu corpo suavemente.
Todas as almas aqui presentes, retornem aos seus corpos agora! Aqueles que tiveram suas almas tomadas esta noite, recebam-nas de volta!
As almas mais próximas reagem imediatamente, e todas as almas ao longe também parecem responder a minha vontade.
Todas começam a intensificar seus tons e seus movimentos mudam por completo, elas giram no ar e se direcionam as vilas, agora parecendo ter encontrado um rumo a seguir.
Parece que deu certo... Isso é bom...
Sinto que meu corpo já não me obedece mais, a exaustão me consome e não consigo mais sentir meus poderes, e apesar de não sentir mais o peso do meu corpo ou qualquer coisa, sei que estou despencando de volta ao chão.
O céu se distancia, meus olhos pesam e tudo passou a ser um grande borrão. Não sou mais capaz de mantê-los abertos... Estou cansado... Muito cansado...
Já não tenho mais forças...
Agora tudo que me resta...
É cair na escuridão, e afundar nos meus pesadelos...
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