Extra
Aviso de Conteúdo: Suicídio/Eutanásia
A porta do quarto estava trancada, claro. Escondia aquele lugar excessivamente decorado. As paredes eram cobertas de um papel de parede feito de veludo vermelho, condizendo com as sedas dos cortinados e da colcha que cobria a enorme cama de casal. O chão era de madeira, daquela madeira rica e escura que parecia ter sido roubada ao coração das mais idosas florestas, montada não nas mais comuns linhas retas, mas sim em padrões ziguezagueantes espiralando em direção ao centro do espaço. As mobílias também recusavam ter modéstia. A enorme cama, com a sua cabeceira esculpida e decorada a folha de ouro e com os seus postes a esticar-se ao teto, era feita da mesma madeira e toda esculpida à mão. Condizia com as mesas de cabeceira, com a cómoda, com os dois guarda-fatos que ladeavam a porta da casa de banho en suite e com a pequena secretária encostada a um canto, condizia com a profundidade do chão e com os detalhes a cada canto. Estava desfeita, com a coberta dobrada para trás com exatidão como que para mostrar os lençóis de algodão tão branco que parecia quase novo, parecia tão fofo e leve quanto nuvens. Mas se aquele conforto não chegasse, havia sempre o das almofadas que se apinhavam perto da cabeceira, organizadas, decorativas. As que estavam mais atrás vestiam fronhas brancas, a condizer com os lençóis, mas as mais da frente, as mais pequenas, estavam recobertas de sedas e de veludo de um vermelho tão rico quanto o de sangue fresco, umas com padrões e outras com as bordas crochetadas com fios de ouro. Os mosquiteiros estavam abertos. Eram brancos e transparentes, crochetados na ponta que se arrastava no chão, condizendo com as cortinas fechadas que filtravam a luz doirada da manhã. Só se ouvia o silêncio, o mais distante som do vento, lá fora, o mais ténue som da eletricidade que corria para o candeeiro que alguém tinha deixado ligado sobre a secretária, iluminando as muitas cartas, os montes de papel escrito à mão, cada um encimado por um pequeno bilhete para o identificar, escrito com tinta de ouro na mais bela caligrafia.
Entre os guarda-fatos, na parede oposta à cama, estava a porta da casa de banho. Por fora, era da mesma madeira de que o chão era feito, dos mesmos tons que se mostravam nas mobílias, esculpida com o mesmo cuidado que a cama e decorada pela mesma folha de ouro que parecia ser tão comum ali. Estava, trancada, claro, e bem trancada, visto que, por dentro, mais se assemelhava a uma porta de um cofre do que à de uma casa de banho. O metal destoava daquele interior, com o seu cinzento e os seus botões de código a tentarem o seu melhor por ser discretos naquela casa de banho que era tão opulenta quanto o quarto.
Não havia janela, ali. Havia apenas quatro paredes, todas iguais, todas de azulejos hexagonais brancos perfeitamente encaixados uns nos outros. Numa, havia um balcão de mármore que suportava dois grandes lavatórios e que se estendia um pouco mais para se encher com uma mão cheia de decorações. Sabão vermelho sobre um pratinho dourado. Um frasquinho de vidro com uma escova de dentes e um tubo intacto de pasta. Uma jarra branca cheia de rosas de vidro, porque as rosas verdadeiras murchavam e morriam e ali não havia permissão para isso. Perfumes, frascos e frascos de perfume, espalhados por cada bocadinho de espaço disponível.
Noutra, havia uma barra de metal que servia de bengaleiro. Pendurada dela havia apenas um vestido de cetim negro, com rendas a espreitar de sob a bainha, no decote e na ponta das mangas. O resto da roupa estava no chão, deitada ao acaso; a combinação, o corpete, o enchimento, todas as outras roupas sob a roupa. Estava tudo ali, sem qualquer ordem, como se tivesse caído ao chão e ninguém se tivesse dado ao trabalho de o apanhar. Numa prateleira à beira, junto de uma cadeira de ouro forrada a veludo vermelho, estava um outro conjunto
Não havia um único espelho na divisão. Além da água que enchia a banheira onde ela estava, não havia uma única superfície refletora. Ela estava nua, afinal, e já ninguém a via nua desde que ela era criança, e ela própria preferia evitá-lo sempre que podia. Bem, ninguém vivo.
O ar cheirava a vapor e a sabonetes e a máscara de cabelo. A água já estava mais morna que quente e mais fria que morna, e os dedos dela já se enrugavam sob a humidade.
As costas dela estavam cobertas e recobertas por cortes e cicatrizes horrorosas. Camadas e camadas de pele avermelhada, acumuladas ao longo dos anos e esticadas quando ela cresceu. Desciam-lhe dos ombros às ancas, cortes pequenos e fundos que lhe ziguezaveavam sob a pele para inchar para fora. As marcas que tinha nos pulsos eram muito mais leves, mais brancas que vermelhas, mas eram o suficiente para a incomodar. Por alguma razão usava sempre mangas que as pudessem tapar ou, na falta disso, pulseiras justas para não correr risco que elas escorregassem.
Aquilo já não importava. Já há muito tempo que ela não era aquela pessoa, aquela coisa quebrada e estranha.
Ela não se deixava chorar, nem em privado. Se calhar devia, especialmente naquela situação, especialmente sabendo que não ia voltar a sair daquele quarto. Era demasiado orgulhosa, demasiado teimosa para isso, demasiado perfeita para, mesmo às portas da morte, se deixar tomar pelas emoções.
Tinha chegado tão longe! Ela tinha começado por não ser ninguém, por ser mais um bicho a agarrar-se à vida no meio de tantos outros. Não tinha nome, não tinha família, mas era forte e inteligente e tinha saído daí com tudo o que precisava para sobreviver. Mas depois, quando sobreviver não foi o suficiente, ela lutou por viver, por jogar o jogo e ganhar. Quanta gente tinha a hipótese de começar sem absolutamente nada e, desses, quantos tinham tido a sorte de ganhar tudo? Se ela tivesse de adivinhar, a resposta seria um: ela, e ela apenas.
Era a única a ter chegado tão longe. Quanto maior o sucesso, maior a queda, supunha. O único problema que tinha agora era que era humana.
Ela era mortal. E ela ia morrer.
Não se conseguia lembrar do nome do raio da doença, e agora o médico já estava morto e ela não lhe podia perguntar. O que importava era que o seu tempo se estava a esgotar.
Ela recusava-se a ser operada, recusava-se a ir aos tratamentos. Era demasiado perigoso, era preciso demasiada logística, era demasiado difícil e arriscado e complicado. E, mesmo sabendo que, com os recursos que tinha à sua disposição, isso seria perfeitamente possível, ela não o queria fazer. Não queria definhar aos poucos, nem ser assassinada num qualquer quarto de hospital. Se ia morrer, ia ser nos seus próprios termos.
Saiu da banheira, ainda a pingar, e agarrou na toalha para se secar. Ficou assim muito tempo, vendo a água drenar pelo ralo da banheira aberta, aproveitando o calor do pano felpudo. Só se voltou a mexer quando aquilo já estava vazio, secando o cabelo e passando demasiado tempo a penteá-lo e a prendê-lo. As mãos estavam-lhe a tremer, e ela não sabia ser era da doença ou se era por estar a hesitar.
Depois vestiu-se. Ela adorava aquele vestido.
Era de cetim branco que brilhava sob a luz como asas de um anjo. A saia era tão comprida quanto sempre, longa o suficiente para lhe esconder as meias brancas e os sapatos dourados. Uma barra bordada a ouro, verdadeiro ouro, decorava-a a toda a volta, com padrões de rosas e de caveiras. A parte de cima era ainda mais decorada, com ramos de flores a espalharem-se da borda do fundo decote para preencher quase a área toda do tecido, escondendo o branco sob o trabalho manual do bordador. A gola era alta, atrás, e descia para lhe mostrar o peito por maquiar. As costas estavam tão decoradas quanto a frente, marcadas com um par de asas fechadas cujas penas eram feitas de um fio de prata para se distinguir melhor do ouro. As mangas eram largas, compridas, imitando as penas das costas para que, a cada movimento que ela fizesse, parecesse mais perto de levantar voo.
Depois maquilhou-se. Escolher as cores era simples e, em menos de nada, ela estava pronta.
Cheirou os perfumes um a um, à procura de um perfeito. O primeiro era frutado demais, demasiado brincalhão. O segundo cheirava a flores, a primavera, a felicidade; dificilmente o correto para a situação. Teve de passar por uma dezena deles até estar satisfeita.
Suspirou. Ela tinha-se decidido a fazer isto, mas estava a empatar. Será que tinha mudado de ideias? Se havia algo impossível de desfazer, seria aquilo. Já estava tudo em ordem, já tinha tudo escrito, todas as pessoas com indicações do que fazer assim que aquilo acontecesse, toda a operação pronta para continuar sem si. Nada a impedia de esperar mais um dia ou dois, pelo menos... Sobreviveria até lá, não?
Cada dia tinha menos certeza disso. O seu corpo estava a começar a falhar, e as dores estavam cada vez piores, especialmente porque ela se recusava a tomar qualquer tipo de medicação para a ajudar nisso. Tinha visto o que é que aqueles medicamentos faziam às pessoas, e não queria ir pelo mesmo caminho.
E depois havia a carta que tinha mandado darem à sua princesinha, mais tarde nesse dia. A explicação de tudo, e a chave para aquele quarto trancado.
Suspirou. Tinha que fazer aquilo.
Fechou o frasco de perfume. Pegou na jarra de rosas de vidro e, tirando o bouquet de lá de dentro, virou-a sobre a mão para pegar no que precisava. Tinha tudo planeado, tudo ordenado, como sempre. Aquela pequena ampola já estava ali há mais de um ano, desde a primeira vez que tinha ali ido desde o seu diagnóstico, pouco antes de ter tomado Branca de Neve sob a sua alçada. Aquilo estava pronto desde o início. Foi das primeiras decisões que tomou, ao saber.
Já estava tudo pronto. Aquilo que não tinha ainda contado ou gravado ou transmitido de uma outra forma já estava registado, escrito à mão, organizado nos montinhos de papel já legendados. A maioria dos seus segredos estavam ali, sob a secretária, iluminados pela luz elétrica que refletia a tinta dourada dos títulos. O resto estava algures naquela casa, nas mãos de um qualquer empregado ou pousada sobre uma cama, antes de a sua princesa a encontrar. Claro que havia alguns que levaria com ela para a cova.
Bebeu tudo de uma vez.
Teve tempo de se deitar sobre a cama e de adormecer com a cabeça sobre as almofadas. No fim, sempre foi incapaz de conter aquela última lágrima.
A Rainha está morta!
Longa vida à Rainha!
.....
Nota da Autora
A vida não é justa, mas não se enganem, porque também não é injusta. É simplesmente aleatória. É injusta quando coisas boas acontecem a gente má e vice-versa, e é justa quando coisas más acontecem a pessoas más e coisas boas acontecem a pessoas boas.
A morte da Rainha? Bem, isso não é culpa da vida, é culpa minha 😂
Alguns de vocês são escritores, right? Algumas pessoas planeiam tudo ao milímetro, criam mundos na sua mente, alinhavam tudo para ter a certeza que cosem a direito. Para mim, principalmente neste projeto, é mais como se eu estivesse a descobrir algo que já aconteceu. Não matem o mensageiro!
Mas bem, agora já sabem, meus amores. Já sabem porque é que a Rainha andava distraída, porque é que começou a treinar Branca de Neve, porque é que decidiu chamar o Jornalista mesmo sabendo o risco que estava a tomar ao fazê-lo. Ela é teimosa, e continuou teimosa até ao fim... even if it kills her.
Além disso... Uma jarra de veneno com rosas a sair do topo? Does it sound familiar?😂 😂
Tive que chamar o meu Eça de Queiroz interior para estas descrições. Bricadeiras à parte, é mesmo neste tipo de escrita que eu me sinto mais confortável. Porquê ter ação, ou um plot, quando se pode passar 1700 palavras a descrever um quarto, uma casa de banho e um vestido, por essa ordem??
Eu duvido que vá descrever o que acontece depois. Não sei como é que Annemie Falke aka Branca de Neve reagirá ao abrir a carta, ou ao correr para o quarto para a encontrar assim. Honestamente, nem sequer quero pensar nisso...
À partida, não haverá mais Corte das Mentiras —pelo menos, não nesta iteração— e, portanto, este é o nosso "adeus". Por agora ^3^Beijinhossss!!!
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