7. Alçapão
O casamento dos Hernandez não ía bem. Casados há mais de quinze anos, já não sentiam aquela chama entre eles há algum tempo. Mas tinham amor lá no fundo, eles sabiam. Mesmo após brigas diárias e dias sem se falar, ainda tinham amor.
Carla e Mário decidiram naquela mesma semana que tirariam um tempo para se reconectarem e levariam Beto, o filho de onze anos, com eles.
Mário conhecera Carla anos atrás em um acampamento de amigos em comum, decidindo então que sairiam para acampar, e que aquela semana seria tirada para se reconectarem com o passado, com a família, consigo mesmos.
Carla disse à Mário que não havia perigo acampar no bosque, que o local era seguro e não tinha animais de grande porte nas florestas de Ouro Cinza.
- Eu vou levar a espingarda por precaução, Carla. Nunca se sabe...
Carla nunca agradeceu tanto por estar errada quanto naquela noite de novembro. Ela acordou ao ouvir passos agressivos do lado de fora de sua tenda. Beto gritou assim que abriu o zíper da barraca. Foi quando a criatura atacou.
Mário atirou sem pensar duas vezes, antes que seu filho perdesse as mãos. Ao ver o ser caído no chão, sangrando um sangue escuro e viscoso, e ouvir os gritos distante, não pensou duas vezes em pegar o filho e a mulher pelos braços e correr dali.
A família Hernandez acabou por correr cegamente atrás de um casal cuja vida haviam acabado de salvar, rezando para que a ruiva e o cabeludo soubessem para onde estavam indo.
Thiago não tinha a menor ideia de para onde estava indo. Apenas costurava as árvores com medo do que veria na próxima esquina.
Ele sentiu as chaves do carro de Sabrina pesarem em seu bolso a cada passo, pensando que, ao fugir, acabara de tirar da amiga o único meio de salvar-se.
Ele lembrou-se do tiro e do grito que indiscutivelmente pertencia a ela. Com peso no coração, pensou que talvez Sabri já estivesse morta.
Foi quando apavorou-se ao ver o fantasma da amiga trombar com ele.
Sabrina gritou, não sabendo expressar o alívio que sentia no peito ao ver tanto Thiago quanto Nina ali, parados à sua frente.
O garoto permitiu-se chorar pela primeira vez, puxando a amiga de longa data para um abraço apertado.
Sabrina nunca fora religiosa, mas sua espiritualidade nunca a deixou na mão - ela tinha certeza de que fora a mão do destino que fizera com que ela reencontrasse os amigos ali, em meio àquele labirinto de árvores ínfimo.
- Achei que estivesse morta... - Ele sussurrou por entre os soluços. - Que merda, Sabrina, achei que estivesse morta!
- Ela vai estar se não dermos o pé daqui. - Lúcio mostrou-se presente, aceitando o reencontro comovente por tempo demais. - Assim como todos nós.
- E quem é você? - Nina perguntou.
- História pra outra hora, garota. - Ele olhou para o grupo que acidentalmente formara, maior do que gostaria. De qualquer modo, não tinha melhor escolha. - É melhor me seguirem.
Quando finalmente se deram por si, estavam correndo.
As pernas de Luana não acompanhavam os passos dos dois, ao passo que Nádja a puxou para o colo novamente, agradecendo por a garota ser pequena para a idade.
Os ruídos assustadores da floresta cercavam os três, de modo que não sabiam distinguir do que se tratava cada sopro que alcançava-lhes o ouvido.
Caubi seguia na frente da irmã, a arma em punhos, engatilhada e pronta para disparar.
Sentiu seu coração palpitar ao ver as sombras que os cercavam, rondando-os por entre as árvores das florestas como se fossem presas fáceis.
Nádja já não encontrava mais ar para correr com Luana nos braços, procurando-o tão fortemente que apavorou-se ao perceber que não o encontrava.
- Me dá a arma. - Ela falou, parando e colocando Luana no chão.
Caubi desesperou-se ao vê-las ali, paradas, em um momento como aquele.
- O quê?!
- Me dê a porra da arma Caubi!
Nádja alcançou a arma das mãos do irmão antes mesmo de ele estendê-la. Tomou o posto de segurar Luana para que a irmã pudesse respirar e rezou para que a mesma tivesse boa pontaria.
- Sabe pra onde estamos indo? - Ele perguntou, ofegante.
Nádja tentava manter o passo constante, mesmo com o diafragma contraído em uma cãibra horrível. Ela olhou o pedaço do mapa nas mãos.
- Sei. - Mentiu. Ela só tinha uma certa noção e muita fé.
Os segundos se passaram arrastados quando ela finalmente se deparou com um cenário que destoava-se do habitual. Aproximou-se com as pernas bambas, como se seu corpo desligasse ao menor sinal de que chegou ao seu objetivo.
Vislumbrou um terreno extenso em uma depressão. Ao fim do relevo, uma simpática casa os esperava.
Nádja sentou na terra enlameada, mesmo que o irmão protestasse. Ela olhou para a área circulada no mapa e em seguida para a casa.
"É aqui", tentou pronunciar, mas algo que não lhe acontecia há muito tempo voltou em um momento inoportuno - um ataque de asma.
Nádja puxava o ar com força, tendo uma vaga noção do que acontecia ao seu redor. Ela viu quando passaram pelas árvores em direção à casa - dezenas de estudantes praticamente rolaram o morro abaixo. Foi quando ela soube - eles estavam perto.
Seu desespero aumentou.
Ela fez menção de virar para o irmão para pedir ajuda, quando o viu disparando a frente com Luana nos braços. Sentira-se só por um breve momento, até sentir as mãos que a puxaram para cima.
Lúcio puxou Nádja para cima com uma força que a muito achou ter perdido.
A garota esforçou-se para colaborar com ele, arrastando-se morro abaixo enquanto apoiava-se em seus ombros.
Lúcio podia ouvi-los se aproximando e xingou mentalmente os universitários que aproximavam-se daquela casa. Aquele era seu lugar, seu quarto do pânico.
Por sorte, apenas ele sabia onde se esconder ali dentro.
Arrepiou ao pensar que a decisão de quem viveria e quem morreria estava em suas mãos.
Fez uma nota mental - deveria pedir perdão a Deus quando tudo acabasse.
Nina arrependeu-se de olhar para trás quando chegou aos pés do morro.
Antes disso, tinha a falsa sensação de que estariam seguros dentro daquela casa, um achado em meio ao bosque.
Ela estava errada.
Se já estivesse apavorada, agora não saberia dizer o que sentia.
Como se não sentissem absolutamente nada, as criaturas despencavam morro abaixo, sedentas por sangue. Eram o dobro de todos os que estavam ali e os cercaram por todos os lados.
Nina petrificou-se, tendo certeza de que aquele seria seu fim, que seria mais fácil apenas fechar os olhos e esperar.
Mas a amiga não deixou.
Sabrina pegou no cotovelo de Nina e a puxou bruscamente casa adentro. A porta já estava escancarada quando chegaram, a fechadura estilhaçada. Sabrina sabia a quem seguir - Lúcio se mostrara confiante o suficiente até aquele ponto. Isso se intensificou quando ela abriu a porta que dava para a sala.
Lá estava ele, perdido em meio aos formandos bêbados em pânico, concentrado com a filha finalmente nos braços, fazendo o que sabia fazer.
Ele mandou todos se afastarem para as extremidades da sala, o que fez ser obedecido pela arma que tinha em mãos.
Lúcio tirou o tapete do meio da sala com um só puxão e revelou um alçapão.
Uma breve faísca de esperança surgiu no peito de todos, mas logo foi arrancado dos que estavam mais próximos das janelas, arrastados para fora em um só puxão.
Lúcio jogou os Moon e Luana alçapão adentro, tentando manter certa ordem ali. O que aqueles calouros menos queriam era ordem, eles queriam sobreviver.
Uma aglomeração gerou-se ao redor do alçapão, como se todos tentassem entrar no vagão vazio do metrô e pegar um lugar para irem sentados. Só que, dessa vez, conseguir um lugar era o mesmo que garantir a vida por mais alguns segundos.
Thiago correu para fechar a porta da sala assim que viu que as criaturas adentraram a casa. Sabrina ajudou-o, ganhando-lhes tempo.
Beto chorou, em choque, abraçado à Carla, enquanto Mário pôs-se a fazer aquilo em que era melhor - caçar.
Um por um, destroçou as cabeças das criaturas que insistentemente tentavam adentrar pelas janelas quebradas.
Da aglomeração, dois tiros para cima fizeram com que todos gritassem e se afastassem.
Lúcio desperdiçara duas balas ao pedir espaço. Ele fez um sinal com a cabeça para que Sabrina entrasse no alçapão, o que ela fez sem pensar duas vezes. Ele devia isso a garota, a outra única com quem ele simpatizara. Fez com que o grupo que estava com ele adentrasse o local e depois entrou no ambiente escuro, ao mesmo tempo que ouviu o restante dos vidros se estilhaçarem.
Conseguiu colocar apenas mais duas pessoas para dentro antes de tomar uma decisão drástica - Lúcio fechou a porta do alçapão e a trancou por dentro.
Ninguém discutiu, ninguém argumentou, apenas ficaram ali, no escuro, ouvindo os gritos dos jovens que não tiveram tanta sorte quanto eles.
(ilustração autoral - Thiago)
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