Capítulo 2
Deixou o condutor abrir-lhe a porta do carro. O calor húmido colava-se-lhe à pele e fazia o seu cabelo ficar ainda maior. Desceu para o chão calcetado sem se apoiar no servo que, depois de ela se afastar um pouco, trancou o veículo para depois se afastar em marcha lenta.
O palácio estava exatamente igual ao que ela se lembrava. Fachadas de mármore branco escondidas por entre o verde perigoso da selva. Três andares, dez janelas em cada um, as dos andares superiores tapadas por estores para o vidro não refletir o sol e as da sala de bailes no andar de baixo tapadas só por dentro com cortinados vermelhos. A única janela que não estava assim tapada era no segundo andar, a segunda do lado direito, e ela tomou nota disso. Possivelmente abrigava um atirador furtivo.
Passou pelas largas portas de entrada, duvidando se a falta de oposição dos guardas ali colocados se devia à falta de zelo ou a terem sido previamente informados da sua chegada. Conhecendo a anfitriã achava ser a segunda, o que significava que tinha sido descuidada em algum sítio e que a Rainha tinha conseguido adquirir uma imagem da sua face. Não achava que fosse num dos leilões anteriores, que as regras que a Rainha criava eram apertadas e ela insistia em segui-las como todos os outros. Mas seria isso só mais uma mentira, teria-a subestimado?
Se soubesse que não seria travada, talvez tivesse trazido os seus venenos e pelo menos uma arma. Apenas como garantia, claro, que desta vez não estava ali como assassina.
Seguiu diretamente em frente para a sala de baile, ponderando qual seria a melhor maneira de realizar a sua missão. O objetivo podia ser simples, mas neste curto percurso ela já tinha visto uma data de problemas e nenhuma solução. Uma empregada passou com um tabuleiro intocado, e ela surripiou um copo de wiskey antes de se imiscuir na multidão. Provou o álcool e não ficou desiludida. A Rainha podia ser excêntrica a desperdiçar o dinheiro de sangue em luxos totalmente desnecessários, mas pelo menos sabia bem escolher o que dar aos convidados.
A Aranha ouviu e observou. Como de costume, os convidados eram dos mais variados tipos, e até para ela era difícil memorizar as conversas quando estavam em tantas línguas e dialetos diferentes. Não queria saber do peixe miúdo, dos vários grupos que só ali estavam para inflacionar os preços no leilão e, de entre a Corte, só lá estavam ela e a Dragão. A velha conversava com a Rainha num canto que seria discreto não fosse o vestido excêntrico e brilhante, branco e dourado da anfitriã.
Caçou as conversas dos convidados, só dos importantes o suficiente para que colecionar informações sobre eles pudesse ser rentável. E, enquanto o fazia, analisava o ambiente.
Havia pelo menos três saídas daquela sala. A porta principal seria trancada assim que os restantes convidados chegassem, como sempre, e as duas portas ocultas na parede estavam a ter constante uso pelos empregados e escravos que iam e vinham de onde a comida era preparada. Parecia-lhe que as portas levavam a um corredor de serviço em vez de diretamente à cozinha, mas era impossível perceber até onde aquele caminho ia. A utilidade que poderia tirar dele seria diretamente proporcional à quantidade de áreas a que ele lhe daria acesso.
Se fosse possível encontrar um mapa daquele lugar, ela tê-lo-ia feito. Mas ninguém sabia qual arquitecto tinha projetado aquele lugar, ou que trabalhadores o tinham construído. Nem sequer tinha conseguido descobrir quem teria sido responsável pela preparação do lugar, ou que empresa tinha transportado os materiais para uma clareira artificial nas bordas da Amazónia. As poucas dicas que os seus informantes lhe venderam não tinham dado em nada. Perdeu demasiado tempo a procurar, a tentar desatar os nós de fachadas e offshores e dinheiro vivo, uma teia tão densa que até a Aranha tinha dificuldade em a atravessar. Desperdiçou demasiado tempo com isso para, no fim, encontrar apenas uma empresa morta e sem registos com o nome criativo de "Tanto Esforço Para Quê?". Não podia dizer que fosse fã do humor da anfitriã.
Falando do diabo, Rainha aproximou-se, quase que deslizando por entre a multidão. Ela sorriu-lhe. Não haveria forma de evitar chamar atenções com aquele monte de jóias e brilhantes a falar com ela, e o máximo que podia fazer era encurtar a conversa.
– Bem vinda! – disse a Rainha, abrindo os braços e o sorriso falso.
Ela respondeu dando um passo atrás para a evitar delicadamente e transformando a face numa máscara de amabilidade.
– É bom saber que aceitaste o convite. Não chegaste a tempo de saber as ofertas que há este ano.
– O convite era irrecusável, alteza. – A Rainha sorriu, talvez incapaz de detetar o escárnio escondido naquela frase. – E suponho que se a visita do costume ainda está na mesa, pouco perdi.
A mulher riu cristalinamente. – Claro, Aranha. Como sempre! Uma das vantagens de chegar a tempo, suponho, – suspirou, desviando os olhos para a porta de forma pouco discreta.
Cada movimento tinha um propósito. Com aquela mulher, era quase impossível diferenciar até onde a sua personalidade era real e a partir de onde a máscara de mentiras começava. Posicinava-se perto da multidão, a zona onde dominava, com o vestido longo a esconder os pés. Era inútil tentar ler-lhe a expressão ruguenta, quando até os pequenos movimentos dos olhos eram coordenados para a enganar. A voz era clara e límpida, quase um canto, e não tinha sequer o mais pequeno indício de um sotaque.
– Pois bem, – continuou ela, ao perceber que a Aranha não lhe responderia se não fosse forçada. – Eu chamo quando for hora. Se estiveres inclinada a licitar, está claro.
– Ficarei à espera, – respondeu. Podia não estar ali pelo leilão, mas ter direito a visitar os bastidores trazia consigo outras vantagens que com certeza perderia se se queixasse.
– Fica à espera dentro desta sala, então! – Ela escondeu a ameaça com o sorriso de dentes perfeitamente alinhados. – Tens que provar as bebidas; sabes que tenho bom gosto para a escolha.
Riu, fingindo ser um dos seus interlocotores normais. – Estarei por cá.
A mulher olhou-a de alto a baixo, mas a Aranha não temeu, endireitando-se para enfatisar a diferença de alturas. Rainha acenou curtamente com a cabeça, lançando-lhe mais um sorriso desarmante antes de se voltar a embrenhar na multidão sobre a qual reinava.
Devia ter pensado melhor antes de aceitar aquele trabalho. Se houvesse uma única pessoa no mundo com os segredos fora do seu alcance, seria a que se autointitulava de Rainha. Mesmo ali, no seu ambiente natural, num baile de gala na sua própria casa, a mulher não baixava a guarda.
Aranha entrou no nó de gente que conversava e bebia e dançava no centro da sala. Ficou perto o suficiente para poder ouvir o que ela dizia. Foi discreta, mudando de grupo em grupo para se envolver nos crescendos das conversas. Parecia ser só mais uma convidada como os outros, e para um olho mais atento parecia que estava a espiar numa outra pessoa.
A Rainha mudava de línguas sem dificuldade, deslizando de uma para outra com um carisma inigualável. Nas raras vezes em que mostrava sotaque, era sempre um diferente. Em Cantonês, parecia ser russa, mas quando falava russo fingia-se francesa e em alemão parecia italiana. E, claro, em inglês tinha um sotaque transatlântico; a limpeza de aulas de dicção para falar como o faziam num lugar inexistente. Eram peças de puzzles distintos que não encaixavam juntas.
Não lhe admirava que ninguém soubesse a origem da Rainha, quando ela se dava a tanto trabalho para o esconder.
Desistiu de a espiar. Em vez disso, contou os movimentos dos empregados, procurando um padrão ou uma abertura. Fez-se discreta, colocada perto da parede a bebericar o seu álcool, sendo já longe da primeira a se desviar da parte mais animada da sala para descansar um pouco.
Não era invisível, mas era como se fosse. Não era pelo seu aspeto, que a pele cor de madeira e o cabelo encaracolado o suficiente para se segurar em pé numa coroa natural nunca lhe tinham feito favores nesse sentido. Era pelo treino, pela forma como se separava dos grupos para esconder a sua altura, pelo vestido de gala mais básico em toda aquela sala, pela forma como os seus passos não faziam som e como os seus olhos numca desafiavam ninguém se ela não o quisesse. Pertencia ali e, por isso, ninguém lhe dava muita atenção.
De todos os lugares em que tinha trabalhado, aquele era o único em que tinha reputação. Aparecia sob o próprio nome e a própria face.
Não era nada mais que uma aranha na parede. Era discreta, ameaçadora no silêncio. E muito mais assustadora quando saía de vista.
Deslizou para dentro da porta de serviço quando estava certa de não ter olhos sobre si. Acordou os ouvidos e andou um pouco mais rápido ao perceber o movimento caótico dentro da cozinha. Não estava a planear ser apanhada.
Era raro entrar numa área que não conhecesse. Preferia estudar tudo antes, evitar surpresas. Mas ali não tinha esse luxo.
Passou para uma zona com as luzes apagadas, o que a acalmou. Seria improvável que o pessoal da cozinha por ali andasse. Manteve os olhos o mais atentos que podia nquanto esperava que eles se habituassem à escuridão. Não era por acaso que as luzes do palácio eram tão fortes. Usou o tato para procurar uma porta que a levasse para as áreas restritas da casa.
A Rainha tinha muitas casas e palácios espalhados pelo mundo fora e tinha muitas mais bases de operações. Nenhuma das que Aranha visitara lhe tinham dado as respostas que queria.
Desceu umas escadas estreitas de madeira que não rangia. Se houvesse provas escritas, a Rainha mantê-las-ia por perto. Os quartos ficavam no andar de cima e, visto que haveria uns poucos seletos a ali passar a noite, ter os documentos comprometedores o mais longe possível faria sentido.
Passou umas poucas portas estreitas, tocando-lhes nos puxadores para lhes julgar a quantidade de uso. Este era o primeiro que tinha qualquer tipo de textura.
Estava trancado, obviamente. Os outros também tinham estado; não era surpreendente.
Olhou em volta. O corredor era longo e escuro. Não tinha mobília nem esconderijos, e as portas que lhe poderiam servir de escape estavam firmementr trancadas. Seria perigoso ser apanhada com as ferramentas a tentar destrancar a porta, principalmente se estivesse certa e a Rainha tivesse ali provas dos seus segredos. Por esta altura, a sua ausência talvez começasse a ser notada.
Contou as portas ao fazer o caminho de volta. Pelo menos agora sabia onde procurar.
– Não sabia que tinha aranhas nas minhas paredes. O que é que pensas que estás a fazer?
A Rainha esperava-a no topo das escadas. Como não a tinha ouvido a aproximar-se? O vestido longo deveria fazer som ao roçar o chão, e o espaço era silencioso o suficiente para...
– Fiz-te uma pergunta.
Aranha olhou-a, desafiando-a com o olhar. A Rainha estava de braços cruzados e esgar na cara mal iluminada. Tinha abandonado a postura delicada em prol de uma posição contoladamente agressiva, olhando de cima para a espia. Em qualquer outra pessoa, essas táticas talvez tivessem funcionado.
– Sabes que não consigo resistir a bisbilhotices. Fiz carreira disso.
Ela acenou com a cabeça. – Só é crime se não fores apanhada, e aqui estou eu. Visto que não trabalhas para mim, que tal saíres dos corredores dos criados?
Aranha usou a escuridão para esconder a sua surpresa. Sorriu largamente, começando a subir as escadas para voltar ao baile. A Rainha estendeu a mão, impedindo-a de passar.
– Dá cá.
Aranha fez-se de desentendida. – O quê?
– Conheço mentirosos bem melhores que tu. – Ela olhou-lhe diretamente para o peito, onde um pequeno kit de ferramentas estava escondido. – Dá cá.
Ela cedou. Não valia a pena dar luta quando cada segundo que ali passava era um segundo desperdiçado. Além disso, tinha sempre outras maneiras de abrir portas proibidas. Pegou no pequeno saco e pousou-o, anda quente, na mão estendida da Rainha.
A mulher ergueu uma sobrancelha, provavelmente suspeitando que aquilo não seria a única coisa que Aranha trazia escondida, mas não insistiu e deixou-a passar.
Ela odiava ser seguida. Na sua situação e naquele corredor estreito não tinha maneira de o evitar e por isso cedeu, fazendo todo o caminho de volta à entrada do baile com os olhos velhos da sua captora a espetarem-se-lhe na nuca.
Passaria o resto do seu tempo a ser observada, o que tornaria tudo mais difícil do que tinha de ser. Mesmo de volta à sala principal, com os olhos doridos por causa da luminosidade, seria incapaz de se esconder por entre a multidão para se tornar invisível. Era o preço que pagava por ter sido apanhada.
A Rainha já tinha voltado ao seu eu público, sorrindo e dançando com os convidados, segurando um copo de champagne que se esvaziava lentamente embora ela nunca fosse vista a beber dele. Aquelas mudanças rápidas eram normalíssimas para ela.
Era difícil saber se a personalidade que apresentara em privado era uma refleção mais pura do seu eu ou se era apenas mais uma fabricação. A Aranha achava aqueles jogos de influência uma necessidade e não um prazer, e talvez por isso a Rainha se tornasse tão direta ao ponto quando estava só com ela.
Mesmo se fosse uma versão mais real dela, isso não lhe tiraria a habilidade de mentir. "Visto que não trabalhas para mim" tinha-lhe parecido honesto, mas essa não seria a primeira vez que tinha subestimado a Rainha e agora temia que ela fosse mentirosa o suficiente para a iludir.
Tinha achado que o seu cliente fosse a Rainha. Ela saberia que mais ninguém se igualava à Aranha em qualidade e que se houvesse uma mais pequena falha na segurança em que se rodeava, ela a encontraria. Tinha os fundos e os contactos para a contratar. Mas depois de ouvir aquela frase, Aranha já não tinha tanta certeza.
Talvez fosse esse o seu objetivo.
^~^
Oi gente! Mais um "capítulo" desta experiência. Acham que o estilo de narração soa diferente do do anterior? Que me conseguem dizer da personalidade do narrador só de os ouvir a pensar?
Estou ainda a ter dificuldade a criar essas diferenças, mas é por isso que estou a treinar! Têm opiniões sobre isso? Sugestões? Dicas? Recursos?
Bem, até quando me apetecer fazer um update. Não há promessas de quando.
Beijinhos!
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