Capítulo 16
–Estás a falar a sério? –disse ela, correndo atrás da Rainha. Pelo menos hoje estava de fato, porque se estivesse de vestido e de tacões não teria a mínima hipótese de a alcançar. –É por isso que eu estou aqui?
–Claro, princesa, –respondeu ela, sem nem olhar para trás enquanto continuou a descer o corredor.
–E estavas a pensar contar-me quando... –perguntou, tentando ultrapassá-la no corredor para a forçar a responder mas, mesmo de vestido, a outra era mais rápida que ela.
A Rainha encolheu os ombros. –Quando fosse hora, liefde. Quando estivesses pronta.
–Pronta para?
Ela abriu uma porta de quarto e, com a mão, indicou-lhe que entrasse. –Não sejas tonta, Neve. É melhor falarmos disto em privado.
–Era melhor termos falado disto antes, para eu não o descobrir ao mesmo tempo que os convidados! –respondeu. Mesmo assim, entrou na sala.
A divisão era uma pequena biblioteca-barra-sala de lazer, com as paredes forradas com estantes cheias de livros, um par de sofás e uma mesa de xadrez montada a um canto. Resignada, Branca atirou-se para um dos sofás enquanto a Rainha trancava a porta.
–As paredes têm ouvidos, –avisou a mais velha.
–Eu não quero saber. Também os tenho, e agora quero que me expliques o que é que acabou de acontecer.
–Fecha as pernas, que uma senhora não se senta assim, –ralhou, segurando a saia ao se sentar frente a ela. –Branca de Neve abriu-as mais, só por irritação, fazendo a outra suspirar. –Olha, se eu não te contei isto mais cedo foi porque achei que era óbvio. Se o título de "princesa" ou o facto de seres o meu braço direito não te avisou, isso é por estupidez tua.
–Eu vim para aqui por um convite teu, deixa-me lembrar-te! E só o fiz para criar contactos e jogar a um nível mais alto, não para herdar a porcaria de um império inteiro que não tem nada a ver com a minha área!
–Relaxa, boneca. Já tenho tudo aviado para quando sair, com outros herdeiros na linha. Gente que sabe o que faz, não gente como tu. Não vais ficar com os meus negócios.
Ela hesitou. –O que foi aquilo, então?
A Rainha sorriu. –Tu vais ficar com o meu nome, princesa. Com o meu título, melhor dizendo, e toda a reputação que traz com ele. Ficas com o Leilão e com as festas que queiras manter, com este palácio e com outros que tal, e com toda uma rede de funcionários, empregados e contactos que farão tudo o que lhes mandares.
Branca de Neve não sabia como reagir. Aquilo era impossível, certo? Ela era uma química, uma cientista. Tinha ambos os pés postos do lado errado da lei, claro, mas isso não eram qualificações para o que raio que aquilo fosse em que a Rainha a tinha metido! Parte dela estava lisonjeada, claro, que aquilo devia ser um grande voto de confiança em si... mas o resto estava a dançar entre o irado por só estar a descobrir aquilo agora e o assustado de não estar à altura.
A Rainha deu-lhe um sorriso reconfortante. Inclinou-se para a frente e tomou as suas mãos na dela. Mesmo com elas geladas e cada vez mais ossudas, aquele toque era reconfortante. Ela já tinha desistido de resistir àquelas manipulações que ela lhe fazia, principalmente em casos destes onde ambas beneficiavam.
–Vais fazer um trabalho incrível, pequena. Não tenho dúvidas disso.
Ela engoliu em seco, discordando silenciosamente. A outra reparou e, levantando-se, plantou-lhe um beijo suave na testa.
Era preciso tanto esforço para se lembrar que ainda estava zangada com ela...
–Porque é que não me contaste mais cedo? –perguntou a medo.
A Rainha parou por um milisegundo. –Segurança, –respondeu. Virou-se para se ir sentar à beira do tabuleiro de xadrez, começando a montar o lado das pretas. –Tu percebes. Eu confio em ti, liefde, mas as paredes têm ouvidos e eu estava a jogar isto o mais próximo do peito que consegui.
–E porque é que me contaste agora?
Ela hesitou. Foi o mais minúsculo momento, a mais pequena pausa para reajustar a resposta, mas Branca de Neve tinha aprendido como identificar e ler as mais pequenas falhas com a melhor professora possível.
A Rainha estava a mentir.
–Porque estás pronta, princesa. –Virou-se de volta para ela, com uma expressão mais suave. –Este leilão serviu como uma espécie de teste, e pode-se dizer que eu fiquei impressionada com o que vi. Estás pronta para tomar o meu lugar.
Outra mudança ligeiríssima nessas últimas palavras, a mais pequena redução no volume. Mas essa ela não estranhou. Claro que a Rainha não estava certa de a querer tomar o seu lugar, provavelmente não estava certa de querer abdicar, independentemente de a favor de quem fosse.
A Rainha acabou de montar as peças pretas, e depois chamou-a para se sentar à sua frente. Ela obedeceu.
As peças não eram de madeira, eram feitas de um vidro translúcido que brilhava quando ela lhes mexia.
–Isto é só um jogo, princesa. Um jogo em que és a peça e o jogador ao mesmo tempo. –Sorriu, o olhar a tornar-se novamente desfocado, tão fosco quanto as peças em que tocava. –Tal como no xadrez, é tudo uma questão de equilíbrio. Cada peça tem o seu lugar, o seu serviço a fazer, o seu modo de ataque.
–Oh?
A Rainha sorriu e pegou num dos cavalos, movendo-o para a frente no L do costume. –Eu costumo pensar nisto desta forma. A Aranha é o cavalo. Passa por qualquer obstáculo e é escorregadia para caraças, mas tem de estar perfeitamente posicionada para atacar. Já o Titereiro... –voltou a pôr o cavalo no sítio. Pegou no bispo, sentindo-lhe o peso antes de o colocar no centro do tabuleiro para exemplificar os seus movimentos. –... é o bispo. É indireto mas perigoso, se lhe deres hipótese disso. Mas é limitado. –Voltou a colocá-lo no sítio. –Só pode andar ou nas brancas ou nas pretas, dependendo do onde começa, e não tem hipótese de mudar isso depois.
Branca de Neve sorriu. –E tu és a rainha, claro.
–Claro.
–E a Dragão? Ou o Armeiro?
Ela sorriu. –Bem, eles não estão bem a jogar o mesmo jogo que nós. A Dragão já vem da geração anterior, sabes, e o Armeiro chegou onde chegou só pelo que tem, não pelo que é. Mas se eu tivesse de decidir...
Olhou o tabuleiro por mais um segundo, com um meio sorriso na face. Depois, sem palavras, pegou em ambas as torres e trouxe-as para o centro do tabuleiro, lado a lado.
Branca de Neve sorriu. –Claro. Faz sentido. Mais diretos que eles não podia haver.
Ela riu-se. –Eu acho que é óbvio, não é? Às vezes, força bruta é mesmo aquilo que é necessário.
–Quem é o Rei? –perguntou, curiosa.
–Ninguém é importante o suficiente para que a sua ausência cause o fim do jogo.
–E... –hesitou. –Que peça dirias que eu sou?
Quanto àquilo, a Rainha teve de pensar. Passou o toque por elas todas, tomando o seu tempo ao analisá-las. Depois, sorriu.
Neve ficou vagamente desapontada ao vê-la pegar num peão.
–Tu, meu amor, estás aqui. –Empurrou a pequena peça até ao outro lado do tabuleiro, a um quadrado do fim, e depois ficou a girá-la sobre a circunferência da base. Com a outra mão abriu a pequena gaveta de debaixo da mesa e tirou de lá outra rainha, uma cópia exata da primeira. –Estás tão, mas tão perto do sucesso, e não tens nada a impedi-lo. Só mais um passo, e...
Devagar, dramaticamente, ela empurrou o peão até ao último quadrado. Pegou nele, escondendo-o envolvido pelos dedos da mão, substituindo-o pela rainha.
Sorriu, e Neve não se pôde impedir de lhe sorrir de volta.
–Aproveita a posição, liefde. O jogo está a teu favor. –Olhou-a nos olhos, focada, com uma expressão suave e maternal. –Tu vais dar uma ótima Rainha.
Ela engoliu em seco, com todas as dúvidas a correrem-lhe de novo no sangue.
–Isso quer dizer que vais mesmo embora?
O sorriso tornou-se-lhe triste. Ela acenou com a cabeça.
–Eu não quero o trono. Eu não vou ser como tu. Por mais que treine, por mais que queira, eu não vou ser como tu. Já me passaste tanto tempo a ensinar, e eu nem sei do que é que preciso para...
–Shhh, –disse a Rainha, interrompendo-lhe os pensamentos. –Também não é suposto seres como eu. Hás-de arranjar o teu próprio estilo, a tua própria forma de ganhar, as regras que quiseres criar... –Levantou-se da cadeira e aproximou-se dela. Brincou-lhe com os cabelos, e Neve deixou-se estar sentada. –O tabuleiro vai ser teu e, a partir daí, as minhas regras já não se aplicam.
–Vais-me abandonar assim? –perguntou ela, mais emocionada do que pensava que ia ficar, mas não fazendo por o esconder. –Eu preciso de mais treino, seja lá o que quer que isso quer dizer; eu preciso de saber melhor como as coisas funcionam...
–Vais dar uma ótima rainha, vossa Majestade. Tens-no no sangue.
–Não te vais embora até eu estar pronta, pois não?
–Oh... –Ela pôs-lhe os braços à volta do pescoço, abraçando-a, e Neve encostou-se mais para trás. –Tu já estás pronta, amor, –mentiu. –E eu não te vou abandonar. Não se tiver escolha.
Ela ignorou as dúvidas que sentiu ao ouvir aquela última frase. Para já, só se queria focar em ser reconfortada. A ira já estava esquecida há muito, claro, mas a indecisão e o medo ainda lhe nadava nas veias, mas até esses estavam a sair lentamente pelo calor reconfortante que a mais velha emitia.
–Obrigada, –disse, assim que se sentiu bem o suficiente para se livrar do abraço.
A Rainha sorriu. –Vamos, então? Se a Aranha não estiver à porta a escutar, já devem ambos estar prontos para sair.
Ela olhou para a porta, incerta se aquilo seria uma piada ou não, mas depois acenou resoluta com a cabeça. –Certo.
Já estavam no corredor, a caminho da entrada —sem se terem cruzado com a Aranha, acrescente-se— quando ela teve a coragem de dizer:
–Não penses que eu te perdoo por não me teres contado mais cedo.
A Rainha riu-se. –Não me atreveria a tanto.
.....
Nota da Autora:
Eu estou a gostar de ver a relação entre estas duas. Não tomei a Rainha como carinhosa (e talvez ela não seja; conhecendo-a, é bem credível que esteja a mentir quanto a isso também...) mas, vendo-a ser assim com a Branca de Neve, parece algo quase natural, sabem? Parece que encaixa no verdadeiro puzzle que é esta mulher.
Falando sobre isso: têm teorias? Estamos a ver cada vez mais dela, e eu estou a fazer de propósito para deixar um montão de detalhes para que tudo faça sentido mais tarde. O que é que ela quer dizer com "se tiver escolha"? Há algo ou alguém que a esteja a forçar a tomar esta decisão?
Acham que ela escolheu bem, ao pôr Neve no trono, ou acham que esta rapariguinha tem mais olhos do que barriga para o banquete que a anfitriã lhe serve?
Ah, e metáforas de xadrez? *chef's kiss* Para mim sempre foi óbvio que a Rainha via isto tudo como um jogo e, conhecendo-a, xadrez é a opção óbvia para as suas metáforas. Mas aquilo que é óbvio para mim, que tenho estas personagens a viver rent free nos meus pensamentos, nem sempre é óbvio para alguém que não seja telepático, e por isso tive que o tornar claro no próprio texto. Mais óbvio que isto não podia ser!
Bem, já são quase duas da manhã quando eu estou a escrever isto, então foi dar beijinhos e desaparecer por agora. Espero que tenham gostado!!!
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