8. Rumos
Nenhum dos sobreviventes conseguia ver a mais de um palmo de distância no breu em que se encontrava o porão. No desespero, perderam-se de amigos e entes queridos. Perderam-se de si mesmos, sentindo a própria humanidade desligar-se ao ficarem gratos e aliviados por estarem ali dentro, enquanto ouviam os gritos dos conhecidos e amigos do lado de fora sendo destroçados.
Um por um, os gritos do lado de fora cessaram, tanto das vítimas quanto das criaturas.
Eles ficaram ali, em silêncio, por pelo menos meia hora, que se arrastou para os presentes como horas.
O ar já lhes estava escasso ali dentro, abafado. Foi quando sobressaíram-se ao ouvir um estalo e verem uma luz se acender, amarelada e fraca, no centro daquele cubículo, forte suficiente apenas para iluminar os rostos dos presentes.
Lúcio acendera a luz.
Todos se encararam, finalmente, olhando uns para os outros com um misto de vergonha e alívio.
Amigos e famílias se abraçaram, aos prantos silenciosos, e Luana permitiu-se finalmente mergulhar em um sono profundo nos braços confortáveis do pai, como se todo o perigo tivesse passado.
- O que eram aquelas coisas? - A primeira de várias perguntas verbalizou-se finalmente, quebrando o silêncio mortal. A dona dela era uma garota forte, com cabelos castanhos e encaracolados curtos pouco abaixo das orelhas. Em seu nariz um piercing no septo destacava-se e seu corpo era completamente fechado de tatuagens old school.
A garota despertou uma sintonia de perguntas sem resposta de todos os presentes:
- O que eram?
- Onde estamos?
- Como vamos sair daqui?
- Já tentaram ligar pra alguém?
Lúcio sabia como respondê-las, mas não queria abrir a boca. Apenas queria continuar ali, sentado nos degraus da escada com sua pequena dormindo em seus braços. Ele levantou os olhos e percebeu - todos que o seguiram, sendo os Moon, os calouros ou a família, o olhavam em silêncio, sabendo que nada ali era simples assim, e que, de algum modo, Lúcio sabia o que deveria ser feito.
Ele cedeu à pressão.
- Não vão gostar das respostas.
Com uma calma preocupante, Lúcio contou-lhes as histórias sobre Gerânio.
Sua platéia o ouvia quieta, ao contrário do que seria esperado. Estavam em choque. Lúcio poderia ter dito qualquer coisa. Poderia ter dito que eram alienígenas, poderia ter dito que eram mortos-vivos famintos, poderia ter dito que eram apenas fruto de nossas imaginações ou que mesmo aquilo seria uma pegadinha - todos acreditariam.
- E onde estamos? - A mesma garota perguntou, a com as tatuagens. Apresentou-se como Clara segundos antes, um nome delicado que não combinava com sua aparência. - Você sabia desse lugar.
Não era uma pergunta.
Lúcio respirou fundo com as lembranças dolorosas.
- Essa era minha casa. - Cuspiu, por fim. - Morava aqui com minha família antes de mudar pro centro, há muito tempo atrás. Não tive coragem de vendê-la.
- E por que se mudou? - A voz veio de Nádja, agora tímida e cansada, repousando a cabeça na parede ao seu lado.
- Mudei depois que minha esposa morreu. - Ele falou, fitando apenas Nádja. - Câncer.
- Sinto muito. - A garota respondeu, perguntando-se o porquê de nunca ter questionado antes sobre a mãe de Luana.
- Desculpa atrapalhar o momento aí, - Um homem de maxilar torto e os cabelos finos jogados para trás interrompeu-lhes. - mas eu quero dar o fora daqui sem virar comida dessas coisas.
- Eles não matam pra comer, eles matam por matar. - Caubi lembrou-se das palavras de Nádja sobre aquilo não ser como nos filmes de Hollywood. Analisou com horror enquanto eles matavam um por um, deixando os corpos lá, como se fosse tudo apenas uma brincadeira sádica.
- Que seja, - O calouro bufou. - Como voltamos pra casa?
- Aí que está, garoto. - Lúcio odiava ser o portador das más notícias. - Não tem mais casa.
- O que quer dizer com não tem mais casa? - Carla perguntou, envolvendo o filho em um abraço
- Quero dizer que eu sei qual é o próximo passo. - Lúcio murmurou.
- Olha, cara, para de fazer mistério e desembucha! - O dos cabelos lisos e maxilar torto cruzou os braços, impaciente. Sabrina o conhecia como Pitt. Ela não sabia seu nome, só que todos o chamavam assim por parecer-se vagamente com Brad Pitt, o que ela discordava completamente. De uma coisa ela sabia, Pitt era bonito, mas um imbecil.
Lúcio sentiu vontade de debater, mas concluiu rapidamente que não valia a pena.
Ele olhou para o rosto de cada uma daquelas pessoas, esperançosas e desesperadas. Não queria que aquela fosse sua tarefa.
- A cidade de Ouro Cinza já deve estar isolada agora. Já sabemos que não temos passagem por Gerânio, então todos vão direto para o Sul, para Virgínia, e eles estarão esperando.
- Eles? - Nina perguntou, encolhida em um canto, mal sendo vista pela luz fraca.
- O governo, garota. O exército. - Ele esperou que cada um processasse antes de concluir. - Vão matar a todos.
- Não vão deixar essa merda se espalhar de novo. Não vão contar ao mundo as atrocidades que ocorreram em Gerânio e estão se disseminando por Ouro Cinza vinte anos depois. Eles vão matar um por um e dizer que foi uma merda de um acidente nuclear ou qualquer coisa assim. Não veem? - Lúcio engoliu em seco. - Ouro Cinza é a nova Gerânio.
- E eu sei o que vão fazer, porque há vinte anos eu era um desses filhos da puta que mataram inocentes sem questionar. Vão fechar a cidade e isso aqui vai ser uma zona morta e confidencial.
Um soluço se ouviu no fundo da sala.
- Quer dizer que é isso? - Sabrina odiava parecer fraca, mas não conteve o embargo na voz. - Todos que conhecemos e amamos estão indo agora em direção à morte e seremos os próximos?
- Temos que ligar e alertá-los! - Uma voz desconhecida pronunciou-se.
- Estamos sem sinal. - Thiago disse, olhando para a barra do celular quase descarregado.
- Não vão deixar que nos comuniquemos com qualquer um fora daqui.
Caubi riu, um riso triste e sarcástico. De repente viu todos o olhando, esperando explicações.
- Estão todos mortos ou indo pra morte. E nós estamos aqui, sem condições de avisar, só esperando que sejam mortos assim que chegarem em Virgínia. E a gente? Morre também? Não podemos ficar aqui pra sempre. Se em breve o exército estará aqui para exterminar essa praga, nós vamos junto.
- Não. - Nádja, agora sentada no chão, opôs-se ao irmão. - Tem que haver outro jeito.
- Pare de ser ingênua assim, Nádja! Estamos fodidos!
- Não! - A garota repetiu, mais alto. Ela tirou o pedaço do mapa completamente amassado e encharcado do bolso. - Lúcio tem um plano.
Lúcio, ouvindo-os em silêncio, esperava a hora certa para contar àquele pequeno grupo de sobreviventes qual sua ideia suicida.
- Vamos por Gerânio.
- Mas que merda, cara, você acabou de dizer que essas coisas estão vindo de lá! - Clara levou as mãos à cabeça.
- É, e Gerânio é território proibido há vinte anos. Tem os muros que cercam aquele lugar, não temos nem acesso. - Sabrina debateu.
- Não de carro. - Nádja finalmente colocou o pensamento em pauta.
- Sim, essas coisas estão vindo de lá pra cá, infectando os cidadãos de Ouro Cinza e despedaçando a cidade. Se conseguiram chegar até aqui, então também conseguiremos entrar lá. Gerânio não vai ser o foco, vai ser o ninho.
Um silêncio assustador cortou a sala, temendo que as palavras fizessem sentido.
- E aí, entramos em Gerânio. E depois? - Pitt perguntou.
- Atravessamos Gerânio e chegamos à Cravo. Se essas coisas estão invadindo por Ouro Cinza, então não estarão preocupados com as fronteiras com Cravo.
- E vamos ter passagem? - Beto perguntou, o garoto de onze anos, entretido na conversa como um adulto.
- Vamos dar um jeito, garoto.
- São dias andando de Gerânio a Cravo. - Pitt, com o rosto fechado, debateu. - Não temos como nos defender, não temos comida, água, e vamos nos meter nesse... nessa cidade fantasma infestada de canibais pra ter uma pequena chance de conseguirmos cruzar os muros que fazem fronteira com Cravo? É isso?
- É isso. - Lúcio não esperou nem um segundo para respondê-lo. - Pode ficar pra trás e ver no que dá também, moleque, mas eu vou levar a minha família pra nossa única esperança.
Nádja abriu um sorriso fraco ao ser retratada como sua família.
- Mas nem tudo é verdade no que disse. - Lúcio finalizou, aproveitando o silêncio que provocou. - Vamos ter como nos defender.
(ilustração autoral - Pitt)
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