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( CAPÍTULO 02 )
Loki desabou do abismo de sua própria mente.
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A primeira vez que ele soube haver algo de irregular, um solecismo em tudo que ele ensejava refletir, fora enquanto fitava Dáinn com olhos esbugalhados, pupilas dilatadas, ambos com dezessete anos, pessoas feitas — levando a cultura de seu povo em consideração — e ainda com faces tão espirituosas, pouca experiência, se equivalente aos guerreiros formidáveis de seu pai que habitavam Asgard.
Daínn sempre fora o menino mais bonito que ele já colocou os olhos, sendo garboso sem nem ao menos necessitar de esforço — e Loki conseguia admitir isso facilmente, mesmo com seu enorme egotismo — tinha o cabelo dourado como se este houvesse sido beijado pelos raios de sol, os cachos sempre alinhados em um corte abaixo da orelha. Seus olhos eram tão marcantes, carregando fragmentos de âmbar, dançando como chamas.
— Dizem que Freya tem levado seu amante para Fólkvangr¹. — Daínn sussurrou, encaixando a alabarda (sua arma de longa haste, entalhada por uma peça pontiaguda de ferro repleta de símbolos rúnicos, semelhantes aos que os homens de Midgard esculpiam com uma lamina meia-lua), na hoploteca.
Era impressionante como ele sabia ser um feiticeiro sublime e um guerreiro mais ainda — contrariando o que ele propriamente dizia. Enquanto lutava com outro qualquer, a túnica sem mangas denunciava a leve ondulação presente em seus braços, enquanto gotas de suor permeavam os leves ênfases de sua pele.
E agora, com os rostos tão próximos e afastados dos demais que prosseguiam no treino ritmado, Loki só poderia reparar em como seu lábio inferior era mais proeminente do que o superior e eles eram rubros e pareciam tão macios e calorosos—
— Loki! — Daínn esbravejou, encarando-o com as sobrancelhas franzidas.
Quando Loki engoliu, sua garganta soava como se estivesse inflamada, seca. Até mesmo a língua possuía uma sensação estranha, pesando e ao mesmo tempo situando-se mortificada entre os lábios constritos. Ele exalou disfarçadamente para conter o arfar latejante de seu coração, piscando os olhos, obstúpido. A respiração de Daínn estava, ainda, estrepitosa pelo treino e seu cheiro misturado ao suor evaporando dos poros enrolava Loki no veneno mais deleitoso de todos.
— O que estava dizendo, mesmo? — Ele indagou, exercendo o seu melhor para que sua voz não fosse uma coisa patética e trêmula. Saiu mais ou menos como o esperado e sua laringe ardeu pelo esforço.
O cenho confuso de Daínn desvaneceu-se para um sorriso suave.
— Você está bem? — Daínn se inclinou, aproximando mais os corpos, erguendo a mão direita para pousá-la delicadamente na testa alheia. Loki sentiu o polegar dele, levemente calejado, esfregar sua derme e onde ele tocava parecia fogo puro da Chama Eterna. O príncipe retraiu os lábios, deixando uma lufada de ar escapar entre eles.
Loki ergueu a própria mão e bateu na do amigo, cambaleando para trás e sentindo um formigamento incessante na nuca, entorpecendo-o ainda mais.
Talvez ele realmente estivesse doente, com febre, delirando pela temperatura elevada imposta em toda sua pele—
— Estou ótimo. — A mentira deslavada discorreu rapidamente. — Por que pergunta?
Nada estava bem — ele nunca sentira aquela maldita vergonha que agora entrelaçou-se como uma coisa rançosa em sua alma, deixando suas bochechas rosadas, seus pensamentos impróprios e aflorados com alguém que o chamava de amigo.
— Você deveria dizer alguma coisa muito terrível pelo que eu lhe disse a princípio. — Daínn olhou para o céu ensolarado e piscou, aguardando pacientemente Loki.
— Irei poupar seus ouvidos por hoje. — O rosto de Daínn caiu e aquilo sentenciou um agitar incômodo em seu estômago. Era como se Loki houvesse matado sua expectativa.
Ele girou-se nos pés e andou o mais rápido possível.
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A segunda o fez ponderar uma crise — um cataclisma prestes a eclodir em algo atroz.
Eles haviam acabado de retornar de uma visita em Nidavellir, onde Thor excedeu todos os limites cabíveis com o anão Balder — um feito e tanto — quando o velho ancião priorizava por manter a segurança e paz de seu povo. Bastara uma fala enviesada de um deles para que seu genioso irmão se revoltasse e iniciasse uma briga. A pequena comitiva de seu pai, sem outra opção, seguiram seu príncipe, o que resultou em um banho de sangue maior que o previsto.
Loki acabou por mediar a situação brutal, que não teria outro destino a não ser uma guerra estrondosa. Barganhou um acordo pacífico em que ele mesmo criaria um presente para os anões — só que, nada havia-lhe passado na cabeça, até então. Por mais espantoso que parecesse para entusiastas da fraternidade, contemplar o mirar de descontentamento esboçado em Odin, seu olho pranteando para Thor e ao mesmo tempo um semblante de agradecimento e reconhecimento ao encarar Loki, criou-lhe uma rede sólida de conforto.
Afinal, Loki sempre inspirou-se no pai, ansiando e conspirando para a aprovação dele.
Um banquete estava sendo servido no Grande Salão de Valaskjalf e Loki, pela primeira vez, sentiu-se elevado quando as pessoas olhavam para ele e sorriam brilhantemente. As longas mesas possuíam travessas com queijo branco em cubículos, azeitonas verdes tostadas, porcos assados que pingavam gordura, purê de nabos e amêndoas, salada de vagem e cebola e, principalmente, muito hidromel.
Não foi um choque quando Thor afundara-se na bebida, negando até mesmo as brincadeiras ridículas de Volstagg. Quando o festim dos lobos caiu e a lua já moldava-se em sua forma apinhada, Loki e Daínn tiveram de arrastá-lo, cada um segurando de um lado, para os aposentos dele.
Enquanto isso, seu irmão prosseguia balbuciando incansavelmente.
— Ele olhou torto para mim. Puderam observar, amigo e irmão! — Thor inclinou a cabeça para trás, quase os levando junto. Loki apoiou uma mão no arco de pedra áspera que ornava a porta, impulsionando Thor para frente. Enquanto isso, Daínn assumiu a tarefa de suportar o maior peso do primogênito de Odin e empurrou a maçaneta dourada, chutando a porta com o pé. Eles se entreolharam através dos ombros amplos de Thor e seu cabelo úmido (o irmão despejara uma caneca inteira de hidromel contra o cabelo loiro) comunicando-se com um breve aceno antes de se aproximarem da cama e depositar Thor entre as peles.
— Um total desrespeito. — Daínn concordou, mas sua voz tediosa evidenciava que não havia credibilidade alguma ali. Loki segurou uma risada e Thor gemeu, pressionando o polegar e o indicador nos olhos.
Seu amigo puxou a mão afundada nas costas de seu irmão, arrastando-o até si conforme dava passos para trás, balançando-a para, aparentemente, dispersar a dormência.
— Mas o pai não está feliz. — Seu irmão fungou, abrindo os braços espaçosamente.
Os aposentos de seu irmão configuravam-se do mesmo tamanho do dele, mas possuíam cortinas tecidas, uma cama enorme — mas a de Thor não possuía dossel — baús espalhados pelo recinto, uma enorme lareira octagonal e lamparinas de óleo presas a parede de cor bege. Bem acima da cama, havia a horrenda cabeça do primeiro gigante que ele matou. Só de olhar dava arrepios, deixando-o ponderar como o irmão conseguia dormir tranquilamente com aquilo.
A cabeça era verde, os olhos vermelhos quase saltando das órbitas e a boca aberta denunciava uma língua bifurcada e… roxa.
Loki sentiu um arrepio na nuca e rapidamente fechou os olhos, balançando a cabeça.
Quando Loki capturou os olhos de Daínn mais uma vez, via que esse mostrava-se divertido ao detectar para o quê Loki encarava. Ao encontraram-se, indicou as botas pesadas que ainda estavam nos pés de Thor. Loki o olhou como se ele fosse um Draugr².
— Não irei macular minhas mãos nisso—
O outro revirou os olhos. Voltando-se novamente para o grande homem estendido na cama, desamarrou os cadarços de linho de ambos os pés. Retirou-os cautelosamente, deixando ao pé da cama. Dando a volta para não despertar mais gracinhas de Thor, aproveitou que ele tinha as pálpebras trepidando de cansaço e embriaguez e apenas elevou a palma sobre a cabeça.
Um fluido amarelado brilhou em sua mão, bem na palma, clareando o aposento escuro, já que as pesadas cortinas de veludo azul cobalto obstruíam o recinto. Balançaram-se somente quando Loki, invocando sua própria magia entre os dedos, destrancou as janelas extensas, liberando que a corrente de ar percorresse o quarto.
Quando retornou o foco para o irmão e Daínn, o último finalmente sussurrou:
— Durma. — Os murmúrios desconexos de Thor se desvaneceram, finalmente preenchendo o arredor com a melodia do silêncio.
Loki sentiu a faísca de uma sombra receosa se insinuando dentro de si quando notou a proximidade entre ambos. Merda, merda.
— Vamos. — Daínn chamou, baixinho, saindo do quarto sem fazer nenhum ruído.
Loki observou suas costas deixando as portas e encarou o irmão, suspirando.
— Como tem a capacidade de me inserir em cada situação terrível, seu tolo. — Amaldiçoou, poupando um último olhar para Thor.
Em seguida, retirou-se do quarto e permitiu que Thor se afundasse nos braços de seu sono profundo. Daínn e Loki encontraram-se no corredor, e ele pensou, conforme caminhavam, que nos nove anos em que já se conheciam, nunca houve um silêncio tão profundo entre eles.
— Pensando sobre o que prometeu a Balder? — Daínn fora o primeiro a atiçar a brasa, derretendo a frieza com seu tom ardoroso. Loki reclinou o queixo, agradecendo quando seu cabelo longo ofereceu-lhe um pouco de refúgio do olhar penetrante dele, o rosto brilhando à luz dos archotes.
— Nada me ocorre à mente sobre o que fazer. — Loki queria gritar até que sua garganta estivesse em carne viva. Thor era quem sempre tomava as atitudes errôneas e Loki quem persistia a suportar suas consequências desastrosas.
Obviamente, seu ato de intercessão não fora benevolência; unicamente tomara aquela decisão para tirar a si e Daínn de lá.
E esse pensamento, mais uma vez, revirou seu estômago. Por que ele se importava tanto com o que acontecia a Daínn? Era bom ter alguém a quem chamar de amigo, descontar suas frustrações, mas não deveria ser assim— pegando-se memorizando cada detalhe do rosto dele, admirando a imperfeição mais bela que ele possuía e era seu osso do nariz levemente torcido, proveniente da discussão que tivera com Spjut, um garoto arrogante dos Vanir que levantara a língua para insinuar que Dáinn não era digno devido sua linhagem. Relembrando agora, fora quando a briga cessou, graças a sua mãe, e Loki notara Daínn com sangue escarlate escorrendo do nariz ininterruptamente — embora possuísse um amplo sorriso satisfeito estampado no rosto — que percebeu se importar com ele.
E esse sentimento era impulsivo, levando-o a ter atos que não eram condizentes com sua pessoa. Loki, previamente, teria colocado apenas sua vida em questão. Entretanto, Daínn dominava seus pensamentos constantemente, uma sombra do qual ele não poderia se livrar e isso o deixava confuso.
E a ideia de ver Daínn machucado…
— Dê a eles ouro. — Daínn ampliou os lábios em um sorriso sugestivo, aproximando-se mais de Loki. O calor do braço desnudo dele roçou o seu, deslizando, oscilante.
— Está sugerindo que eu me desfaça de parte da herança que possuo? — O príncipe argumentou, suspirando. Estancou os passos, cruzando os braços de maneira resiliente.
— Você ainda coletará muitos recursos. — Daínn suscitou, dando um passo à frente. Seu indicador tocou suavemente seu supercílio, quase fantasmagoricamente, desenhando o ferimento que Loki adquiriu após a colisão com um escudo insignificante. — Dói? — Ele indagou, preocupado.
Loki estava tão submerso naquele toque gentil, cuidadoso, que demorou a responder.
— Não. — Seus cílios dormentes começaram a piscar, a voz nebulosa. — Mas o que você dizia mesmo?
Estava começando a ficar vergonhoso como ele rapidamente esquecia-se de algo apenas com a proximidade de Daínn.
O sorriso deste, então, transformou-se em algo sugestivo.
— Em troca, eles derreterão e provavelmente, criarão mais armas formidáveis para nós. Ninguém fabrica como eles.
— Só errou na parte do “nós”. — Loki falou, a voz mais baixa do que o comum.
— Quem sabe por seu gesto altruísta, não façam algo por você. — Loki abriu um sorriso de como “Não posso acreditar que está falando isso” e bateu na mão de Daínn que passou a circular o nariz dele. Quase arrependeu-se, pois o toque formigava sua pele, tão vívido.
— Se falar de altruísmo de novo, corto sua língua e dou como refeição aos lobos.
O outro deu de ombros, risonho, e saiu caminhando despretensiosamente.
— Gosta muito da minha língua para exterminá-la, Alteza.
Isso fez Loki quase perder a cabeça—
Ah, sim, Daínn. Gosto e penso muito em vossa língua.
— Você não vem? Com sorte, pegamos um pouco mais da festividade. — Ele gritou por sobre o ombro, já contornando o corredor.
Loki não era um puritano, veja bem; ele envolvera-se tanto com garotos como garotas. Isso não era problema — ainda que imaginasse que parte da população Asgardiana não enxergaria isso com bons olhos, embora pessoalmente em Midgard não fosse um tabu.
Incomodava-o que estivesse tendo esses pensamentos justamente com a única pessoa a quem clamava como amigo. E se Loki possuísse apenas desejo e o descartasse futuramente?
Ele fizera isso com todos os outros.
Tocando o estômago, fez o melhor para disfarçar a expressão de desespero enquanto seguia seu amigo.
Mais tarde, enquanto a luz amarelada preenchia Valaskjalf, Loki estava encostado em uma pilastra, observando meticulosamente as movimentações sucedidas ao redor dele. Sua mãe conversava com Daínn no outro extremo do recinto; o amigo já possuía as bochechas rosadas pela quantidade elevada de hidromel que ingeriu, mas continuava a brilhar, seus olhos alegres, sorrisos ostensivos.
Frigga então, cruzou os olhos com o do filho quando Loki voltou-se mais uma vez para a matriarca.
Deuses. Ela conseguiu observá-lo cobiçando Daínn?
Rapidamente, sua mãe já estava encaminhando-se para perto dele. Loki ficou rígido, deixando os ombros eretos e a expressão taciturna. Frigga usava um opulento vestido vermelho, uma cor vista pelos humanos de Midgard como sinal de status.
— Olá, querido. — Ela falou assim que se aproximou. Deixou um beijo carinhoso em sua bochecha, e enredou os dedos nos fios de cabelo dele em um carinho que só sua mãe poderia ter.
— Thor está em sono profundo.
Frigga riu, puxando-o da pilastra e enrolando o braço com o do filho.
— Daínn me contou. — Arrastando-o pelo ambiente, levou-o até às portas duplas que desabavam para a sacada. A brisa amena sopapeou-lhe o rosto, revigorando-o.
Ele não estava com vontade de conversar. Frigga percebeu isso, porque apenas permaneceu como uma companhia silenciosa dando-lhe suporte enquanto ambos apoiavam-se no balaústre e observavam a noite; o céu salpicado de estrelas em seu anoitecer.
Contudo, observou quando a mãe começou a tremer levemente; estava com frio. Loki nunca o sentiu. Tinha ciência do contato do vento gelado contra sua derme, mas parecia não ser algo a importuná-lo.
— Deveria entrar, mãe. O tempo esfriará muito a partir de agora. — Frigga encarou-o, sorrindo por seu zelo.
— Você vai ficar bem? — Ela indagou, de repente. Loki encontrou seus olhos, franzindo o cenho, detectando a preocupação.
Até que relaxou o estremecimento de suas feições.
— Irei.
Ela embalou suas maçãs do rosto com as mãos, pressionando-as delicadamente.
— Espero que saiba o que esteja fazendo.
Seu coração bateu como um tambor.
— Eu também espero, mãe.
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Aconteceu quando eles tinham dezenove anos; as coisas se intensificaram, deslizando do controle que ele guardava como remanescente, sufocando-se.
Dois anos agregaram-se do suplício que transformou os objetivos de Loki em algo mais putrefato, substancial, como uma tempestade invocada para destruí-lo, oscilando sobre suas expectativas, ganâncias e desejos. Havia a constância vivência à sombra de Thor, a luxúria reprimida no âmago da alma por Daínn…
Loki pressentia que poderia ajoelhar-se perante uma estátua de mármore entalhada a fisionomia de Daínn e reverenciá-la como os humanos de Midgard faziam, ofertando-lhe riquezas.
Mas isso não era ele. Todos esses sentimentos líricos, postura contraída… Loki é confiante; havia sido isso a fazê-lo evolucionar-se sistematicamente, reconhecer seus confins. E ao mesmo tempo que ele tornava-se um feiticeiro e ilusionista exímio, também possuía sua volúpia sendo dilatada.
Daínn criou um gosto excepcional por pinturas. Era um talento que ele desvendou quando ambos remontavam os quinze anos e que se aperfeiçoou com o tempo, embora Loki se arriscasse a dizer que Dáinn já possuía aquela propensão espontaneamente— e claro, Loki era seu modelo predileto. Quando recusava-se a posar como uma estátua, Sif, Ylva ou Thor eram os escolhidos, mas o príncipe desejava demais da concentração do amigo unicamente em si para friccionar com os outros, portanto, furtava seus lugares.
Ter a atenção de Daínn tornava-se as coisas mais suportáveis.
Loki tentava não tremer o rosto enquanto ele copiava seus traços para uma tela plana e pálida. Tentou não imaginar que os olhares dele não pareciam toques viçosos em sua pele. Contudo, ter a fixação dele o tempo todo em si, delineando seus traços, criando uma figura a sua imagem deixava-lhe inquieto—
Loki se levantou, sentindo-se corado e necessitando mergulhar seu rosto em um balde de água fria. Seus nervos pareciam atiçados e ele de repente achou muito interessante os cristais pendendo no lustre do quarto de Daínn.
— Que artista mais lânguido. — Loki divagou, deslizando os dedos pelo cabelo, pretensioso em uma tentativa de suprimir aquela coceira incômoda em seus lábios.
Não tinha certeza se suas pernas ficariam resistentes se observassem Daínn, entretanto, não resistiu ao impulso. Encarou-o, vendo o sorriso sugestivo em sua boca. Seu rosto estava lindamente sujo de tinta, o cabelo enfiado atrás da orelha e o sol invadido através da janela, iluminando-o.
— Sinta-se livre para fazer outra coisa, se desejar. Conheço o seu rosto bem o suficiente. Mas é divertido roubar um pouquinho do seu tempo. — Ele deu de ombros. Não soube se tratava-se de uma miragem, mas Daínn parecia um pouco… acanhado, quando seus ombros caíram sutilmente.
Loki sentou-se de volta no divã bordô quase que instantaneamente.
— Você ainda ousa admitir ter a pretensão de me estorvar… — O príncipe provocou, falsamente. — Quando eu transformar seu escudo em um auroque outra vez, não reclame.
Daínn ensaiou sua melhor expressão de assombro. Porque aconteceu mesmo. Na época, ele ficara incrédulo, sua boca mal se fechando enquanto olhava com raiva para Loki—
Mas, agora, era apenas uma história que ambos recordavam-se com risadas. Se Daínn não possuísse uma força brutal, certamente não conteria o auroque. Entretanto, estancara-o no local tempo suficiente para que Loki devolvesse seu escudo.
— Não seria cruel a esse ponto…
O príncipe ergueu uma sobrancelha ardilosa.
— Experimente.
— Inacreditável.
Loki abriu um sorriso, ajeitando-se no estofado mais uma vez.
— Continue. Adoro ser louvado.
Daínn, uma vez, estava tão exausto que acabou por usar as pernas de Loki como seu travesseiro. O príncipe, a princípio, não controlou suas mãos que começaram a mover-se entre os sedosos fios dourados, experimentando a maciez e textura. Daínn murmurou “Prossiga”, relaxado, sem nenhuma hesitação. Ele não soube quando adormeceu também mas, quando despertou, estava embrenhado em um bolo com o amigo que folheava um livro, nenhum pouco desconfortável com a proximidade mais do que sugerida.
Loki, filho de Frigga e Odin, príncipe de Asgard, era um desastre ambulante.
Ele encarava tediosamente a luz dourada do sol que atravessava as copas das árvores de ramos entretecidos, variando entre troncos marrons e acinzentados. As raízes grossas estavam semi enterradas, ocultadas por pedras e folhas caídas. O pesado cheiro de chuva ainda estava entremeado no ar e, na terra úmida, podia-se detectar a marca dos animais fixadas.
— Ouçam. — Fandral suscitou taciturnamente. Montado em seu garanhão genioso, inclinara-se levemente quando o ronco de javali preencheu o ar.
A comitiva trocou olhares ansiosos, apanhando as bestas e puxando os estribos com as próprias mãos, até que a corda engatilhou. Retiraram das aljavas de couro os dardos, posicionando-os na ranhura. Então, os cavalos relincharam assim que seus montadores o atiçaram, mergulhando em trotes violentos para a parte onde o mato era mais denso e espesso.
Loki não fez nenhum movimento para partir junto deles quando alguns dos homens passaram, a pé, por ele. Thor impulsionou seu cavalo, sem antes cutucá-lo no ombro com um “Venha, irmão”, que fora prontamente ignorado. Era a comemoração da vida do irmão e, seguindo a semana estipulada pelo pai, haveria excursões de caça, festas, bebidas, espetáculos de pantomima e outras coisas para homenagear seu filho. O príncipe nem poderia disfarçar o quanto aquilo o deixava desgostoso, remoendo-se de uma inveja latente e palpável.
Ele estava ali apenas porque a mãe o obrigou. Bateu na porta de seu quarto acompanhada de Sif e Daínn — que desenvolveram uma espécie de amizade que era tão pouco agradável aos olhos de Loki. A mulher sabia bem que a guerreira Sif poderia ser muito intimidadora quando fosse de sua vontade e Daínn… Loki tinha a péssima tendência a corresponder às suas expectativas. Quando o amigo entrou em seu quarto, escolhera suas roupas de couro asgardiano, as botas propícias para os derradeiros da floresta molhada e ajustou seu corcel.
Loki agora estava ali, parado, com uma carranca capaz de intimidar criancinhas e o lugar vazio quando todos seguiram atrás do javali. Ainda sim, Daínn não abandonou seu lado.
— Venha, preciso de sua ajuda.
— O caminho que eles estão percorrendo é outro. — Loki informou quando Daínn apertou as rédeas de seu cavalo para a direção sul, contraposta a norte onde Thor e seu grupo haviam se enfornado, deixando um rastro de terra afundada.
— Eu sei. — Ele retrucou, tombando a cabeça para trás, arqueando uma sobrancelha. — Entretanto, seja honesto consigo mesmo; está odiando tudo isso.
O príncipe revirou os olhos.
— Você me arrastou para isso.
— A senhora Frigga fora sucinta. — Era divertida a maneira como Daínn persistia a utilizar o “Senhora” para referir-se à sua mãe. Sabia ser um gesto de educação, mas Frigga compartilhava sua intimidade demais com o garoto para que ele mantivesse tanta cordialidade; mais do que isso, Frigga era responsável por sua vida. Por Loki ter a oportunidade de conhecê-lo.
O príncipe afrouxou o aperto na rédea, estalando a língua enquanto esperava que isso fosse resposta o suficiente.
— Portanto, — Ele alternou o assunto pensativamente. — Vossa Alteza me auxiliará na busca de plantas para que eu possa extrair seus pigmentos e criar mais tintas.
— Sério? — Loki inquiriu, em tom de deboche.
— Ei! — Daínn exclamou e estava prestes a respondê-lo, contudo, acariciou antes a crina de seu cavalo de pelagem acastanhada que relinchava, para que ele se acalmasse enquanto o canto das gralhas preenchia os arredores. — Seu apoio para minha arte é de grande estima. — Loki reprimiu um sorriso. — E o dispersará do que o acomete, que lhe causa inquietação.
— Que belo coração o seu, pensando em minha indignação. — Redarguiu, posicionando-se para a mesma direção que Dáinn guiava seu cavalo em trotes curtos.
— Sempre, Alteza.
Minutos depois Loki se viu, de fato, apanhando urtigas à beira de um riacho.
— Como vai extrair os pigmentos delas? — Indagou de repente, passando o cabelo bagunçado pela ventania considerável atrás da orelha.
Ele se virou para Dáinn que ainda separava as calêndulas que encontrara. Com a pergunta, o amigo imediatamente se atiçou, olhando-o profundamente nos olhos.
— Elas precisarão ser moídas. Após isso, misturadas a óleo ou água, para filtrar a cor.
— Que trabalheira. — Loki redarguiu, aproveitando-se do som da água cristalina fluindo sobre os seixos, a sinfonia do riacho serpenteando. Os cavalos estavam presos a duas árvores, bem afastados de onde estavam.
Daínn riu, pousando a mão sobre o ombro de Loki suavemente assim que aproximou-se dele. Indicando um tronco cortado, sentou-se e aguardou o príncipe juntar-se a si.
— Você não está bem. — Ele não perguntou. Apenas uma afirmação, uma percepção sólida.
— Por que não estaria? — Jogou de volta, tentando ser despretensioso. Endireitou os ombros.
— A essa altura, o conheço suficientemente para saber quando está criando suas mentiras, Loki. — Seu tom, mesmo condescendente, não apartou a relutância em verbalizar a forma como sentia-se, temendo ser interpretado como um fraco.
— Pois bem, Daínn, Deus da Verdade. — Seu amigo bufou.
— Eu não sei porque ainda tinha esperanças de que você levaria isso a sério. — Desabafou, pousando as mãos sobre o tronco. Os estrepes orvalhados sujaram sua mão.
Loki sabia que Dáinn sabia. Não sobre seus sentimentos sobre ele, mas sim de como o príncipe sentia-se em relação a Thor. Loki apenas queria que as pessoas o vissem como um semelhante à Thor e seu grande rival, responsável por seus pensamentos tumultuados, era que não controlava — e nem iria — os limites que alcançaria para que isso acontecesse.
— É ruim viver à sombra de alguém a vida inteira. — Ele não encarava Daínn enquanto falava; não era do feitio dele, aquela fraqueza, ansiedade. Mas relembrou-se de quando eram crianças e Daínn confiou nele, derramando seus sentimentos, contando como sentia-se em relação ao pai com uma honestidade surpresa. Agora, seus olhos desviaram-se do amigo e observaram os outros bosques, ainda mais densos do que eles se encontravam, repartido pelo riacho — Nada que eu faça se igualará a Thor.
— Loki… — Daínn manteve-se quieto por um momento. Em seguida, sua voz soou, como uma suave carícia: — Talvez não seja essa necessidade de estar equiparado a ele que atrapalhe as coisas para você? Você tem adjetivos bem mais interessantes, na minha opinião. Mas estar constantemente levando a vida como uma disputa não lhe concede tempo para desfrutar a própria glória, pois está sempre pensando no que fazer em seguida.
Um sorriso involuntário nasceu em seus lábios — ele tentou absorver aquelas palavras, compreendê-las; entretanto, concluiu que, relacionado ao irmão e ao pai, já era tarde demais para si.
— Bem, você sempre foi o chato que conhece demais. — Loki retrucou, virando o rosto para olhar o amigo. Daínn apenas riu, como se tivesse escutado a melhor piada do mundo.
Como se para dar ênfase no que dizia, em seguida, o amigo colocou as calêndulas de lado e ergueu as mãos, tocando suavemente o rosto de Loki, traçando os contornos de sua pele — e ele nem se importou que ainda houvessem farelos do tronco. No entanto, sua respiração quente, em lufadas sucintas, diferia-se na pele, na ponta de seu nariz. Loki sentiu seu coração estremecer dolorosamente e preferiu atribuir o rubor nas bochechas ao vento gelado, e não como se o sangue centrado em seu coração houvesse subido.
— Eu me importo, sabia? — Daínn falou mais sério e seus olhos… seus olhos pareciam oblíquos, distantes. O príncipe engoliu em seco, sentindo um aperto no peito.
— Não precisa se preocupar comigo. — Loki abaixou o olhar focando novamente nas urtigas em suas mãos, mas sentindo vividamente a presença de Daínn em seu rosto, em sua alma e em suas veias. Seus suspiros beijavam-lhe o topo da cabeça.
Quase fez uma careta; que nível ele atingiu segurando uma planta que fedia entre os dedos? Deuses.
Daínn soltou um suspiro exasperado e Loki apertou os olhos, absorvendo-o em sua pele até a sensação se dissipar.
— Você é terrível em aceitar preocupação, mas não vou deixar de me importar.
Loki voltou-se novamente para Dáinn, como se ele fosse o sol e o príncipe um mísero planeta orbitando ao seu redor — o que não deixava de ser engraçado, porque ele, um príncipe, filho do líder dos Aesir, via-se tão subjugado na presença do rapaz.
Olhos dourados cravaram-se nos azuis de gelo, respirações entrelaçadas. O príncipe desceu os olhos para os lábios alheios, o superior menor e o inferior maior, rosados, convidativos. Sua língua escapou e delimitou a própria boca, umedecendo-a.
Loki mal reagiu quando Daínn indagou:
— Loki? — O príncipe respondeu com um sussurrado “Sim?”. Ele parecia tão atordoado com aquela proximidade, que pareceu ter uma breve lembrança de quando tentou atazanar uma feiticeira de sua mãe e ela o devolveu com um feitiço dormente. Sentia-se assim agora, o corpo mole.
— Sabe aquele quadro seu que estou pintando? Acho que uma clitoria ternatea daria a perfeita cor dos seus olhos.
— E essa coisa com nome estranho por acaso existe? — E Daínn riu, um som verdadeiro extraído do fundo de sua garganta. Nunca o ouvira tão perto, como se estivesse em seu ouvido, perfurando sua mente.
— Loki? — O príncipe inclinou a cabeça em um gesto que deveria simbolizar que Dáinn poderia prosseguir, mas serviu apenas para deixar seus rostos ainda mais próximos, se fosse possível. O amigo prendia o lábio entre os dentes.
— Estou ouvindo…
— Sinto muito.
E então os lábios de Daínn estavam afundados nos seus e Loki só teve tempo de ofegar em surpresa, derrubar as urtigas sobre seus pés e tombar a cabeça para encaixar sua boca na dele.
Seu corpo ergueu-se aos tropeços e as mãos de Daínn pressionaram com ainda mais força sua mandíbula, como se quisesse mantê-lo ali ou possuísse receio de que ele escorregasse por seus dedos—
Mas Loki apenas forçou seu joelho entre as pernas de Daínn e as mãos dele mudaram-se do rosto para o quadril, trazendo-o para mais perto. Loki ergueu seus dedos trêmulos, seu coração fogoso estremecendo, palpitando tão fortemente que parecia prestes a saltar de seu peito.
Ele invadiu a boca de Daínn com sua língua gananciosa e o gemido que ele soltou em troca, engolido pelo próprio som dos estalos, fora o suficiente para ensurdecer seus ouvidos. Loki a deslizou para dentro, enroscando-a na de Vídarsson para logo em seguida delimitar seus dentes.
O príncipe exibiu um ruído estrangulado assim que sentiu Daínn morder sua boca. O gesto quase o amoleceu, fazendo-o jogar o corpo para frente e ser amparado por seu amigo. Não importou-se com o fato de haverem dezenas de pessoas caminhando pelos bosques e que poderiam vê-los a qualquer momento, ou o lugar nada próprio para o qual se encontravam.
Ele permitiu-se ser consumido, contorcendo-se, rendendo-se… suas mãos espalmaram a mandíbula de Daínn até pousarem próximas às orelhas e, rompendo o beijo por um instante — a ausência culminou um revirar em seu estômago — grudou a boca na glândula. Os dedos de Daínn se esgueiraram para a parte de dentro de suas calças de couro e o toque dele contra sua derme… Loki mordeu seu pescoço em resposta, com força, fincando os dentes na pele bronzeada, sugando-a. Os dedos alheios pressionaram seus quadris, apertando-os, serpenteando sua pele, utilizando de um esforço significativo para manterem-se firmes sem nenhum tombo ocasionado para trás.
Que beijador exímio você é, meu amigo. Seus pensamentos maliciosos envolviam-se em sua mente — embora saber que Dáinn já beijara outras pessoas para chegar a aquele nível deixava-o com um sentimento de raiva, uma reivindicação por posse mesmo que o rapaz não fosse seu.
Quando Loki afastou-se, ele mal podia respirar. Seu sangue estava borbulhando, suas pernas trêmulas, mal parando em pé e o peito arfante, com calor queimando por todo seu corpo. Sem frio. Sem gelo. Loki se contorceu antes de olhar para Dáinn mais uma vez, gravando aquela memória — seu olhar faminto, pupilas dilatadas, a respiração tão descompassada e o martelar de seu coração que o príncipe sentia através de sua mão pendurada em seu peito.
Loki não disse nada; ele o beijou. De novo. E de novo. Como se pudesse compensar todos os anos em que negou-se — Daínn então sentia aquele mesmo desejo? A mesma necessidade queimando e latejando, a censura por pensamentos inebriantes, vontades luxuriosas.
Mergulhou em Daínn como se ele fosse a última poça d'água em um deserto vermelho e infinito. Arquando-se cada vez que os dedos ávidos de Daínn passavam por sua pele, apertavam sua cintura, corriam por suas pernas. Envolveram-se em ruídos sem sentidos e Loki prendeu os cachos dourados entre seus dedos, passando a ponta da unha na nuca.
Daínn Vídarsson soltou um grunhido.
— Deveríamos… — Ele aproximou-se da orelha de Loki, a ponta de sua língua roçando levemente o lóbulo, seu hálito quente soprando na carne sensível. O príncipe suspirou. — … Voltar para o palácio.
Loki sorriu.
— Sim, deveríamos.
¹Fólkvangr é a morada da deusa Freya em Asgard. Freya leva metade dos guerreiros mortos em batalha para lá, enquanto outros irão para Valhalla, o salão de Odin.
²Draugr ou draug eram criaturas horríveis que pareciam zumbis e possuíam força sobre-humana.
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