eighteen. already gone
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As ruas encontravam-se silenciosas, poucos murmúrios trocados era entre os illyrianos que tornaram-se responsáveis pela fiscalização dos portais de teletransportes, um feitiço tão antigo quanto a própria Prythian é o que Kirk explicou brevemente antes do plano ser posto em prática, seus olhos enevoados fixos nos arranhões que Cpretus deixava pelo assoalho conforme passeava, agitando-se quando provocado por Zion. Em suas costas, feéricos carregavam alguns de seus muitos pertences e desapareciam numa espécie de névoa fluante que rondava as paredes dos prédios mais próximos da avenida principal, levados diretamente para algum dos inúmeros palácios ao redor da Cidade Escavada.
Trajado com um casaco que cheirava a neve e um par de luvas feitas de couro illyriano, June continuava sentado nos degraus da mansão, fitando o movimento da rua através da porta que se mantinha aberta, aguardando pelo retorno de Zion para que pudessem enfim encontrar Ludovik em um dos palácios, o qual o Mestre-Espião iria observar até o início definitivo da guerra. Circulando o pescoço cheio de escamas pertencente a Cpretus com uma careta desgostosa, Jolly pragueja baixinho sobre o quanto a criatura havia crescido num período tão pequeno de tempo, chegando a ultrapassar até mesmo o próprio guerreiro e, em sua mente infantil, June poderia facilmente imaginar Demetria montava em Cpretus, ordenando que as três cabeças cuspissem fogo sobre Hybern com fúria.
O menino suspirou, abraçando ainda mais sua mochila. De repente, tornando-se consciente demais do que estava por vir. June continuaria nos palácios sob a proteção de inúmeros feitiços enquanto sua família estaria no campo de batalha, arriscando as próprias vidas. Ele passaria dias sem a presença daqueles que haviam o acolhido, sem ouvir as histórias de Zion sobre os guerreiros bastardos ou Ludovik esforçando-se para ensiná-lo a jogar xadrez, sem presenciar o cintilar dos olhos curiosos de Demetria. Estaria completamente sozinho, tal pensamento o atormentou.
─ Por que temos que ir embora?─ Ele se vê questionando após um longo momento no mais completo silêncio. Franzindo levemente o cenho, Jolly aproximou-se, as botas pesadas chocando-se contra o piso de madeira num som que June aprendera a encontrar conforto. Cpretus moveu suas cabeças, uma sibilando para a outra.
Os olhos cruéis carregavam suavidade quando estendeu uma mão, acariciando os cabelos escuros do menino.
─ Precisamos proteger nosso povo.─ Fala, abaixando-se para se apoiar em um único joelho, fitando as orbes avelãs.─ E não estamos indo embora, não definitivamente. Isto é para evitar que o passado se repita.
Jolly não detalhou, mas June entendeu. Era um plano visando evitar um cenário parecido como aquele que havia sido responsável por ceifar a vida de seus pais durante a batalha contra Keir e sua tentativa de assumir o controle da Cidade Escavada mais uma vez.
Ele balançou a cabeça, indicando que havia entendido. O mais velho esticou os lábios, sorrindo ao sentar-se ao lado do menino.
─ Se chama retirada estratégica.─ Jolly desliza um dedo pela madeira do piso, formando um círculo.─ É o recuo do exército para enganar o inimigo e refazer os planos de vitória, apenas os guerreiros mais corajosos utilizam essa jogada numa guerra.─ Ele empurra levemente com o ombro, causando uma risada do mesmo.─ Um dia, te ensinarei quando...
─ For um guerreiro.─ June sorri, complementando.
Ambos trocaram sorrisos cúmplices. E mais uma vez, o menino afirmou para si que sentiria saudades desses momentos, das promessas guardadas para um futuro não muito próximo, da companhia de Jolly que é uma constante em sua vida desde o momento de sua adoção e das histórias contadas por Kirk sobre uma época em que os feéricos ajoelhavam-se diante de deuses até uma mortal derrotá-los. Ele havia perdido seus pais, mas ganhara Jolly e Kirk que o apresentou para a família que construíram ao longo dos anos. Demetria, Ludovik e Zion...
June rezou pela vitória sobre Hybern. Assim, estaria nos braços daqueles que amava o mais rápido possível naquela cidade que exalava esperança.
─ Não fique assim, garoto. ─ O guerreiro depositou uma mão pesada em seu ombro.─ Em breve, Zion chegará e você estará seguro. Ludovik vai estar esperando os dois no Palácio das Estrelas.
Havia uma mensagem em sua voz. "Você nunca estará realmente sozinho" é o que Jolrien parecia querer dizer e June piscou os olhos, aceitando prontamente a resposta.
─ Demetria também?─ Ele murmurou, um fio de esperança atiçando seu peito.
─ Nossa Grã-Senhora ─ June encolheu os ombros. Às vezes, era difícil desassociar a imagem da pequena fêmea que lhe entregava um dos melhores abraços do mundo daquela fêmea que carregava o poder de toda Corte Noturna.─ está garantindo que tenhamos uma vitória definitiva.
─ Não fique preocupado, June.
A voz de Kirk ecoou junto de seus passos quando cruzou a sala, os olhos inexpressivos escorregaram por todo o ambiente, parecendo
avaliá-lo cegamente ao escorregar uma mão para a espada presa à sua cintura. Ele esticou os lábios num sorriso quando voltou-se para o menino illyriano.
─ Estaremos juntos antes do próximo solstício.
O menino animou-se rapidamente. Kirk aproximou-se dele e abriu os braços que receberam June com entusiasmo, beijando os cabelos escuros, recuando logo em seguida.
─ Precisarei estar nos portões mas saiba que ficaremos juntos mais rápido do que pensa, então não se perca em preocupações.
As asas membranosas se agitaram em suas costas quando sorriu, balançando a cabeça. Kirk ergueu uma mão, June prontamente a agarrou e a direcionou para seus cabelos, onde o mais velho realizou um breve carinho e foi-se, trocando um olhar repleto de sentimentos não-ditos com Jolly.
Cpretus emitiu um grunhido, as asas farfalhando, as três cabeças sibilavam uma para outra, inquietas. Jolrien chiou numa tentativa de silenciá-los, mas não houve resultados. June franziu o cenho, estranhando a maneira que ouvia a criatura liberar grunhidos, mesmo após um comando. Geralmente, Cpretus obedecia as ordens dadas pelo guerreiro por conta do mesmo ter sido o responsável pelos cuidados dados à besta.
No mesmo momento, seus pensamentos sobre a situação evaporaram, Zion acabara de cruzar a porta, as asas recolhidas em suas costas e utilizando sua armadura illyriana que exibia seus sifões. Era a hora de partir. June aproximou-se um pouco mais de Jolly, não por desgostar do illyriano, mas simplesmente pelo desejo de continuar naquela casa, próximo de quem lhe importava. O guerreiro notou seus gesto e apertou seu ombro, tentando encorajá-lo a acreditar nas palavras ditas por Kirk.
Sabendo que havia como adiar o inevitável, a criança levantou-se, caminhando lentamente até Zion que o esperava com um sorriso que parecia a beira de rasgar seu rosto em dois, o mais velho ergueu a mão, desarrumando os cabelos escuros do menino.
─ Pronto para a viagem?─ Perguntou ele, os sifões cintilando brevemente. June deu de ombros, sem saber como realmente responder. Zion pareceu entendê-lo e, mais uma vez, bagunçou os cabelos castanhos, dessa vez com lentidão, uma carícia vinda de uma tentativa de afastar aqueles temores que rodeavam seu coração juvenil.
Num dia comum, haveria canções sendo tocadas ao longo das ruas, feéricos inundando a cidade de vozes distintas, prédios inteiros estariam completamente iluminados quando a noite finalmente alcançasse seu ápice e as lojas que sustentavam o comércio da cidade nunca estariam vazias. Haveria crianças illyrianas correndo pelas ruas, suas risadas soando baixas para que não fossem forçadas a perderem o jantar por terem tido a coragem de escapar dos treinos vespertinos do Lorde Dareon e os pequenos pés girando, acompanhando o som melódico. Algumas feéricas iriam sorrir ao ver June, esticando cestas que transbordavam doces em sua direção, murmurando que era uma honra servir alguém tão querido por sua Dama dos Pesadelos. E alguns Precursores se curvariam num ato brincalhão que arrancaria risadas suas.
Mas, ao pôr os pés na calçada, June foi recebido por um silêncio que o perturbou imediatamente. Até mesmo, o sol parecia ter se escondido atrás das nuvens, contribuindo para o clima sombrio que a Corte dos Pesadelos havia mergulhado. Um cheiro forte de enxofre impregnou-se em suas vestes, graças as velas acesas para potenciar os feitiços que mantinham os portais abertos. O menino hesitou, mas Zion seguiu o caminho, oferecendo acenos tensos por todos os soldados que passava em frente, então viu-se obrigado a fazer o mesmo.
Jolly os seguiu, impedindo June de cair no piso ao tropeçar nos próprios pés com um riso estrondoso que acabou relaxando o pequeno illyriano quando notou que alguns Precursores fizeram o mesmo. No fim, a cidade não estava tão sombria assim, um pouco vazia e sem sua vivacidade costumeira, porém sua essência continuava a mesma, os feéricos continuavam as mesmas.
─ Certo, recruta.─ O guerreiro abaixou-se, um joelho afundado na lama, quando encarou as orbes avelãs do menino, pondo uma mão no ombro do mesmo.─ Sei que você não quer ir, mas entende que é necessário, não é?
─ Vamos mesmo estar juntos no solstício?─ Ele pergunta, precisando daquela certeza, da promessa que reviveriam aquele dia tão especial, todos juntos e infinitamente sorridentes. Poucos metros adiante, Zion conversava com uma fêmea illyriana que possuía cabelos da cor do crepúsculo e olhos azuis como os mares que banham a Corte Estival. Ela franziu as sobrancelhas e balançou uma palma na direção da imensidão púrpura em formato oval atrás de si.
Jolly sorriu. E foi aquele sorriso. O mesmo que sempre o via entregar especialmente para Demetria quando a fêmea realizava um comentário regado de acidez e esperteza, reservando um instante para trocar um olhar com o guerreiro. Um erguer de lábios que chegava a desconfigurar seu rosto de tão raro, suavizando os olhos naturalmente cruéis, os deixando um tom mais suave de dourado e mostrando as pequenas rugas nos cantos dos olhos.
June viu-se sorrindo para aquele macho, o mesmo que lhe adotara e o mostrara que a vida poderia ter tons que não se alternam entre preto e branco, esforçando-se para retribuir a emoção expressada por Jolly. Percebendo o esforço, Jolrien gargalhou e o som vagou por toda a cidade.
─ Ah, garoto!─ Ele o puxou para um último abraço, apertando-o nos braços musculosos.─ Ouça uma coisa, June.─ O guerreiro o afastou, apenas o suficiente para poder encarar os olhos avelãs.─ Você nunca estará sozinho nessa vida. É o meu filho e saiba que estou orgulhoso disso. Orgulhoso de poder chamá-lo de filho, eu e Kirk.─ Suas mãos seguraram as bochechas do menino, sorrindo diante das lágrimas que escorriam pelo rosto infantil.─ E sempre estaremos juntos, independentemente se for no solstício ou não.
June balançou a cabeça, as mãozinhas limpando as lágrimas e o fitando aquele homem que o acolheu sem questionar, incluindo-o numa família formada pelos feérico mais formidáveis que já nasceram na Corte dos Pesadelos. Não havia dúvidas que encontraria contos sobre a fêmea que roubou uma corte e os machos que a seguiu nesta empreitada que sempre será vista como audaciosa. Contariam histórias sobre Zion e sua jornada em se tornar um dos melhores illyrianos já nascidos, sobre Ludovik que transitava entre ser uma figura tão parecida com os heróis dos contos e a sombra que ouvia a escuridão ou sobre Jolrien e Kirk, os machos que desafiaram o mundo quando decidiram se amar, acabando por adotar um menininho illyriano órfão.
─ Tudo bem!─ Disse, soou como uma espécie de choramingo.─ Vejo você depois, pai.
Mais uma vez, Jolrien sorriu e o abraçou com tanta força que June ainda sentia o aperto em seus ossos quando se separaram. O guerreiro o analisou rapidamente, entreabrindo os lábios. O menino sabia que o mais velho diria algo que o faria chorar e sentir a falta de Kirk e Jolly todos os malditos dias até o fim daquela guerra. Ele esperou por palavras mas elas nunca chegaram.
Um estrondo fora ouvido e a montanha estremeceu em resposta, fazendo com que June se desequilibrasse, sendo segurado por Zion que o puxou para perto conforme Jolrien erguia-se, o rosto carregando uma carranca que exibia o porquê fora um dos guerreiros mais temidos na época em que Prythian não passava de uma terra dominada por criaturas dominadas pela crueldade.
─ Foi no portão principal.─ Zion lança um olhar para a fêmea que retira o arco das costas, as mãos já alcançando a aljava, retirando uma flecha, as asas membranosas esticando-se para alcançar vôo.─ Jolly, o que fazemos?
O macho de olhos dourados não o respondeu. Mais um estrondo ecoou e a terra tremeu novamente. June não sabia o que estava acontecendo, mas poderia imaginar. Em algum momento de seu treinamento illyriano, as crianças são ensinadas que um escudo feito pela magia bruta dos sifões numa guerra era uma tática que garantia a vida de milhões no final da batalha, mas era difícil manter, uma vez que o impacto de uma magia contra o escudo poderia derrubar montanhas inteiras e estremecer tanto a terra que poucos conseguiam manter a concentração.
Ele contou seis estrondos acompanhados por tremores até que um som horrendo que o fez agarrar suas orelhas sensíveis com força surgiu, parecendo ecoar por todos os lados. Eram berros, gritos desesperados. Era o cheiro de sangue invadindo suas narinas.
Zion o segurou mais forte, uma adaga já em mãos, quando um vento tão forte que poderia ter os lançado para longe escorregou pelas ruas, o cheiro de enxofre tornou-se insuportável e um xingamento alto atraiu os olhos infantis para a illyriana que estava fitando o portal, ou pelo menos onde o portal deveria estar.
─ Keir, seu maldito inseto.─ Grunhiu Jolly. June estremeceu, uma espécie de terror aprofundando-se em seus ossos. Tinham apagado as velas e desfeito a única maneira de alcançar os palácios protegidos.
O guerreiro virou-se para Zion, encarando o rosto de June por um longo momento e retornando a fitar o rosto do illyriano mais velho. Resiliência de um general era enxergada em Jolrien.
─ Seu dever é protegê-lo, Zion. Faça o que for preciso.─ Ele encarou June e sorriu numa despedida que o menino não pareceu aceitar, apesar das inúmeras promessas que havia ouvido durante o passar do dia.
Algo o inquietava, não o deixava aceitar. June não queria descobrir mas ele podia sentir que aquela poderia ser a última vez que veria Jolly.
E Zion agarrou seus ombros, puxando-o para trás. June berrou quando notou o que estava acontecendo, chamando por Jolly, um choro que apenas se intensificou quando a escuridão os cobriu, atravessando-os.
Feyre perdeu-se nos próprios pensamentos. A noite já alcançou a madrugada no momento que apoiou as mãos no cerco de ferro ao redor de uma das grandiosas varandas espalhadas por todo o castelo, escondendo sua figura atrás das cortinas que movimentaram-se como se tivesse vida própria. Poucas horas atrás, a Corte Noturna fora guiada até uma suíte construída ao redor de uma área de estar exuberante e uma sala de jantar particular. As cores tão vívidas que nunca sequer seria capaz de alcançar uma mistura de tintas contendo a mesma vivacidade encantadora. Tudo foi entalhado em pedra do sol, decorado com tecidos nas cores das joias, almofadas largas espalhadas pelo tapete, vigiado por gaiolas douradas. Tão belo quanto Velaris.
Havia certa tensão rodeando seus ombros. Algo na quietude de Mor e Azriel, na forma que Cassian se pôs entre eles como se fosse uma barreira, no jeito que Nestha pareceu analisar a situação com um torcer de nariz e refugiou-se no quarto mais próximo. Lucien, perdido dentro de si mesmo, fitando os pássaros na gaiolas mas sem realmente vê-los. Demetria e Rhysand observaram o ambiente, sem dúvidas dividindo comentários através do laço que os ligavam. Até que uma batida soou, despertando o emissário de cabelos carmesim que levantou-se e desapareceu entre os corredores dos quartos antes mesmo que Rhysand abrisse a porta, revelando a figura de Helion.
O Grão-Senhor da Corte Diurna não é nada que um macho disfarçando sua inteligência com comentários voláteis e uma beleza indomável. Ele havia abraçado Demetria com um sorriso, curvando-se levemente e beijando as pequenas mãos da fêmea, dizendo que era honra estar diante de uma Grã-Senhora como ela. Um comentário que fez aquela risada de sinos soar.
No final da noite, estava claro que o exército diurno encontraria o exército noturno nas cadeias montanhosas que compartilhavam na fronteira e que ambos seguiriam até encontrar as forças de Thesan, montando um acampamento na fronteira sudoeste de Kallias, próximo da Corte Estival. E deitado nas almofadas, os olhos âmbar viajando entre Mor, Azriel e Cassian, Helion comentou que Demetria deveria comemorar seu próximo aniversário na Corte Diurna e que ele mostraria quão brilhante o Solstício de Verão poderia ser, o que rendeu um comentário ácido sobre e uma espécie de agradecimento exibido num sorriso. O Senhor do Dia se foi.
E o cansaço tomou os ossos do restante da Corte, eles não hesitaram em rumar para seus quartos, buscando por descanso. Apenas Feyre que decidiu escapar, utilizando seus poderes para ocultar sua magia e cheiro conforme caminhava pelo palácio, as sombras lhe acolhendo como se fosse uma igual.
Suspirando, sentindo os ventos já frios da noite acariciar seu rosto, espantando o passado que rosnava, mostrando as presas afiadas e dominando seus pensamentos. Tamlin estava ali, o macho que a prendeu numa armadilha que chamava de amor. Lucien estava ali, seu parceiro que a fazia desfazer-se em risadas com seus comentários atrevidos e atitudes tão rápidas quanto a de uma raposa. Ela estava ali, a humana que se sacrificou por amor, que foi torturada e humilhada para libertar um povo que a odiava, a que tornou-se feérica e que abandonou seu noivo, refugiando-se entre feéricos que chamava de família.
Era estranho pensar naquilo que era, na estúpida humana que implorava pelo carinho que lhe foi negado por todos que deveriam amá-lo, naquela menina que entregou-se a Tamlin, apenas para escapar por não suportar a gaiola que fora presa. Ela não era mais aquela Feyre, mas de alguma forme, ainda era. Aquela humana tola, como Lucien sempre faz questão de chamá-la, ainda estava em seu coração. E era difícil.
Difícil, pois Tamlin nunca foi aquilo que tanto enxergava, o que ele sentia por ela era algo terrível, distorcido por seus traumas e a necessidade de ser o bastante para alguém. Ele era um espelho daquela humana faminta por qualquer coisa, por isso que se apaixonaram, ou pensaram que sim. Mas uma paixão como aquela, destrutiva e cheia de mágoa, nunca sobreviveria Sob a Montanha, não como o amor entre Demetria e Rhysand tinha feito.
Difícil, pois Tamlin estava certo em limitar suas conversas com Lucien quando chegara na Corte Primaveril, já que o macho outonal era uma das almas mais fáceis de se apaixonar. Além de ser uma beleza a ser apreciada com seus cabelos carmesim acompanhandos por olhos castanho-avermelhado, uma pele marrom-dourado e um sorriso tão perigoso quanto o corpo estruturado que parecia típico dos feéricos, Lucien era um conjunto cheio de humor sarcástico e gentileza inatacável. Ele a fazia rir, a irritava até considerar seriamente o pensamento de transformá-lo num cubo de gelo, lhe compreendia como nunca, sendo capaz de enxergar suas piores partes e nunca recuar, sempre esticando os braços para abraçá-la.
Sozinha, Feyre sorriu para o nada, esfregando os próprios braços, sentindo-se assombrada pela firmeza que fora abraçada pelo macho em dado momento.
─ É uma bela paisagem.
Archeron reprimiu um grito mas saltou, virando-se tão rápido que ficou tonta. Muireann sorriu, parecendo achar graça de suas ações, erguendo uma taça até os lábios.
A feérica estival, a aparente companheira de Helion após um casamento feito por Amarantha, possuía seus cabelos soltos, caindo pelos ombros em ondas, contrastando com o roupão azul-celeste que utilizava por cima da camisola branca feita de um tecido tão fino que era fácil acompanhar cada curva de seu corpo. Os olhos ônix tinham aquela mesma esperteza agressiva que a fez entregar um tesouro de sua Corte para Feyre, apenas para mantê-la distante de sua família.
─ O que está fazendo?─ Questiona Feyre, a voz levemente fina, entregando que ainda não se recuperou completamente do susto.
─ Acredito que o mesmo que você.─ Ela ergueu mais uma vez a taça e Archeron lembrou da forma que Muireann lançava breves olhares para Helion como se fosse a lua orbitando em torno do sol, incapaz de se manter distante.
Piscando os olhos, acompanhou a feérica de pele escura aproximar-se do cerco de ferro, os ombros relaxados e o rosto tão sereno quanto o mar num dia quente de verão. Quando as nuvens permitiram que a lua iluminasse, mergulhou Muireann em um brilho prateado que pareceu dar vida aos seus cabelos pálidos da fêmea, deixando-a como uma figura etérea. Uma guerreira que dominara o mundo com um punho de ferro e uma beleza arrebatadora de tantos nuances que era impossível haver um macho incapaz de cair diante de sua imagem. Feyre poderia pintar um quadro com esta imagem, ela o faria na primeira oportunidade que tivesse.
Talvez poderia disfarçar seu encanto em um presente quando a guerra acabasse. Talvez pudesse criar uma relação confortável em da hostil que trilhava com boa parte da Corte Estival, após aquela tentativa falha de roubo.
─ Você quer ouvir uma história?─ Muireann perguntou, os olhos fechados, a cabeça levemente inclinada em um gesto que lhe pareceu lupino, as orelhas moveram-se tão sutilmente que Feyre mal havia notado.
─ Um história?─ Feyre franziu o cenho, confusa. Era surpreendente que aquela fêmea esteja ofertando tal coisa, principalmente se fosse levar em conta o último encontro que tiveram.─ Por que deveria?
Um segundo de silêncio, os ventos da Corte assobiando ao redor de ambas. No horizonte, com um pouco de atenção, podia-se ver as montanhas que a Crepuscular compartilhava com a Diurna, elas pareciam cintilar debaixo das estrelas, quase como se tivessem absorvido a luz solar o máximo possível para poderem mostrar que poderiam rivalizar com os seres celestes.
A fêmea estival deu de ombros, virando-se para Feyre com aquelas orbes cheias de uma sabedoria que vinha com a idade, um emaranhado de entendimento que apenas aqueles enfrentaram uma guerra pareciam conter. Às vezes, Archeron encontrava tal olhar em Cassian quando ele ingeria vinho ao ponto de se distanciar, próximo dos horrores que presenciou.
─ Ora, não é isto que crianças humanas fazem?─ Certa curiosidade poderia ser detectada em seu tom, mas Feyre não sabia descobrir se era falso ou real, e em um ambiente como aquele, tão longe de seus companheiros, jamais ousaria invadir a mente de Muireann para descobrir.─ Ou, pelo menos, é o que um velho amigo meu disse.
─ O que feéricos sabem de humanos é tão pouco quanto o que humanos sabem de feéricos.─ Recita a feérica de cabelos aloirados, lembrava-se vagamente de Nestha dizer a mesma coisa para Elain enquanto ambas caminhavam pela Casa do Vento.
A fêmea mais velha gesticulou com uma mão, dispensando-a, transformando suas palavras em nada. Ela lhe olhou novamente. Até aquele momento, nunca lhe ocorreu que Muireann possuía olhos escuros, não opacos, com um certo brilho misterioso, uma cor facilmente relacionada com as águas que banhavam as lagoas do Meio, diferentes das cores marítimas que seus familiares exibiam.
─ E quem lhe disse que meu velho amigo é um feérico?
Seus dedos longos e manchados por cicatrizes estalaram. Um arrepio subiu pelo corpo de Feyre e soube imediatamente que Muireann as cobriu com uma barreira. A de cabelos prata suspirou, fechando novamente os olhos e parecia navegar nas lembranças quando começou a falar:
─ Eu conhecia Jurian.─ Uma emoção intensificou o cheiro de Muireann, tornando-o algo suave, confortável.─ Ele era um humano imbatível em batalha e um líder que inspirava os outros, vivia para e por outros humanos, desesperado por liberdade.
É raro que um cheiro se torne tão dócil após citar um único nome, um que Mor já comentara sobre e a loucura de Jurian aterrorizou até mesmo quem prometera uma vida. E o carinho que embalou cada palavra dita... Parecia a voz de uma amante que perdera seu amado.
─ Você o amava?
Então, Muireann abriu os olhos e simplesmente riu. Uma gargalhada que soou exatamente como o mar chocando-se contra as ondas.
─ Jurian era uma alma terrível, tão difícil de amar que só vejo alguém como Myriam e aquele... Bem, era um líder excepcional para os humanos por colocar seu objetivo de liberar um povo oprimido acima de tudo, inclusive de seus próprios sentimentos. Isso o levou ficar mais agressivo, irritadiço demais e ouvir quem não deveria.─ Ela tocou em sua taça e encarou o líquido bordô.─ Havia um macho, vindo de Hybern, trabalhava como espião para Corte Noturna. Mal o via, mas ouvi Jurian tecer elogios mais vezes do que poderia acreditar, sussurou que era uma alma atormentada mas gentil, só precisava de um pouco de amor como o resto do mundo. Às vezes, me pergunto: quem deixou de amar primeiro? Myriam ou Jurian?
Feyre franziu o cenho, as palavras aos poucos guiando-se a um rumo que a fez lembrar do que Amren dissera muito tempo atrás. Ela alegara que Jurian estava tão focado em destruir Amarantha no norte ao ponto de nem notar que Miryam apaixonava-se pelo príncipe feérico, Drakon. No entanto, havia mais...
─ Espera, você está me dizendo que...
Muireann ergueu uma mão, interrompendo-a.
─ Não é importante, apenas uma parte da verdade que poucos sabem. O importante está que Jurian traçou um plano, graças a esse macho. E precisava estar nas terras outonais o mais rápido possível. Ele vagou até meu acampamento, implorou para que confiasse nele, em sua intuição. Naturalmente, o fiz.─ Ela piscou.─ Segui as ordens do humano. Nostrus não tinha coragem de me encarar sem considerar que sou uma fêmea, mas um humano que poderia quebrar tão fácil quanto um galho, sim.─ Feyre a viu contornar sua taça com lentidão.─ Jurian queria que Beron ficasse em dívida, para ser manuseado melhor, sem tantas complicações. O espião sussurrou que Hybern atacaria sua adorável esposa e criou uma oportunidade. Mas quando atravessei a Corte Outonal, era tarde demais.
A ex-humana a fitou, assistindo-a quando torceu o nariz, a lembrança lhe desagradava de alguma forma. Já havia a visto com aquela mesma expressão ao fim da reunião no instante que Helion aproximou-se, os cabelos escuros emoldurando sua bela face, assim como o sorriso malicioso que ofereceu à Muireann sem importar-se com o claro rosnado que Varian lhe direcionou. Aqueles olhos ônix fitaram a palma estendida de Helion por um breve momento, dando-lhe as costas e seguindo um criado sem dizer uma única palavra. Mas o Grão-Senhor da Corte Diurna riu como se tivesse escutado-a contar uma piada divertidíssima.
─ Durante um certo tempo, houve um boato.─ A voz da feérica soou áspera.─ De que esperou antes de aceitar a proposta de Beron, que aguardava por um belo macho que conheceu no baile de equinócio do ano anterior. Mas o tempo a alcançou e o casório foi feito. E, Beron já possuía herdeiros quando a guerra começou.─ Muireann balançou os ombros, os olhos revelando um brilho malicioso quando escorregou os dedos por suas mechas prateadas.─ A questão é que Helion foi o único dos Grão-Senhores que não ofereceu felicitações e curiosamente foi aquele que a salvou do ataque de Hybern.
─ O que aconteceu?
─ A pequena esposa perdeu as irmãs naquele dia. Estava tão inconsolável, mal conseguia escapar do próprio luto até que o próprio sol apareceu em seu caminho, iluminando e fazendo o que faz de melhor.─ Muireann deu um último gole na taça e a depositou no cercado, um dedo empurrando o objeto para a beirada levemente e vagarosamente.─ Beron nunca descobriu que ele a salvou. Mas havia notado que sua esposinha parecia feliz demais na prisão que criou para ela. Algo não esteja certo. Então, ele percebeu. Sua propriedade o tratou como tolo em sua própria casa.
─ Se Helion...─ Ela engoliu seco, trincando os dentes. Lembrando-se da Senhora Outonal, encolhida ao lado do marido. Uma visão do que Feyre teria se tornado caso continuasse ao lado de Tamlin, uma casca de si mesma.─ Se Helion era seu amante, por que não impediu?
─ Pelo mesmo motivo que nenhuma corte queria recebê-la quando fugiu de Tamlin.─ Muireann podia vê-la inquieta pelo canto dos olhos mas não comentou nada referente.─ Já houve uma guerra entre as cortes por causa de uma fêmea, as consequências disto ainda podem ser vistas. Não é apenas por conta de fronteiras que as Cortes Sazonais se apoiam, a mesma coisa pode ser dita das Solares. E além disso...─ Ela hesitou por um momento, o dedo que empurrava a taça cessou o movimento.─ Beron é um Grão-Senhor, e ela é sua esposa e mãe de seus monstrinhos. Ela escolheu ficar, não havia muito que pudesse fazer. Beron iria matá-la caso fizesse o contrário.
Feyre parou, espreitando levemente o olhar. Ludovik a fez vagar pela Cidade Escavada nas sombras, analisar feições sem que precisasse de seus poderes e por mais que não fosse tão eficiente, ouviu os ensinamentos. Mais do que isso, absorveu. Ela lembrava dos olhos cinzentos e cabelos tão dourados quanto o sol, a boca rosada murmurando: "Somos feéricos, nascemos escutando e vendo coisas que se tornam tão naturais que é fácil ignorar. Você é uma humana que se tornou feérica. Precisa ouvir mais do que nós, enxergar mais. Ver o que as batidas do coração pode revelar. Conectar informações e encontrar uma resposta. Só assim terá alguma serventia nessa Corte".
Aquelas palavras ecoavam durante sua estadia na Corte Primaveril e ecoavam agora conforme analisava as feições de Muireann, as batidas ritmadas de seu coração e o brilho malicioso que acendia os olhos ônix dela. Ela repassou a conversa inúmeras vezes. Helion e a Senhora Outonal manteram um caso, provavelmente até algum ponto muito distante da chegada de Amarantha naquele continente. Por que Muireann lhe contara algo que com certeza é evitado por muitos? Por qual razão...
A imagem de Eris contendo Lucien Sob a Montanha atravessou sua mente. Eles eram irmãos. Os mesmos cabelos vermelhos, mas os de Lucien mais para o carmesim do que o costumeiro vermelho-fogo tão comum entre seus irmãos. O formato dos olhos iguais, herdados por sua mãe, mas as cores distintas. Um par âmbar caindo para o avermelhado das chamas enquanto o outro de um tom castanho avermelhado, também herdado por sua mãe. Lucien poderia facilmente ser uma cópia da Senhora Outonal se não fosse...
Seus olhos arregalaram brevemente. Eris e seus irmãos eram pálidos como a neve que cortava boa parte da Corte Outonal, Lucien é de um marrom-dourado como se passasse momentos demais debaixo do sol. Seu nariz, o sorriso e a voz... Ela já os vira em duas pessoas. Em Lucien e em...
─ Helion é o pai de Lucien.
A taça caiu, escorregando pela borda após um último empurrão, desabando no ar, a lua iluminou o pequeno objeto que caia em alta velocidade em direção à espatifação inevitável. O som do vidro chocando-se contra o solo ressou nos ossos de Feyre, fazendo-a tremer diante da revelação.
─ E o único herdeiro da Corte Diurna.─ Continuou Muireann, cruzando os braços abaixo dos seios.─ Sabe o significado disto numa guerra como esta?
─ Se Helion morrer, Lucien irá assumir caso a magia o escolha...
O pensamento de seu parceiro banhado numa luz dourada, uma coroa nos fios carmesim e um tecido branco ondulando seu corpo junto à braceletes em forma de serpentes a fez engolir seco, ajustando sua postura e focando para que seu cheiro não a denunciasse. Mais do que aquela visão, Feyre foi acertada pela reação de Lucien. Ele havia sido negligenciado, mutilado, caçado e...
Seus olhos fecharam-se com força.
Ela mal podia pensar no que Lucien diria ou faria caso a verdade o alcançasse na situação delicada em que estão. Uma guerra contra Hybern e a infinita possibilidade abrindo-se conforme os preparativos da guerra são traçados.
─ A magia o escolherá.─ Disse Muireann, firme, o tom frio e mais afiado que uma espada.─ Ele é o único herdeiro, e é claro que tem mais luz do que fogo dentro de si. Aquelas chamas não é fogo, nunca chegará nem perto.
─ Você é a esposa de Helion. Poderia assumir a Corte se quisesse. A magia poderia escolhê-la, não poderia?
Muireann a fitou como se a considerasse tola demais por um breve momento.
─ Sou uma fêmea que nasceu e foi criada na Estival, uma Corte Sazonal, a magia sabe que minha lealdade está na terra em que nasci.─ Ela respirou fundo, lambendo os lábios, inquieta.─ Nosso casório não foi em função de uma união mas uma punição. Uma diversão para Amarantha. Alguém lhe contara que, quando vivo, o pai de Helion considerou nossa união e que neguei. Ela achou que seria engraçado corrigir meus erros mais uma vez.─ A fêmea desviou o olhar, tristeza podia-se ser sentida em seu cheiro.─ Já que, segundo ela, cometi um erro como conselheira de meu Grão-Senhor e ceifei a vida de Nostrus. Casar com Helion foi uma ótima maneira de deixar claro que eu não podia cometer mais erros. Não fui e nunca serei reconhecida como Senhora da Corte Diurna. Os Lordes jamais permitiram, não importa quanto Helion tente. Aqueles velhos idiotas ficariam satisfeitos em me tratar como um dos divertimentos momentâneos de Helion pelo resto da vida se isso significasse que nunca terei poder em sua Corte.
─ Mas não é por isso que o recusa, não é? Você está protegendo Tarquin, os murmúrios de quem deveria estar no lugar dele não deixaram de aumentar, mesmo depois de se casar com Helion.
Uma resposta ousada e errada. Os olhos ônix se incendiaram e alguns pássaros voaram em suas gaiolas, agitados. Feyre não pôde ouvi-los por conta da barreira mas sabia que iriam atrair a atenção do guarda mais próximo.
─ Veja bem, Feyre Archeron. Vivi muito mais do que sua mente mortal pode imaginar e não suporto a ideia de ser algo além do que uma vitoriosa, a que receberá uma coroa de louros e consagrada como tal.─ Feyre moveu os ombros, desconfortável em sua pele, seu sangue estranhamente borbulhava em suas veias, incitando aquele pequeno broto de poder que recebera de Tarquin.─ Se não posso ser a primeira que um macho buscará numa sala, ele não é digno de mim. Tenha consciência disso.─ E quando imaginava que ela havia terminado, Muirean continuou: ─ E pouco me importo com o que dizem. Tarquin é merecedor, digno.
─ Helion sabe?
Não havia como não notar. Não depois de hoje. Não quando Lucien parecia muito com o Grão-Senhor sentado poucos metros a frente, os mesmos sorrisos maliciosos e a risada perigosa que apenas ambos pareciam saber ecoar daquela forma encantadora numa promessa de violência disfarçada.
─ A princesa fez bem em enganá-lo. O fez pensar que sua semente nunca seria capaz de geminar nela, não era digno de tal.
─ Então, por que?
Por que guardar este segredo por tanto tempo e dizê-lo para mim? Por que me dizer algo deste tipo tão derrepente? O que espera que eu faça?
─ Estamos em uma guerra, Quebradora da Maldição. Em tempos assim, quando um Grão-Senhor morre e outro renasce de suas cinzas, Prythian é posta numa balança. E a destruição é inevitável se um segredo desses for revelado em meio a batalha. Lucien é uma criança ignorada e maltratada, todos sabem e muitos irão questionar se ele realmente é digno de tal poder, apesar de quem é seu pai. A Corte Diurna poderá cair se um mísero passo for dado errado.
Muireann poderia dizer que negava Helion e que recusava assumir algum espaço na Corte abençoada diariamente pelo sol tanto quanto a Estival. Mas, Feyre pensou que é isso que uma Senhora de alguma Corte faria.
─ Seu coração humano pertence a um feérico cuja linhagem vem de quebradores de maldições iguais à você, não pode dizer que a Mãe tem certo humor.─ Ela estalou os dedos e a barreira que as protegia desapareceu. Um pé escorregou pelo piso, a fêmea estava distanciando-se, quase sendo engolida pelas sombras quando disse: ─ Eu lhe disse a verdade, pois imaginava que toda fêmea deveria saber onde está pondo seu coração antes de arriscá-lo.
Ela foi-se, uma centelha de sorriso nos lábios grossos, abandonando Feyre naquela varanda. Ainda dominada por incerteza e o sentimento de que possuía uma segredo grande demais para ser mantido em suas mãos.
Kirk entregou-se ao que fora chamado de pecado quando era novo demais para ignorar sentimentos ou negar-se a si mesmo. Seu pecado havia olhos cruéis num tom intenso de dourado, um sorriso que guardava inúmeros segredos e uma sede insanável por sangue como o belo guerreiro que era. E o preço poderia ter sido caro para muitos, mas havia certo conforto na maneira que a última coisa que enxergou, antes de ter sua visão arrancada por seu próprio pai, foi o rosto corado e sorridente de Jolrien enquanto murmurava numa língua tão antiga quanto a própria Prythian que o amava profundamente.
Era irreal. Jolrien, o guerreiro que servia pessoalmente aos Deuses Antigos e poderia facilmente ser um espelho de Lanthys, aquele que guiava a Caçada Selvagem, já que compartilhava os mesmos pais e a crueldade desenfreada. O mesmo macho que matara por diversão curvou-se diante de si, abandonando suas antigas crenças para poder amá-lo como julgava digno. Kirk era uma criança em idade se for comparado a ele, mas nada incomodou Jolrien. Na verdade, desde que seus olhos se cruzaram num baile orquestrado por Stryga, não havia nenhum ser ou ação capaz de incomodá-lo caso estivesse ao lado daquele que amava.
Quando foram presos, acusados de um crime absurdo demais para ser considerado válido através de tramóias realizadas pelo já falecido pai de Kirk, Jolrien fora posto numa cela tão distante que mal era possível ouvir seu cheiro ou som de seu coração batendo. Mas, às vezes, no instante que o escuro tornava demais e seus olhos doíam como se ainda sentissem os dedos sobre eles, os ouvidos sufocados pelo feitiço que o impediu de enxergar, ele o ouvia. Berrando em plenos pulmões, liberando uma gargalhada tão alta e sólida que sacudia as paredes de pedra. Eles estiveram centenas de anos distantes, enclausurados. No entanto, nada mudará.
Jolrien continuava garantindo que Kirk nunca se sentisse sozinho, como havia prometido, mantendo suas palavras vivas numa tatuagem em forma de chamas nas costas de ambos. Ele continuava provando que não se arrependeu de nenhuma de suas escolhas. Que amá-lo era a única certeza que já fez em toda sua vida imortal.
No que imaginava ser uma madrugada, ouviu pequenos passos serem dados, um tipo de magia tão antiga quanto o tempo ecoando pelas paredes, atiçando os prisioneiros a se aventurarem, trocando murmúrios maliciosos sobre a criatura que estava ali, Kirk continuou em suas sombras, incapaz de realmente ver e mal incomodando-se. Até que o som cessou, curiosamente em frente a sua cela. Ele se manteve abraçando as próprias pernas, às vezes o cansaço mental o alcançava e, por meros segundos, fingia que estava nos braços de seu amado. Era patético, mas uma maneira de sobreviver, de aplacar a saudade que corroía os ossos.
─ O que você fez?
Kirk piscou os olhos, julgando ser sua imaginação atacando-o em seu momento mais vulnerável. Pois era impossível. A não ser que qualquer que seja o ser comandando aquelas terras seja tão cruel quanto Koschei e seus irmãos foram. E estava prestes a confessar a si mesmo que perdera, enfim, sua sanidade quando o silêncio perpetuou por tempo demais.
─ Você tem língua? Sabe falar ou não me entende?
Era um tom pelutante de uma maneira que só podia pertencer a uma criança. Kirk não estava tão perdido, ou talvez estivesse, não havia como saber. Ele inclinou a cabeça e quase podia vê-la através do pequeno resquício de magia que vagava em suas veias. Era pequena demais, magra demais e as mechas de seu cabelo estavam tortas, provavelmente fora o trabalho de alguma lâmina cega, vestia um vestido cheio de babados com uma aparência que já fora usado muitas vezes. Podia vê-la apertar os olhinhos esverdeados, tentando enxergá-lo em meio ao escuro e a imundície.
─ Eu a entendo.─ Disse Kirk, sua garganta doeu e a voz soara baixa demais, dolorosa demais após tantos anos sem ser utilizada devidamente. A menininha que mal parecia ter alcançado cinco anos deu um passo em frente, quase espremendo o rosto faminto entre as barras, tentando a todo custo capturar algum vislumbre do macho oculto.─ O que não entendo é o que está fazendo aqui.
─ É um sonho.─ Foi sua resposta, firme e dominada por certeza.─ Você nem existe, claro que não sabe o que estou fazendo.
Quem quer que fosse seus pais, estavam fazendo um bom trabalho em criar um pequeno monstrinho. Já possuía todos os trejeitos de alguém que conseguiria dominar inúmeras terras utilizando apenas com sua voz, seria uma inimiga formidável para Stryga que joga com palavras tão facilmente quanto massacrava exércitos usando apenas sua magia. Jolrien adoraria ouvi-la, riria daquelas feições miúdas. Ele adorava crianças atrevidas demais para o próprio bem, assim como o próprio Kirk.
Aquela criança não parecia preocupada com seu redor, mal dando atenção aos ecos que as paredes reproduziam em breves intervalos de tempo ou como a escuridão parecia ter vida própria dentro daquela montanha. Realmente parecia confiante em sua crença que é apenas um mero e insignificante sonho e com certeza acostumada com ambientes sombrios como aquele. É nova demais para possuir uma magia tão poderosa, talvez nem estava ciente que tinha tal capacidade.
─ Por que está preso?─ Perguntou, genuinamente curiosa. Kirk não a respondeu, ainda perdido nas possibilidades. A menina bufou, impaciente.
─ Como veio parar aqui?─ Ele soltou, levantando-se e dando um passo na direção da pequena, sentindo o cheiro de sua expectativa aumentar conforme se aproximava das barras.
Ela deu de ombros, um gesto que pareceu sacudir o corpo pequeno como se não soubesse fazê-lo corretamente.
─ Thorunn me fez prometer que sonharia com meus pais.─ Não havia uma centelha de emoção ali, não parecia pessoalmente interessada naqueles que lhe deram vida. O que era curioso... Que vida aquela menina levava para dar tão pouca importância para tal fato.─ Não os conheço, então, é um castigo, não é? Ouvi o velho Astar que quem faz promessas vazias é castigado, esse é o meu castigo.
Kirk riu, um som rouco, gutural. Seu corpo desabou próximo de onde ela estava, podia sentir aquelas orbes o analisando, absorvendo a imagem de um macho que possuía uma barba que ultrapassava os próprios joelhos, acompanhando os cabelos no longo comprimento.
─ Isso é uma decisão sua, menina. Para mim, estar aqui certamente é um castigo, mas, para você, é um?
Ela torceu o nariz, enxergando pouco sentido no que dizia.
─ Então...─ Prolongou a palavra, cantarolando-a com uma voz melódica e bonita demais para aquele lugar.─ Por que está aqui? Matou alguém?
Mais uma vez, riu. Dessa vez, fora baixo e melancólico. Um rosto corado e olhos cruéis brilharam em sua mente, rendendo-lhe um aperto no coração. Desejava que Jolrien gargalhasse em sua cela, que o lembrasse quão bom foi vivenciar aquele amor, apesar de tão brevemente.
─ Não, criança, minhas mãos não estão sujas de sangue.
─ Mas você cometeu algum crime, não foi? Quem comete crime, é enjaulado.
Kirk fechou os olhos, seu corpo parecia mais cansaço naquele dia do que estivera nos últimos anos, os ossos rígidos em sua carne, cada movimento parecia gastar energia demais.
─ Eu amei, menina. Este foi meu crime.
Sua magia permitiu vê-la franzir o cenho. Em silêncio, o analisava em busca de alguma centelha que entregasse uma brincadeira que não existia. Aquela era a mais pura verdade.
─ Que crime bobo.─ Disse, por fim.
─ Poderia ser um poema, com certeza algum bardo cantaria um aburso desses. "Eu amei, que crime bobo".
Considerou que seria uma tarefa difícil por um momento, mas a menina riu, o som de sinos tilitando ainda ecoava quando encolheu os ombros pontudos, sorrindo exatamente como um duende sorrateiro faria após uma ou duas traquinagens. Kirk pegou-se sorrindo para ela, os olhos enrugando-se nos cantos, entregando uma imagem que nunca seria nada além de gentil para aquela menininha.
─ É engraçado, mas é injusto.─ Ela inflou as bochechas, aborrecida. No escuro, era difícil reparar mas o macho conseguiu enxergar certas sardas ali.─ Um dia, vou tirar você daí, sonho.
Apreciou sua promessa, apesar de julgá-la vazia. Era impossível realizar algo que nem mesmo os espíritos mais cruéis daquele continente eram capazes de fazer. Não negava que aquela menina era poderosa de um jeito único, mas, ser capaz de libertá-lo? Era uma vaga esperança que Kirk abandonou há muito, muito, tempo. Habitava nas lembranças agora, pequenos momentos que se agarrou tão fortemente que podia revivê-lo com certa concentração. O último toque que sentira de Jolrien. O último beijo, aquele abraço que fora seu único conforto durante os primeiros séculos ali.
Agitou a cabeça, afastando pensamentos que eram capazes de fazê-lo encolher e soluçar como uma criança igual àquela menina.
─ Qual é o seu nome, menina?
A resposta demorou para vir e carregava uma amargura que não imaginava que poderia ser encontrada numa menina tão nova como ela.
─ Não tenho nome.
─ Ora, todo mundo tem um nome.
─ Bom, eu não tenho.─ Ela lambeu os lábios ressecados e murmura tão baixo quanto poderia.─ Dizem que nasci da terra.
─ Da terra?─ Kirk ergueu uma sobrancelha, julgando tal constatação fantasiosa demais.
A menina balançou a cabeça.
─ Maeri fala que é porquê eles fizeram um berço de terra pra Rhea, ela tinha achado uma boneca, era um presente. Aí, quando amanheceu, eu estava no berço com a boneca.
─ Nascida da terra.─ Kirk murmurou. Ela sorriu, expondo os dentes levemente tortos e alguns estavam lascados.─ Você é uma Demetria.
─ Uma o quê?
─ Demetria.─ Repete, mais lentamente para que ela pudesse replicar o som com facilidade.─ São crianças como você, nascidas da terra. Há muito tempo, falam que são crianças que o próprio Caldeirão criou para que pudessem concertar o que há de errado em seu lugar.
Mas a menina mal prestava atenção em sua explicação. Fora possuída por certa animação que tentava conter mas poderia ser notada pela forma que os olhos esverdeados cintilavam num brilho prata e os braços agitavam-se, assim como os pés. Parecia estar bem próxima de pular de alegria.
─ Sonho, você me deu um nome?
Kirk franziu o cenho por um momento, mas sorriu, inclinando-se levemente para poder fitá-la diretamente nos olhos. Ela exalava algo que há muito tempo havia esquecido como pronunciar, uma mistura de alegria e satisfação. Um nome, um pequeno e simples nome havia a feito abrir um sorriso daquela maneira.
Alucinação ou não, Kirk estava satisfeito consigo mesmo por poder proporcionar um sentimento como aquele numa criança que parecia tão desesperançosa.
─ Veja como um pagamento antecipado. Você disse que me libertaria, certo?
─ Sim! Eu vou.─ Havia confiança quando ela ergueu o queixo e pronunciou, as feições sérias demais para alguém tão pequeno.─ Vou tirar você daí, independentemente do quanto demore.
─ Se me quer livre disto, precisa libertar meu amor também, menina.
─ Tudo bem, vou tirar vocês dois daqui e ninguém vai prendê-los de novo. É uma promessa.
─ Sim, pequena Demetria, é uma promessa...
Kirk sorriu para aquele rostinho frágil demais. Não havia dúvidas, aquela menininha poderia facilmente conquistar aquele mundo, roubar o trono pertencente à Stryga e fazer os Deuses Antigos se curvarem diante de si como se fosse uma brincadeira. Ao longe, quase podia ouvir Jolrien o chamar, a voz suave como uma canção, arrastando cada mísera palavra de seu nome como se saboreasse cada pequeno som, encantado demais com o macho que amava. A menina continuava em sua frente, mas não lhe parecia tão pequena ou faminta. Na verdade, ela havia crescido, as bochechas não estavam fundas como covas, elas estavam levemente redondas, coradas e sardas podiam-se ser vistas espalhadas por todo o rosto. Não vestia mais um vestido sujo e velho, mas, sim, um modelo que acompanhava cada curva de seu corpo, aumentando a beleza que possuía. Era mais uma fêmea no auge da maturidade do que uma menininha animada por ter um nome. Ela sorria, um pouco mais contido, os dentes retos e brancos iguais a pérolas.
Stryga deveria estar revirando-se. Aquela menina tornou-se uma beleza que nem mesmo a Deusa sonharia em ter.
Jolrien continuava a dizer seu nome. Agora, berrava, desespero podia-se ser sentido em cada som. Era bom poder ouvi-lo, a sensação lhe lembrava quando escondia-se em seus lençóis após um dia ridiculamente difícil e sonhava com um mundo melhor, onde teria liberdade para ser quem desejava sem alguma restrição ou promessa de violência lhe aguardando no próximo corredor. É quente, acolhedor e deixava-lhe sorrindo para uma parede cinzenta nada encantadora.
Seu amor gritava, angustiado. Kirk queria poder abraçá-lo, retirar a dor que ele estava sentindo com as próprias mãos. Mas estava naquela cela, fitando uma fêmea que havia nomeado em troca de uma esperança que acreditava ter desaparecido, um simples amontoado de cinzas em seu peito.
─ Kirk! Kirk! Você tem que acordar!─ Berrou Jolrien.─ Abra os olhos, Kirk! Abra!
O som parecia próximo de seus ouvidos, apesar do mesmo estar distante demais. Em sua frente, a fêmea balançou a cabeça, tão sutilmente que acreditou ser apenas sua imaginação agindo quando ela deu um passo, esticando um braço entre as barras, a palma aberta como se o convidasse. Kirk sorriu, não hesitando em guiar seus dedos até os dela, porém o contato nunca ocorreu. Jolrien berrou mais alto e podia sentir mãos agarrando seus ombros, agitando-o ao ponto que fechou os olhos, tentando impedir que alguma poeira adentrasse em suas orbes e os irritassem como ocorreu inúmeras vezes.
Quando os abriu, ele engasgou antes mesmo de poder pronunciar o nome do macho que o abraçou, acariciando suas costas com carinho. Jolrien tinha marcas de lágrimas em seu rosto e alívio era encontrado em cada mínimo traço, até mesmo nos olhos cruéis. Kirk se inclinou, encostando a testa em seu peito, absorvendo as batidas do coração apressado e guerreiro.
As memórias o atingiram com força.
A breve conversa que manteve com Vaewyn, um Precursor das Sombras, na caminhada para checar os portões. A forma que uma illyriana, uma das poucas guerreiras que tinham, sorriu ao vê-los, erguendo um mão para acenar. Ela é jovem, animada por não ter tido as asas cortadas e realizado o sonho de ter sido treinada como uma guerreira. Mas tudo se esvaiu quando o portão estalou, um tremor mergulhando na cidade. A ventania veio, outro estalo e, então, a illyriana foi-se. Ela ainda respirava quando as forças de Keir e Hybern atravessaram, ainda era capaz de sentir a dor de ter uma espada atravessando sua garganta.
Kirk ergueu a espada e exibiu um milênio de habilidades aprendidas numa época que aquela montanha era pó. Vaewyn o acompanhou o máximo que podia enquanto os reforços chegavam, tentanto impedi-los de avançar pela cidade que ainda não estava completamente vazia, mas fora abatido pela lâmina pertencente ao próprio Keir. Kirk o enfrentou, empurrando o feérico odioso, o acertando em cheio no rosto, esperando que o corte que atravessou seu olho esquerdo tenha levado sua visão quando sentiu a dor. Fora uma adaga, atingiu-o próximo ao peito, tão perto do coração que o pensamento o aterrorizou. Ele cambaleou e lembrava-se vagamente de Jolrien, aparecendo, puxando-o para um espaço seguro.
É onde estão agora. Escondidos atrás do balcão de uma loja, cujos vidros estavam despedaçados, alguns perfurando sua pele, já que não utilizava armadura ao contrário de seu amado. Como o guerreiro orgulhoso que era, não havia ferimentos visíveis, sua armadura manchada de sangue dos inimigos e tinha certeza que havia muito do seu naquela bagunça avermelhada.
─ June...─ Conseguiu murmurar, uma mão apertando o ferimento que ainda sangrava, apesar das mãos vermelhas de Jolrien deixar claro que o mesmo havia tentado estancar o corte.
─ Está seguro, Zion os atravessou.
Kirk balançou a cabeça. Zion manteria June em segurança.
A dor tornava-se uma constante que não parecia desejar deixá-lo ou permiti-lo pensar coerentemente, pelo menos a adaga não havia sido banhada naquele veneno de Hybern que paralisava magias. Ele ainda podia enxergar, sentia um rugido dentro de si, um desejo por liberdade e permissão para destruir.
─ Demetria... Ludovik...
Foi a vez de Jolrien balançar a cabeça. Ele mordeu os lábios, o som das lâminas sendo cruzadas e carne sendo destroçada não lhe trazia o conforto que oferecia antigamente, na verdade, apenas o lembrava daqueles que tanto amava, do que perderia caso se arriscasse demais.
Demetria liberando uma risada de sinos, apoiando-se num Lionel que sorria. Ludovik mergulhando um pedaço de pão numa sopa durante um jantar familiar e acabando por sujar a própria camisa, garantindo uma risada de Zion que foi prontamente acompanhado por June. Eles eram suas crianças, aqueles que escolheu como filhos e deu tudo de si para apoiá-los, garantindo que estivessem sempre sorrindo, distraídos do passado sombrio que compartilhavam. Cada um contribuiu para a felicidade que explodia seu peito quando se deitava ao lado de Kirk e sequer conseguia lembrar do tempo que fora impedido de acessar tal sentimento, escondido nas sombras, cercado por criaturas que nasceram do terror e horror.
Ele agarrou a mão de Kirk, puxando a palma para seus lábios, beijando-os, procurando por certo conforto enquanto dizia:
─ As notícias chegarão tarde demais.
O macho de olhos leitosos fechou os olhos, apertando os dedos em torno da pele de Jolly, ainda podia sentir o sangue acumulando-se em baixo de sua palma, o ferimento continuava aberto, roubando sua força e substituindo-a pela fraqueza. Em silêncio, um pensamento agarrou sua mente, uma pergunta que jamais ousaria daria voz. Será isto que Lionel sentira em seus últimos momentos? Será que ele havia pensado naquilo que deixaria para trás? No sofrimento que encontraria um lar em seus coração? Em como Demetria poderia facilmente ter perdido uma parte sua quando retornou para a Corte, incapaz até mesmo de adormecer ou cortar os cabelos castanhos, honrando a pequena tradição que fizeram?
Kirk abriu os olhos, ou pelo menos esperava que tivesse o feito. A perda de sangue estava deixando-o tonto, agora era incapaz de utilizar sua magia para poder enxergar e mal sentia o próprio corpo.
─ Demetria, ela não pode perder esta corte, Jolrien.─ Murmurou, a voz fraca.─ Não depois do que sacrificou para tê-la.
Em resposta, o guerreiro apertou sua mão fortemente, uma âncora que o mantinha preso ali, naquele instante.
─ Não há como. Estamos cercados.─ Ele inclinou a cabeça para baixo, encostando a testa no peito de Kirk, tão levemente que mal sentia o peso.─ Não temos forças suficientes. Enviei boa parte dos Precursores e Illyrianos para as Myrmidons. São poucos que restam aqui, deveríamos ter transferidos todos para os palácios na noite passada. Agora...
Os ombros de Jolrien sacudiram e Kirk sentiu suas lágrimas misturando-se com seu sangue. Ele compartilhava do mesmo desespero. O que os deixava naquele estado não era a realização que esta é a última batalha que enfrentariam. Eles não os veriam novamente. Sequer puderam dizer adeus para suas crianças. Jamais poderiam agradecer a todos por ter sido a razão pela qual ambos levantavam-se de suas camas. Nunca mais ouviria a risada de June misturando-se com a de Demetria ou veria as travessuras de Zion e Ludovik.
Ah, sim, é aquela dor que obrigava Jolrien a chorar, derramando sua tristeza nele conforme a batalha os cercava com sua melodia que exalava uma promessa de um fim amargo. Kirk chorava quando apertou a mão de Jolrien, atraindo aqueles olhos cruéis para si.
─ Eles não podem tomar essa Corte, Jolrien. Não podem manchar estas ruas, não podem, você entende, não entende?─ Jolrien fez algo que só o vira realizar poucas vezes nos últimos séculos: encolheu os ombros. Kirk sorriu ao perceber o cheiro de nervosismo devorando a tristeza que assolava seus ossos.─ Se Keir deseja ter a Cidade Escavada, então, receberá poeira.
─ Prometi que jamais utilizaria este poder.─ Foi sua resposta, seguida por um suspiro.─ Viemos do nada e retornaremos ao nada quando a hora chegar.
Jolrien riu, fora quebrado e engasgado, sem nenhum traço da selvageria que escondia em seu ser ou a felicidade irradiante que possuía. Kirk forçou-se a sorrir, uma tentativa de encorajá-lo, entendendo o quanto aquele ato significaria para o guerreiro naqueles últimos momentos.
Eles mantiveram-se em silêncio por um pequeno instante, entorpecidos pela dor e a realidade que os atingira tão forte que roubara o fôlego, consciência e os abandonara nas memórias, nos sentimentos que partiam seus corações cada vez mais.
─ Obrigado...─ Kirk murmurou, enfim. Se aquele seria seus últimos instantes, ele os usaria e os dedicaria somente e unicamente para Jolrien, aquele que havia lhe dado um sopro de vida desde o momento que se conheceram.─ Obrigado por ter lutado por nós, por ter me amado e por ter me dado nossos filhos.
Jolrien sorriu e se inclinou. Kirk sentiu seus lábios pressionados contra os dele, uma calmaria o dominou quando o sentiu apertar sua mão. Uma memória lhe levou até o primeiro beijo que ambos compartilharam, a timidez, o desejo e a recém-descoberta de um amor doce e infinito.
─ Eu sempre irei fazer tudo por você. Nosso amor sempre será o meu crime favorito.─ Murmurou em resposta, sua boca ainda na dele.
Kirk sorriu, pois queria que esta fosse a última lembrança. Queria que Jolrien o visse sorrindo, imensamente satisfeito pelo destino que teve ao seu lado e transbordando o amor que dividiam, quando a morte os alcançassem.
Eles não disseram mais nada. E quando Jolrien afundou-se em seu próprio ser, buscando pelo poder que manteve adormecido desde o instante que abandonara seu próprio irmão para poder viver ao lado de Kirk, alcançando aquele pedaço sombrio que escondia, não poupando tempo ao moldá-lo com brutalidade, forçando-o a se tornar um desejo por destruição, tão avassalador que poderia desfazer qualquer um.
Kirk continuou apertando sua mão quando aquela magia os dominou, desfazendo-os em pó conforme expandia-se, infiltrando-se em cada ser, cada rocha e os destruindo por completo. A Cidade Escavada que fora construída através dos séculos desaparecendo em breves segundos, tal qual como um império humano havia feito, queimando de dentro para fora em um único dia.
E quando a morte estendeu uma palma, Kirk a aceitou, sua outra mão ainda apertando a de Jolrien. Ambos caminharam da mesma que sempre fizeram, juntos.
Exatas neste capítulo: 9808 palavras. Acredito que seja o maior capítulo que Corte dos Pesadelos já teve até agora. E, sim, sei que provavelmente querem me meter um murro mas, desde o começo, estava cravado que Demetria perderia muito mais nesta Guerra contra Hybern do que em todos os arcos.
Mas, enfim, queria só avisá-los que este terceiro arco seguirá a mesma linha do segundo arco, mesmos acontecimentos dos livros mas ocorrendo de uma forma completamente diferente. E queria destacar que uma coisa que sempre me incomodou em Acotar 3 é a forma que a guerra foi construída. Tipo é uma guerra, mas não há perdas. Não consigo ver a Feyre sentindo o impacto de tudo aquilo, ela nem ao menos demonstra, é apenas algo que dura algumas páginas em vez de continuar, cutucando-a, lembrando-a como aconteceu com a Nestha durante Acotar 4.
Só queria deixar claro que as coisas não vão acontecer fielmente como no livro e que podem ter surpresas boas ou más. Até porquê estou desenvolvendo personagens que foram deixadas meio de lado durante boa parte de Acotar 3.
Até o próximo capítulo! Obrigada pelo apoio!
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