25. Conflitos
Todas as suas falhas tentativas de pegar no sono foram frustradas.
Nádja aproveitou do escuro para desesperar-se em paz.
Deitada no chão da cabana, sentia o corpo quente contra a madeira dura sob seu corpo.
Ela engoliu um soluço e levou uma das mãos à testa. Sentiu-se febril.
A luz da lua que entrava pelas frestas das altas janelas a permitia ter uma visão parcial daquele breve recinto - todos descansavam.
Seu irmão estava em um canto. A garota Sabrina dormia desconfortavelmente em seu ombro. Os outros dispunham-se entre o sofá cheio de insetos e os cantos mais escuros em que a lua não os incomodava.
O silêncio a matava internamente.
Nádja levantou a manga da blusa e fitou o delineado da marca dos dentes que perfeitamente se esboçavam em sua derme. Não conseguia entender.
O ferimento sangrava e pulsava, mas ela ainda estava ali. Ainda era ela.
A adolescente se levantou de supetão, agitada, e rumou para a pequena cozinha ao lado deles, dividida da sala apenas por uma bancada da altura de seu tórax.
Nádja sentiu as mãos trêmulas ao tatear as mochilas no escuro. Ela finalmente alcançou o que queria em sua penúltima tentativa - o kit de primeiros socorros. Pensou até mesmo em acordar o irmão para mantê-lo por perto ali, com ela, seu confidente e único com quem compartilhava aquele segredo, mas sentiu que ele precisava daquele sono.
Nádja tomou as gazes e o soro nas mãos e procurou a pia.
A amena luminosidade que vinha de fora facilitou para que ela tratasse de si mesma.
Contorcendo o rosto para não resmungar, Nádja arregaçou a manga da blusa. Antes mesmo que pudesse despejar o soro sobre o braço, ouviu o som da arma sendo engatilhada logo ao lado de sua cabeça.
Com o susto, a garota soltou o frasco e o derrubou no chão aos pés de quem a ameaçava. Seus olhos demoraram a entender a cena - Mário apontava o rifle para sua têmpora, ameaçando puxar o gatilho.
Os outros acordaram em uníssono. Nada mais era um segredo.
- Pai? - A voz de Beto foi a primeira a ser ouvida.
Um click despertou o restante dos adormecidos e iluminou a cena. A lanterna acesa nas mãos de Thiago apontava diretamente para a cozinha. A pequena câmera presa a sua blusa estava com a luz vermelha piscando, como se registrasse cada detalhe.
Mário e Nádja entraram em foco.
- Mas que porra?! - Lúcio gritou, já botando-se de pé. Luana resmungou ao se sentar.
- Não dê mais um passo, Lúcio. - Mário ameaçou, segurando no antebraço de Nádja. Uma lágrima solitária escorreu pelas bochechas da garota. Seu rosto contorceu-se em pesar. - Sabe os segredos que sua protegida esconde?
Lúcio cerrou as sobrancelhas. Estava furioso. A simples visão do homem segurando o braço de Nádja o deixava desconcertado.
Seu olhar calmamente voltou-se para a filha dos Moon.
- Nádja? - O padrinho perguntou de modo tranquilo, contrastando com sua feição, como se quisesse ao mesmo tempo acalmá-la e esclarecer tudo aquilo.
Nádja soltou um soluço. Caubi botou-se de pé com a arma em mãos, mas quem apontou o rifle para a cabeça de Mário foi Pitt.
- Não! - O grito de Carla cortou a sala. A mulher abraçou-se ao filho, que desesperou-se mais que a mãe.
- Abaixe a porra da arma, Mário. - Pitt ordenou por entre os dentes cerrados.
- Estou só nos protegendo. - Mário justificou-se, sem tirar os olhos de Nádja.
- De uma garotinha?
Mário soltou o braço da garota e tomou seu punho. Nádja soltou um grito de dor ao tê-lo levantado e exposto. À luz da lanterna, todos viram perfeitamente a marca dos dentes - ela estava infectada.
Noa abotoou o último botão de sua blusa antes de irromper porta adentro. Nina estava em seu encalço, pasmada com a cena que encontrou.
- Que merda estão fazendo? - O garoto segurou-se para não gritar, mas certificou-se que sua voz passava autoridade.
- Nádja foi mordida. - Sabrina levou uma das mãos à boca. Sua voz quase não escapou por entre os dedos. Estava pasma, ainda sentada em seu canto.
Caubi atravessou a sala em um instante. Sabia que Mário não atiraria.
Nádja deixou os soluços escaparem quando Caubi a empurrou de frente da arma e tomou seu lugar.
- Não, Caubi! - A irmã apertou seu braço, mas a arma já estava apontada para o centro da testa do garoto.
- Seu imbecil, sua irmã vai matar todos nós! - Mário gritou.
Os soluços de Nádja misturavam-se aos de Carla e das duas crianças. Os outros, pelo contrário, estavam tão pasmados que nem mesmo sabiam como proceder.
- Quando foi isso, Nádja? - Lodi perguntou calmamente. Via-se medo em seu olhar enquanto espremia-se contra a parede.
Nádja apertou o braço de Caubi. Sentiu um pavor crescente tomar conta de seu peito.
- Foi antes de tirarmos vocês do outro prédio. - Caubi respondeu por ela, sem tirar os olhos de Mário, que recusava-se a abaixar a arma, mesmo com Pitt o ameaçando constantemente.
- Faz horas... - Clara Lodi concluiu.
- E daí? - Mário questionou.
- Essas coisas... eu vi eles transformarem meus amigos em segundos. - Mendes recordou com pesar, sentado em seu canto.
- Isso não significa que ela não vá ser uma ameaça, porra! - Mário gritou, chacoalhando a arma. - Tínhamos o direito de saber!
- Pra quê? - Noa perguntou, sua voz doce e incisiva introduzindo-se na conversa em uma tentativa de pacificidade. - Pra você apontar uma arma pra cabeça de uma adolescente?
As mãos de Noa ergueram-se em um pedido de calma.
- Não venha com esse papo pra cima de mim, seu merdinha! - A arma se voltou para Noa. Nina cravou as unhas no bíceps do garota, aflita.
- Mário! - Carla gritou em meio aos prantos, já se levantando. - O que está fazendo?!
Pitt engatilhou sua arma, apontada para o crânio de Mário. O grito de Beto cortou o coração de todos.
- Não vêem o que está acontecendo aqui? - Com a lanterna ainda tremulando nas mãos, iluminando a cena caótica que se seguia, Thiago perguntou. - Qual é, fui só eu que joguei The Last Of Us?
Olhares mal encarados se voltaram para o garoto.
- Que merda é essa agora, Thiago? - Sabrina vociferou.
- Cacete, Nádja foi mordida e está bem. - Thiago concluiu.
- Está tremendo em febre. - Nina odiou observar, analisando a garota de cima a baixo. Também sentia medo.
- Está viva, porra! - Thiago interviu. - Se chegarmos com ela bem em Cravo... talvez seja mais fácil resolver essa merda toda.
Um silêncio atravessou a sala. Nem mesmo a noite no bosque entrava pelas janelas. Eram só eles ali, com armas apontadas uns para os outros.
Mário abaixou a arma devagar. Pitt, no entanto, só guardou a sua quando viu que o homem não era mais uma ameaça.
- Vamos embora. - Mário tomou seu filho pela mão.
- O quê...? - Sua esposa permaneceu ali, parada como uma estátua.
- Pai... - A voz de Beto era uma lamúria.
Mário tomou uma das mochilas, a ponto que ninguém se prontificou.
- Vamos, Carla! - O homem já havia passado por Noa e Nina, parados na porta até então. O vento frio da noite os recebeu. - Não estamos seguros aqui.
- E estamos lá fora, Mário? - A esposa suplicava em cada sílaba.
- Não precisam fazer isso. - A voz de Lúcio intrometeu-se na conversa.
Mário olhou de Nádja para Lúcio. De Lúcio para a esposa. Da esposa para o filho.
Sem mais delongas, Mário partiu com Beto, sem deixar escolha para Carla, que correu cabana afora atrás da família. Estavam por conta própria.
- E desligue essa merda! - Pitt inesperadamente vociferou para cima de Thiago assim que os Hernandez saíram.
Thiago se levantou com a ameaça. Sabia que tratava-se da câmera. O garoto abriu a boca para protestar, mas segurou-se. A madrugada já carregava drama demais.
Contentou-se com um sussurro.
- Idiota.
Para sua infelicidade, Pitt escutou.
O grandalhão partiu para cima de Thiago com os olhos cheios de fúria. Os presentes começaram uma miscelânea de protestos sobre protestos.
Pitt segurou na blusa de Thiago e o puxou para perto. O garoto não recuou. Manteve seu olhar fixo no do outro, sem deixar-se intimidar.
- Desligue a porcaria dessa câmera antes que eu quebre ela na sua cabeça. - Pitt cuspiu as palavras. - Não estamos na porra de um reality show.
- Alguém tem que acreditar em nós quando sairmos daqui, não é? - Thiago respondeu no mesmo tom.
- Não vamos sair daqui, seu merda! Não entendeu?
- Ei! - Sabrina gritou, intrometendo-se entre os dois, uma mão no peito de Pitt e a outra no de Thiago, impedindo-os de continuar com aquilo. - Calem a boca, os dois.
- E quem te deu o direito de me mandar calar a boca, garota? - Pitt deixou a raiva subir em sua cabeça.
Thiago desvencilhou-se rapidamente de Sabrina. Deixou a lanterna cair no chão.
- Olha como fala com ela, seu...
- Seu o quê? - Provocou Pitt.
Thiago sustentou os desaforos o máximo que conseguiu. A raiva subiu sua cabeça, somada à exaustão, ao medo, à sensação horrível que lhe dizia que todos os que amava estavam mortos e ele seria o próximo. O rosto de Pitt caiu como um perfeito saco de pancadas para se aliviar.
O garoto não pensou duas vezes. Com o punho direito cerrado, acertou um cruzado mal dado no maxilar do grandalhão, ao som de urros e protestos dos outros - e os soluços da pequena Luana.
Pitt, como uma flecha, contra-atacou sem ao menos sentir a dor em seu queixo. Seu punho afundou na boca do estômago de Thiago sob uma salva de protestos. Antes que percebessem, já estavam se engalfinhando.
Thiago perdeu o ar por incontáveis segundos, mas não deixou que a dor lancinante o finalizasse ali. Ele partiu para cima de Pitt novamente, que estava pronto. Entretanto, a figura pasmada da amiga entrou em seu campo de visão. Sabrina colocou-se entre ele e Pitt logo antes de o amigo acertar em cheio o nariz do grandalhão.
Pitt teve os braços segurados por mãos que ele nem ao menos soube de quem pertenciam. Um par ele teve certeza de que tratava-se de Noa, que pedia por um cessar fogo.
Thiago não desistira. Pitt não desistira. Os piores sentimentos acumulados dentro daqueles dias naquela cidade fantasma aflorou no âmago dos dois de forma quase inumana. Precisavam extravasar tudo de algum modo.
Pitt xingou, chutou, esperneou, assim como Thiago. O grandalhão, entretanto, soltou-se primeiro. Seu próximo golpe foi cego, mas seu punho não acertou Thiago. Com um grito agudo de dor, Sabrina foi ao chão.
Lúcio interviu. O homem forte deixou Luana no sofá por um instante e, ao som crescente do choro da filha, empurrou Thiago para um lado, que rumou ao chão imediatamente.
Lúcio voltou-se para Pitt. Eles eram do mesmo tamanho, igualmente fortes. Por mais que Pitt não o respeitasse, a autoridade que Lúcio impunha era intimidadora.
- Parem com isso agora, porra! - O homem empurrou Pitt, que viu-se solto dos braços que o seguravam. Ele não avançou mais. Cuspiu o sangue da boca antes de olhar para o chão. Sua adrenalina baixou aos poucos ao olhar para Sabrina.
Com o amparo de Nina, Sabrina levantou-se com os olhos lacrimejando e carregados de uma fúria que ela não sabia que tinha.
De seu septo, o sangue escorria incessantemente. Ela tentou sem sucesso secá-lo com as costas da mão, sem tirar os olhos de Pitt.
- Imbecil. - A garota cuspiu junto com o sangue.
À pouca luz da lanterna jogada no chão, os que restaram se entreolharam. Os soluços de Luana foram abafados quando Caubi a tomou nos braços.
Tanto Pitt quando Thiago sabiam que tinham passado dos limites.
Nada disseram, entretanto.
Após longos segundos que mais pareceram horas, Nina tomou a lanterna do chão em mãos e fez com que os olhares voltassem para ela.
A ruiva respirou fundo e coçou a cabeça. Tinha muito a dizer, mas contentou-se em apagar a lanterna após murmurar:
- É meu turno agora.
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