Capítulo 14
Ele acordou cedo. Ou, em vez de acordar, talvez a sua situação fosse mais aptamente descrita como "finalmente desistir de adormecercer". Tinha passado toda a noite a revirar na cama, enrolado em almofadas moles e lençóis com cheiro a hotel. Se o colchão fosse mais pequeno, ele teria certamente caído. Das talvez seis horas que passou deitado, talvez tivesse, com sorte, conseguido duas horas de sono.
A única parte boa disso é que já tinha conseguido escrever alguma coisa. A qualidade podia ser duvidosa, mas isso era um problema para o futuro, não era mesmo? Se aquela mulher ia rever o artigo (e provavelmente cortar todas as partes de que não gostava), mais lhe valia ter o máximo de palavras prontas na esperança de que pelo menos algumas sobrevivessem ao processo.
Já tinha percebido o quão louco tudo aquilo era. Tinha sido raptado e agora estava trancado numa cela no meio da selva. Uma cela muito bem decorada, admitia, e excessionalmente confortável. A festa tinha servido de distração, mas agora, com a dor de cabeça trazida pela ressaca e duas dúzias de papéis cobertos de rabiscos a realidade começava a assentar.
E se ela não o deixasse sair? Não fazia ideia se ela cumpria as promessas. E se ela se fartasse e decidisse que ia destruir-lhe a família na mesma? Ele não tinha podido dizer "não", mas agora arrependia-se de nem ter tentado!
E se o seu editor não aceitasse publicar o artigo? E se a polícia o apanhasse e interrogasse antes que pudesse ser impresso, e aí o que é que acontecia? Tinha todo o direito de proteger as fontes e, mesmo que os quisesse ajudar, também não lhes podia dizer muito... Será que a sua raptora iria atacar a sua família por coisas fora do controlo dele?!
Quando a porta se abriu, ele gritou de susto, e depois encolheu-se pela pontada de dor que o som lhe causou. Mas era só uma empregada que lhe vinha trazer o prqueno almoço. O guarda armado que a acompanhava ficou do lado de fora do quarto.
_Desculpe, _pediu ele, pondo-se em pé. _Como pode imaginar, estou ligeiramente em alerta.
A menina olhou-o com pavor nos olhos antes de acenar com a cabeça, e ele percebeu que ela saberia perfeitamente do que ele falava. Pousou o tabuleiro recheado de comida sobre a cama.
Seria uma escrava, também? Estava bem vestida, com o cabelo aprumado e a pele tostada da cara desprovida de maquiagem. Tazia um avental branco atado à cintura e as mangas ligeiramente arregaçadas, mostrando as cicatrizes que tinha à volta do pulsos.
Tendo feito o seu trabalho, virou-se para sair.
_Espere! _pediu ele. Quando ela se virou ele percebeu que não sabia o que dizer. Aclarou a garganta. _Não sei se sabe o porquê de eu estar aqui, ou... Bem, eu estou a escrever um artigo sobre o Leilão e a Rainha, e seria fantástico se a pudesse entrevistar.
A empregada abriu muito os olhos, dando-lhe a certeza de que o tinha compreendido, mas estava congelada no lugar e não conseguiu falar. O guarda que até aí tinha estado à porta, a observar, entrou no quarto com uma mão no coldre e estendeu a outra sobre o ombro da mulher, possessivo.
_Não se esqueça que é aqui prisioneiro, Vilanova.
A empregada disfarçava mal o medo que a cobria. Ele ergueu as mãos e deu um passo atrás.
_Desculpe. Eu sei que sou, e sei que não tenho poder nenhum aqui, mas... Mas eu só quero fazer o melhor trabalho possível. Não quero desapontar a Rainha, e... e...
_Ela não pode falar consigo, disse o guarda, empurrando a escrava em rireção à porta. Ela obedeceu. _Se quer uma entrevista, vai ter de a pedir à Rainha.
Ele suspirou. _Não posso, se estou trancado neste quarto, não é? Podem pelo menos passar-lhe a mensagem? _O guarda grunhiu, e ele baixou um pouco as mãos. Estava tão farto de ter medo! _É demasiado difível escrever um artigo sem fontes nem nomes nem recursos... e já nem peço internet, só pelo menos a porra de um computador! _Nem tinha percebido o quão irritado estava até esse preciso momento. Raios à falta de sono.
_Verei o que posso fazer.
O guarda saiu do quarto e trancou a porta ainda antes que ele pudesse agradecer.
Sentou-se de volta na cama, cansado. Só estava a piorar a sua situação, e sabia-o bem, mas tinha dormido mal, estava com uma ressaca do inferno e, oh, pequeno detalhe, estava preso no meio da selva sem previsão de quando, nem sequer de se, seria libertado. E a sua paciência tinha limites.
Sentou-se na borda da cama a petiscar o típico pequeno-almoço inglês. É que o tabuleiro tinha mesmo de tudo. Além dos cereais e do leite, havia um prato com dois ovos estrelados, uma omoleta, quatro tiras de bacon e dois hash browns, tudo acompanhado por aquela mistela estranha de feijão e tomate. A acompanhar havia um prato de fruta e, para beber, havia chá, claro, mas também uma garrafa selada com um bilhete por baixo. Abriu-a e assustou-se com o quão terrível o cheiro era. Fechou a tampa, enojado, e pegou no bilhete para o ler.
É mesmo raro que as curas para a ressaca cheirem bem, não é? Fica contente por esta pelo menos funcionar. Abana antes de usar!
Típico. Voltou a pegar na garrafa, ouvindo o líquido a girar lá dentro. Depois decidiu-se, agitou-a com força e, de nariz tapado, engoliu tudo de uma vez.
Ai que nojo! Releu o bilhete, esperando mesmo que aquela mezinha fizesse alguma diferença e que não fosse só mais uma partida da sua hóspede. Amassou o papel e enfiou-o dentro da garrafa antes de a voltar a selar.
Comeu mais do que estava à espera. Nem tinha percebido quanta fome tinha até começar s comer os cereais e, quando deu por si, já tinha comido tudo menos o feijão.
A empregada voltou um bom bocado mais tarde, já estava ele de volta à carga na escrita. Era a mesma, e desta vez trazia uma bandeja que não tinha comida em cima.
_A Rainha manda cumprimentos e pediu para visar que estará consigo daqui a nada, disse o guarda.
O que estava na bandeja era um computador portátil, finíssimo e de última geração, acompanhado por um par de headphones e um rato. A escrava pousou-a sobre a cama, levantando o tabuleiro que costumava ter a comida do pequeno almoço.
_Obrigada! _disse, surpreendido pelo presente. Mas a senhora já estava a sair, e o guarda não demorou a trancar a porta atrás dela.
Podia não haver entrevista mas, pelo menos, agora ele tinha uma forma mil vezes melhor de trabalhar! Sentado na borda da cama, com a bandeja sobre o colo para fazer de secretária improvisada, abriu o portátil e, aproveitando o facto de nem ter palavra passe, começou a explorá-lo.
Parecia um daqueles tablets para criança com as aplicações todas bloqueadas por controlos parentais. O ambiente de trabalho usava a imagem que já vinha com o computador e estava desprovido de ficheiros ou decorações. Navegar pelo sistema também não lhe mostrou mais nada a não ser uma imensidão de vazio, de pastas de sistema ainda sem nada guardado e as mesmas poucas aplicações que o cumprimentavam da barra de tarefas ao fundo do ecrã. Ele não estava à espera de nada, e sabia que devia estar grato por sequer estar a ter acesso a tecnologia, mas isso não o impedia de ficar desapontado. A única coisa ali que lhe podia ser útil era o relógio e as poucas aplicações que a Rainha o deixava utilizar.
As horas marcadas não faziam nenhum sentido. Ou se tinham passado mais três ou quatro horas do que ele estava à espera, ou o computador estava mal configurado. Para o pôr ainda mais desorientado, talvez?
O editor de texto era o programa mais importante, claro, mas havia outros. Um gravador de som, um programa que abria a câmara para o ajudar a digitalizar texto, um sistema de organização de notas. Por alguma razão, ela tinha deixado o Minesweeper intacto, ou, tendo em conta que aquele programa pertencia a outro século, provavelmente tinha-o instalado de propósito. Do pouco que sabia da mulher, aquilo devia ser uma qualquer metáfora para lhe dizer para ter cuidado onde pisava ou nos jogos onde se metia. Irónico, mesmo.
Resignado, começou a trabalhar. Não o iam deixar sair dali tão cedo e, tendo em conta que ele nunca tinha percebido as regras daquele joguinho, escrever era mesmo a melhor maneira de passar o tempo. Tirou fotos às notas que tinha escrito e aproveitou para ficar com algumas do quarto, e depois pôs as mãos na massa.
No dia ☒☒/☒☒/☒☒, às ☒☒:☒☒, Marcos Vilanova, o autor deste artigo, foi raptado.
Eu sabia que isso iria acontecer. Foi tudo parte de um processo investigativo que começou um ano antes, em preparação para o artigo sobre Vince da Lima, um criminoso também conhecido pelo codenome Falcão Negro. O que eu não sabia nessa altura, algo que se tornou dolorosamente óbvio no tempo que desde aí decorreu, é que esse homem não passava de um floco de neve sobre um enorme icebergue.
Cerca de duas semanas antes do meu rapto, recebi uma carta no correio. Dentro do envelope escrito a tinta dourada e lacrado a vermelho que lhe apareceu na caixa de correio, junto com uma carta em que a minha vida e as da minha família foram ameaçadas, estava um convite para...
Saltou, assustado pelo barulho da porta a abrir.
–Como vai o trabalho? –perguntou a Rainha.
Ele pôs-se em pé, de repente focado nas olheiras que lhe deviam encher a cara e na forma como as suas roupas estavam amarrotadas.
A Rainha estava diferente, hoje. O vestido que trazia desta vez não era menos chique nem menos feito à medida, mas era mais contido. Era todo preto, para começar, o que o tornava imediatamente menos garrido, independentemente dos detalhes que tivesse. E os detalhes eram muitos, até. O decote estava coberto por rendas geométricas, a mesma que decorava a bainha da saia que quase roçava no chão e que espreitava nos pulsos das mangas compridas. A saia estava enfeitada por detalhes bordados a preto, num fio com uma textura ligeiramente diferente que só mostrava os seus padrões, uma repetição perfeita dos da renda, quando a luz lhe batia da forma perfeita. O cabelo estava preso num carrapito entrançado no topo da cabeça, decorado por ganchos de jóia transparente a imitar os diamantes que lhe estavam pendurados das orelhas.
Ela limpou a garganta e aproximou-se dele para lhe tirar o portátil das mãos.
–Um bom começo, Vilanova.
–Acha? –disse ele, escondendo mal a sua discórdia. –Quando é que me vai deixar sair? Vai-me deixar sair, não é?
Ela sorriu, atirando o portátil para cima da cama sem mostrar a mais pequena pontada de preocupação. –Calma! Claro que o vou deixar sair. Não me serviria de nada trazer um tão bom repórter para aqui para escrever um artigo se depois não o deixasse ser publicado, não é?
Qual era o plano dela? –Eu não consigo trabalhar assim, senhora, –desculpou-se ele. –Não consigo escrever livremente sabendo que uma palavra errada pode levar à minha morte! Estou demasiado preocupado com a minha família para me focar... –Endireitou as costas. –Se quiser um trabalho em condições, um com a qualidade pela qual sou conhecido, seria melhor deixar-me ir.
Ela estava a examiná-lo. Os olhos furavam os dele como se ela fosse capaz de lhe ver diretamente para a mente, prolongando aquele pequeno momento de silêncio para uma eternidade de tortura.
Depois riu a sua risada cristalina e virou-se para se sentar sobre a cama.
–Eu bem sabia que tu darias cá um ótimo jogador neste mundo, Vilanova! Não sei se tens noção do quão bom esse argumento foi, nem de quantas pessoas convenceria...
Ele engoliu em seco, amedrontado. Ele não queria jogar aquele "jogo", ou o que quer que a Rainha achava que aquilo era.
–Zugzwang, –disse ela, simplesmente, como se ele devesse saber o que aquilo queria dizer. Ao ver a expressão de confusão na face dele, indicou-lhe que se sentasse a seu lado, sorrindo. –É alemão, e traduz-se para algo como "forçado a mover". É usado em xadrez. Quer dizer que, faças o movimento que fizeres, ficas numa pior posição estratégica, não tens saída.
A medo, Marcos aproximou-se para se sentar ao lado dela. Não disse nada.
–Tu, meu caro, estás em zugzwang. Faças o que fizeres, ficas pior do que já estás. E, tal como no xadrez, não fazer nada não é opção.
–O que é que é suposto isso querer dizer?
Não conseguiu esconder a sua irritação, e ela achou isso humoroso.
–A única forma de ganhar é não jogar. E digamos que eu já te tirei essa opção... pelo menos por agora, –comentou levianamente, como se aquilo não fosse, sei lá, a vida inteira de todo um ser humano.
Marcos virou-se mais para ela, chocado. Aquilo não passava de um brinquedo para ela, era? A sua vida, a vida da sua família, nada daquilo lhe importava?
–Entraste num jogo muito perigoso, Vilanova. –A sua expressão era ilegível, indecifrável, algures presa na uncanny valley. —Ainda por cima não passas de um peão, o que te dá muito poucas opções sobre o que fazer. A tua única hipótese é tentar chegar ao fim do tabuleiro e esperar que sobrevivas tempo suficiente para poderes passar a ser pelo menos ligeiramente importante.¹
Ele não respondeu, só virou os olhos para a parede para poder evitar os dela. O que é que ela queria dizer com aquilo? Aquilo não era um jogo. Não havia só peças num tabuleiro, havia pessoas —pessoas como ele!— com famílias, amigos, entes queridos e outros que se importavam com o seu bem-estar. E ele não queria jogar.
–Viestes aqui só para me atormentar? –perguntou, ignorando o risco que tomava ao fazê-lo.
Ela abanou a cabeça. –Nunca! –riu-se. –Não. A empregada não te pode dar uma entrevista, mas aqui quem faz as regras sou eu e, por isso, eu posso.
Virou-se para a Rainha de repente, surpreendido, tentando decifrar naquela expressão cuidada se ela estava a dizer a verdade.
–A sério!—perguntou, ao admitir a si mesmo que nunca seria capaz disso.
Ela riu-se. –Claro. –Pegou no portátil ainda aberto e estendeu-lho. –De forma não oficial, sem gravações de áudio nem citações diretas. Mas posso-lhe responder a algumas perguntas.
Ele aceitou o portátil e, apoiando-o na mesinha de cabeceira, abriu um novo documento. Acenou com a cabeça.
–Porque é que está a fazer isto? –começou por perguntar.
A Rainha sorriu. –Independentemente do qual "isso" a que se refere, a resposta é invariável. Porque é divertido!
O maior problema naquela entrevista iria ser decifrar quais das respostas eram verdade. Ou que parte de algumas respostas podia não ser totalmente mentira.
–Divertido? Como é que jogar um jogo onde nunca ninguém ganha pode ser divertido?
Ela hesitou pelo mais breve de momentos. –Eu não tenho nada a perder.
Marcos ficou tão surpreendido com aquela resposta que até se esqueceu de a digitar. Aquilo parecia-lhe ser estranhamente honesto mas, vindo da Rainha, era impossível saber. Ela inclinou-se para a frente, com um sorriso conspirador na cara e, como que para o fazer esquecer a anterior indiscrição, falou baixinho.
–Há uma coisa que devia saber sobre mim, Marcos Vilanova. –O tom dela foi tão frio que quase o fez tremer. –Eu nunca, nunca, perco.
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¹No xadrez, o peão é a peça mais limitada, mas também é a que tem maior potencial. Com a excessão da saída inicial, só pode avançar para a frente uma casa de cada vez e, sendo apenas capaz de comer na diagonal frontal, não consegue passar por obstáculos que se atravessem diretamente no seu caminho sem ou sorte ou ajuda. Mas um peão que consiga chegar ao lado do tabuleiro oposto de onde começou, tem a hipótese de ser "promovido" para qualquer outro tipo de peça que não seja o rei.
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Nota da Autora
Mandem perguntas para o Marcos fazer à Rainha! Ainda não me decidi se vou fazer um capítulo só sobre isso, mas vou responder aos comentários e, se houver muitos, é mais provável que isso aconteça!
Oi oi oi oi :D Eu sei que para vocês os capítulos continuaram a sair direitinhos mas, para mim, já não escrevo nada neste livro há semanas, talvez um mês? Acho que é uma combinação de estar criativamente cansada e de estar de férias e sem rotina de escrita e de estar focada nas coisas erradas. O facto de o livro estar quase a acabar não ajuda, também, e o mesmo pode ser dito de os personagens estarem divididos pelos seus quartos. A interação entre eles é o life blood desta "história"; como é que é suposto eu escrever alguma coisa interessante quando eles estão assim separados?? E depois estou a forçar-me a escrever os capítulos por ordem quando há literalmente zero razão para isso. Oops?
Não se preocupem que o pequeno-almoço vai voltar a juntar as pessoas importantes (desculpa Marcos, tu continuas em isolamento) e, com sorte, dar um bocado de vida à coisa antes que tudo se acabe. Eu reservo o direito de mudar de ideias entretanto!
On another note... O que é que acharam desta revelação da Rainha? O que é que ela quer dizer com "não tenho nada a perder"?? O que raio é que a possuiu para trazer um jornalista para a sua Corte, e para trazer a sua Princesa, a Branca de Neve? Será a mesma razão? Será que a Corte das Mentiras é realmente apenas um jogo para ela, e está a fazer tudo isto só para mudar um pouco as regras e aumentar a sua diversão? Ou há algo mais profundo aqui?
É escusado dizer que eu tenho planos, não é? Quanto mais escrevo nesta história, quanto mais tempo passo com estes personagens, mais as respostas me aparecem. É menos como se eu as estivesse a inventar e mais como se as estivesse a descobrir, sabem? Há algumas que foram comentadas por vós e eu fiquei "Agora tudo faz sentido!", mas há algumas às quais eu cheguei bem antes. É um bocado injusto, tendo em conta que eu costumo andar cinco capítulos à frente, mas pronto, é a vida >:3
Eu vou sair daqui antes que a nota fique maior que o capítulo. Beijinhos!!!
(P.S: Não não vou. É só para dizer que, no momento desta postagem, já acabei de escrever o livro todo... Bem, agora é a sério! Adeus~)
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