22. Sem Saída
Nádja gritou, sentindo a carne de seu antebraço ser arrancada por dentes afiados como navalhas.
Seus olhos se acostumaram ao escuro apenas para mostrá-la a face de seu pesadelo: a criatura não tinha um dos olhos, mas o outro fixava-se nela como se a próxima coisa que fosse devorar fosse a alma da garota.
Nádja caiu para trás, tentando soltar-se das mandíbulas fortes que prendiam seu punho, mas foi impedida pela dor lancinante que sentiu na região.
A criatura abriu a boca, deixando que Nádja caísse no chão, e a garota viu o anunciante de sua morte por completo. Dali, de baixo, ele parecia ter o dobro de sua altura. A criatura não era magra como as outras. Era forte. Ela viu as vestes. Ele trajava as vestes de um soldado. O recém adoecido pareceu sorrir sadicamente ao vê-la ali, no piso de madeira quebrado, segurando o próprio punho e implorando por sua vida.
Nádja estava estática. Sua mão dominante mergulhava na mais profunda dor que já sentira e ela não conseguiu pensar em pegar a arma.
Olhou para o soldado de olhos brancos e em seguida para o ferimento sangrando em suas mãos.
Acabara para ela.
Nádja deixou as lágrimas escorrerem e gritou com seu mais adormecido imo. Seu último brado antes de morrer.
A criatura saltou para cima dela, grunhindo.
O som do disparo da arma misturou-se aos gritos tanto de Nádja quanto da criatura, que caiu morta ali mesmo, ao lado de Nádja, com o crânio estourado.
Nádja viu Caubi na porta, parado, apontando a arma para o vazio onde antes jazia seu perseguidor.
A garota quis correr e abraçar o irmão, mas a dor em seu punho só a lembrava do inevitável.
- Eu vou morrer, Caubi.
Noa não soube como conseguiu correr tão rápido por entre os entulhos daquele prédio abandonado, nem como Nina o acompanhou tão de perto.
Ambos atravessaram aquele andar lado a lado, Nina segurando a arma em mãos sem saber direito como usá-la.
Noa chegou onde queria - a janela do lado oposto. Ele queria uma visão perfeita de como sairiam dali. Viu a fábrica do outro lado, longe demais.
- Estamos cercados! - Nina disse, olhando para os lados lá embaixo, ofegante. As criaturas forçavam as portas de todos os lados para entrar. Logo os alcançariam.
A garota empalideceu.
Sua melhor chance seria pular para fora dali e lidar com o que quer que estivesse a esperando lá embaixo, mesmo que isso fosse quase o sinônimo de suicídio. Entretanto, em nenhuma hipótese deixaria os outros para trás. Em nenhuma hipótese deixaria Sabrina para trás.
Noa engoliu em seco. Estava pronto para correr de volta para os outros quando viu uma figura conhecida pela janela da fábrica.
- Pitt!
O grandalhão parou ao ouvir a voz, voltando para trás.
Pitt e Noa se encararam, comunicando-se com os olhos. Os olhos negros de Noa pediam por ajuda.
Pitt viu que os amigos estavam encurralados ali, naquele pequeno prédio de tijolos, e que logo os alcançariam. O garoto pensou o mais rápido que pôde. A distância de um prédio para o outro não era algo possível de saltar, mas não era impossível de atravessar.
- Subam! - O grandalhão gritou, desaparecendo em seguida pela escuridão.
Nina já rumava de volta para onde deixara os amigos, mesmo que Noa estivesse estático, olhando pela janela. Ele acreditou por um segundo que aquele seria seu fim.
Sabrina ouviu quando entraram.
As portas do andar de baixo se destroçaram em frangalhos. Ela não soube decifrar se eram as criaturas ou os soldados, mas tinha certeza que qualquer um deles lutaria para tirar sua vida. E ela lutaria para sobreviver.
Olhou em volta.
Lodi já estava pronta para correr dali com Mendes, ambos a um passo das escadas.
- Vamos, Sabrina! - A garota das tatuagens gritou.
Sabrina obedeceu. Ela abraçou o tronco de Mori de modo que o colocasse em pé e o puxou para cima, apesar dos murmúrios de desagrado do amigo.
Seu coração gelou.
Ela procurou por Beto na escuridão. A criança não estava ali.
- Beto!
Tanto Lodi quanto Mendes procuraram em volta também. Nenhum dos dois vira o menino afastar-se deles.
- Merda, Beto! - Sabrina gritou, levando as mãos à cabeça.
Lodi arregalou os olhos e assumiu uma responsabilidade que não sabia se daria conta.
- Anda, ache o menino!
Sabrina olhou para Mori. O garoto estava com a cabeça pendente, cansado, com dor. Mesmo assim, ele encontrou forças para respondê-la.
- Vá, Sabrina. Eu me viro.
A morena não perdeu tempo.
Lodi correu para apoiar Mori em seu lugar e Sabrina correu pelos corredores afora.
Seu coração disparou, ouvindo os sons nos andares de baixo que subiam gradativamente.
Antes mesmo que pegasse a arma, deparou-se com uma figura ruiva conhecida. Nina correu até ela a todo pulmão.
Sabrina a amparou assim que a amiga se aproximou.
- Sobe! - Foi tudo o que a ruiva conseguiu pronunciar enquanto procurava o ar.
- O quê?! Por que vocês gostam tanto de subir? Não temos saída, Nina!
- Só sobe, Sabrina!
Elas sabiam que não tinham tempo para discutir.
Cada uma seguiu sua direção. Sabrina continuou sem rumo, procurando pelo garoto dos Hernandez, enquanto Nina pôs-se ao lado de Lodi, pronta para ajudar os feridos, todos rumando para os andares de cima. Para o telhado.
Sabrina não conseguiu respirar quando virou naquele corredor.
A primeira porta à sua direita estava aberta. Foi quando ela viu.
Beto estava parado no meio do cômodo escuro e pequeno que assemelhava-se a um escritório. O menino estaria estático se não tremesse e chorasse tanto. Um soldado apontava a arma em direção à sua têmpora, ameaçando puxar o gatilho.
Caubi não soube descrever o que sentiu ao vê-la assim.
Ele viu o sangue escorrer de suas mãos e teve certeza - a irmã fora mordida.
O garoto correu até ela e ajoelhou-se ao seu lado. Tentou puxar a mão da irmã para analisá-la, mas Nádja recuou aos prantos.
- Você tem que sair daqui! - A garota gritou.
- Nádja, me deixe olhar!
- Caubi, saia!
- Não! - O garoto segurou nos braços da irmã. - Nádja, se acalme. Olha pra mim.
A garota tremia como nunca antes na vida. O medo a dominou.
- Está sentindo alguma coisa? - O irmão perguntou, tão calmamente que ela surpreendeu-se.
- Não... - Além da dor horrível, Nádja não sentia nada. Ela ainda era ela. Ela ainda tinha domínio sobre seu corpo. E aquela criatura já estava morta a sua frente há tempo demais. Ela já havia sido mordida há tempo demais.
Enquanto Nádja raciocinava, Caubi agiu. Rasgou um pedaço da blusa e enrolou no ferimento da irmã.
- Você vai ficar bem, Nádja. Vamos nos preocupar com isso depois, tá legal? - Ele se levantou e puxou a garota consigo, que ainda tentava entender o porquê de não estar doente. - Esconda esse braço e me siga.
Nádja concordou, deixando que o irmão mais velho a guiasse para fora daquele quarto.
Como se tivessem combinado, Thiago voou escada abaixo ao mesmo tempo que Pitt a subiu. Ambos encontraram os irmãos Moon no meio do caminho.
- Andem, subam! - Pitt gritou, sem trazer mais explicações. - Eles precisam da nossa ajuda.
- Espere! - Sabrina gritou, mergulhando na sala instintivamente.
Ela não soube como reagir à cena. Beto implorava pela vida, com os olhos fechados e as mãos cerradas. Sabrina não podia deixar que terminasse assim.
O soldado não tirou os olhos de Beto, mas ela viu em sua expressão - o homem não queria atirar. A mão que segurava a arma tremia tanto quanto a criança. Seus olhos claros estavam arregalados e ele suava com o nervoso. Era novo. Talvez tão novo quanto Sabrina.
- Espere, por favor... - A garota pediu, aproximando-se a passos lentos, por mais que o som do caos do lado de fora a mandasse se apressar.
- Vocês estão todos doentes... - A voz do soldado saiu embargada e seus olhos encheram-se de lágrimas.
- Não estamos, não... - Sabrina segurou as próprias lágrimas. - Estão mentindo pra vocês. Por favor, você está apontando a arma pra cabeça de uma criança.
- Vocês já estão mortos! - O soldado gritou, chacoalhando a arma.
- Não estamos doentes! Por favor, você tem uma saída...
A arma mudou de direção. Passou da cabeça de Beto para a cabeça de Sabrina, mas ela surpreendentemente não se importou. Daquele jeito ela conseguiria falar olhando nos olhos do fardado.
Beto chorou mais alto, escondendo-se atrás da garota.
Sabrina segurou em uma das mãos suadas do garoto, sem tirar os olhos dos olhos claros do soldado, que a fitavam com medo e intriga.
- Eu sei que você está confuso. - A garota deixou as lágrimas escorrerem pelo rosto sujo e cansado. - Sei que não sabe em que acreditar, mas eu te imploro, não dispare a arma...
Ela percebeu o efeito de suas palavras sobre aquele jovem meândrico.
- Abaixe a arma e siga com a gente... Vamos te explicar tudo, eu prometo.
O soldado pareceu ainda mais novo quando abaixou a arma, confuso e culpado. Desesperado.
Sabrina forçou um sorriso, mas não teve tempo de obter respostas.
Ela não viu quando a criatura se aproximou, correndo sobre quatro apoios mais rápido do que um animal feroz.
O soldado não teve tempo de alcançar a arma antes de ter sua jugular arrancada bem em frente de Beto e Sabrina que, mesmo petrificados com o choque, correram para o mais longe possível dali. Para cima, como indicara Nina.
Tanto Noa quanto Mendes atiravam nas criaturas que ousavam se aproximar deles como se tivessem vivendo um videogame. O prazer de colocar aqueles miolos para voar era indescritível para ambos.
- Noa! - Ele ouviu uma voz conhecida. Era feminina, mas não pertencia a Lodi ou Nina, que rumavam com Mori para o último lance de escadas, atrás deles. Vinha de Sabrina.
A garota se aproximou deles puxando Beto. O garoto não continha as lágrimas de desespero.
- Caralho, Sabrina, achei que íamos ter que deixar vocês aí! - Mendes gritou, guardando a arma e voltando-se para a escada, mancando.
Sabrina soltou Beto, que voou para os andares de cima, em direção à luz do dia do telhado. A garota apoiou Mendes e subiram ambos incrivelmente rápido pelos degraus de cimento.
Noa fez menção de segui-los, mas não sem antes dar uma última olhada para baixo, para os lances de andares que deixaram para trás.
Foi quando o estilhaço das portas rompendo lá embaixo fez com que todos parassem.
Nenhuma restara inteira. Todas as entradas daquele prédio abandonado estavam desimpedidas.
Como em um filme de terror, Noa viu as criaturas mergulharem edifício adentro, subindo com uma velocidade abismal, sedentas pelo sangue vermelho que - ainda - corria pelas veias dos sobreviventes.
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