13. Dentes Putrefatos
- Acordem!
A voz feminina pouco familiar invadiu os sonhos de Fred Mendes, acordando-o aos poucos.
O garoto não soube como conseguiu dormir tão bem ali, praticamente sentado e com as costas apoiadas nos braços do sofá.
Quando conseguiu se localizar e lembrar onde estava, viu a garota de cabelos curtos e tatuagens por todo o corpo acordando um por um ali dentro.
O sol já entrava pelas janelas sem cortinas com vidros sujos e desgastados.
Mendes passou as mãos pelos cabelos platinados tentando se acordar.
Sentiu o estômago roncar.
- Estou com uma puta fome!
- Eu racionei a comida pensando que podemos ficar até quatro dias aqui. - A garota mais nova, Nádja, respondera. Parecia já estar acordada há algum tempo. Ela tirou de uma das mochilas uma garrafa de água e um pacote de bolachas, jogando os dois para Mendes. - Essa água tem que durar o dia inteiro pra todo mundo e esse pacote de bolachas é o café da manhã.
Mendes fez uma careta. Olhou para as bolachas de doce de leite na mão, pensando que poderia ser bem pior.
- Cara, eu vou sair daqui raquítico. - Pitt levantou-se do sofá ao lado de Mendes e alcançou a água de suas mãos, dando um gole.
- Então vamos chegar à Cravo logo. - Lodi apoiou-se na parede para se levantar, esfregando os olhos e arrumando os cabelos emaranhados. Dividiu um terço da cama com as crianças, dormindo melhor que muitos ali. - E me dê uma bolacha antes que meu estômago vá parar nas costas.
Mendes riu do mau humor matinal da garota e arremessou o pacote de bolachas.
Quando todos ali acordaram, Lúcio se levantou, assumindo o papel a ele designado.
- Vamos andando, já passam das oito da manhã. Perdemos duas horas de sol.
Sem vontade de discutir, os quinze se levantaram, se dando conta de quão grande era aquele grupo para se deslocar discretamente por uma cidade inteira.
- Vamos fazer o seguinte. Eu vou na frente, quero alguém do meu lado armado e dois ou três na retaguarda do grupo, atentos.
De braços cruzados, Mário respondeu:
- Te sigo na frente.
- Fico atrás. - Caubi se pronunciou com a arma em mãos.
- Fico atrás também. - Mori falou baixinho, sentado em um canto da sala.
Ninguém mais decidiu pronunciar-se.
Os sobreviventes se encararam mais uma vez antes de arrancarem a barricada da janela que os levaria à escada de incêndio e partirem para as ruas, caminhando incertos.
- Acho que peguei o jeito desse negócio.
Thiago manuseava a câmera desde a noite passada, tentando entender como aquele aparelho tão pequeno poderia ser tão complexo.
- E olha! Dá pra colocar na blusa. - Ele prendeu a câmera na gola da camiseta, que ficou puxada para baixo. Apertando um botão em cima dela, uma luz vermelha se acendeu, indicando que estava gravando. - Muito bem, Sabrina García, o que está achando dessa experiência até agora?
Sabrina revirou os olhos, engolindo o último pedaço da bolacha designada a ela.
Eles já estavam nas ruas, enfrentando um sol de rachar e caminhando como uma alcateia desajustada.
- Que minha nutricionista não ia gostar nada do meu café da manhã.
Thiago riu.
- Que frescura. Uma bolachinha de doce de leite cheia de açúcar pra aguentar o dia e um gole de água. Não fiz nutrição mas eu acho que é mais que suficiente.
- Vai ter que ser. - Lodi respondeu, mau humorada, andando na frente dos dois e sem olhar para trás.
Thiago e Sabrina se calaram a contragosto.
- Foi mal, - Lodi esfregou os olhos. Ela não costumava ser a mais sociável, mas também nem um pouco mal educada. - é que eu costumo comer pelo menos vinte vezes mais que duas bolachas recheadas no café da manhã. E ficar com fome me deixa de mau humor.
- Agradeça por ser só mau humor. - Mori comentou, ainda soando mais mórbido do que gostaria. - Espero que a gente não descubra o que é fome de verdade. Dividiu essas comidas direito, garota? - Dirigiu-se à Nádja que, perdida na visão deslumbrante da natureza combatendo a cidade, assustou-se ao ser chamada.
- É claro que sim. É só não vacilarmos.
- Vacilarmos? - Noa perguntou.
- É. Temos quatro dias até Cravo. Mais que isso a comida acaba.
- Dizem que os menores tendem a sobreviver porque precisam de menos comida. - Nina brincou, com seu 1,60, uma das menores dali, tirando as crianças. - Eu me viro bem.
Nina olhou para Pitt, arrancando algumas risadas.
- O que tá olhando?
Pitt era alto e forte, visivelmente.
- Você seria o primeiro a morrer de fome, cara. - Mendes comentou, com um tom de brincadeira.
- Claro que não, eu sou muito mais resistente do que vocês, qualquer um de vocês!
- Não tem a ver com resistência, babaca. - Mori retribuiu, pensando se não teria comprado inimizade com Pitt, mas viu que ele também levou na brincadeira. - Tem a ver com precisar de mais pra sobreviver.
- Ah, é? E do que você sabe, magrelinho?
- Sei que eu duraria bem mais que você se nossa comida acabasse.
- Demorou, apostado!
- Apostado o quê, mano?
Os outros riram baixo ouvindo a conversa.
Pitt não encontrou nada para apostar, já que naquela hipótese um dos dois estaria morto.
- É engraçado. - Nádja cochichou para a nova amiga.
- O que é engraçado? - Sabrina perguntou.
- Como piadas mórbidas ficam naturais em situações como essa.
Sabrina pensou em algo para dizer, mas não encontrou as palavras. Lodi a salvou.
- Acho que ninguém aqui acredita que vai morrer. - Ela olhou para trás pela primeira vez, tentando forçar um sorriso à Nádja. - Então brincar com a morte fica mais fácil de lidar. Faz sentido?
Fazia sentido. Nádja não queria admitir, mas Lodi tinha razão sobre as duas coisas.
Brincar com o que não se acredita é fácil, é descontraído, mesmo que a morte os ronde por todos os dias de suas vidas, a cada segundo, e seja a única certeza que se tem desde que se entende como funciona esse negócio de viver. Ali mesmo, naquele instante, Nádja jurou que pôde ouvi-la sussurrar em seu ouvido.
- Fique por perto, querida! - Lúcio se pegou gritando quando Luana se afastou, deslumbrada com a cidade esquecida.
A pequena relevava as pragas urbanas, focada apenas nas borboletas e pássaros que voavam de um lado para o outro da avenida principal. Diversos carros abandonados estavam dispostos por ela, agarrados às raízes das árvores que resistiram ao asfalto para nascer.
Luana passava as mãos pelas flores rosas, sentindo a essência característica da flor.
- Como chama essa flor, pai? - A menina gritou, metros de distância de Lúcio e do grupo.
- Gerânio, filha.
- Mas Gerânio não é o nome da cidade?
- A cidade leva o nome dessa flor. É linda, né?
- E cheirosa!
O pai sorriu, vendo a inocência da criança que corria por entre os carros.
- Luana! - Beto a seguiu. - Não vá longe!
- Filho! - Carla chamou.
- Deixe os dois, estão por perto. - Mário comentou para a esposa. - Precisam ser um pouco felizes.
Lúcio viu os dois se afastarem com o coração apertado. Queria dar a liberdade para a filha, mas sabia que não era seguro. Não tiraria os olhos dela.
- Lúcio! - A voz de Nádja o gritou.
Lúcio se virou, vendo que os outros haviam parado, olhando para trás.
- O que foi?
- Não ouviu? - Lodi falou, sem tirar os olhos da cidade ao redor.
Lúcio parou para ouvir. A cidade silenciosa agora tinha movimento. Tinha eco.
Ele ouviu as tábuas caindo, as pancadas no cimento pesado, o farfalhar das folhas secas estalando sob o peso.
O homem rezou para serem ratos, quando ouviu um grunhido distante que o tirou de órbita.
Lúcio empalideceu. Voltou-se para frente, desesperado - perdera Luana do campo de visão.
- Luana! - Ele chamou, pouco se importando com a discrição.
O grupo começou a se movimentar estranho, como se estivessem se fechando em defensiva.
- Beto! - Carla gritou com a voz falhada.
- Luana! - Lúcio gritou mais uma vez, já correndo para onde vira as crianças por último. De longe, aquele fora o momento mais pavoroso de sua vida. Nem as guerras, nem a matança, nem as perseguições e nem as mortes se compararam àquele segundo em que Lúcio ouviu a filha gritar.
Tanto Lúcio quanto os Hernandez correram em direção aos gritos das crianças.
O restante do grupo petrificou-se no lugar.
Lúcio não corria assim há anos. Finalmente conseguiu respirar quando trombou com as crianças. Beto puxava Luana pela mão, ambos aos prantos.
Lúcio se abaixou para abraçar os dois, confortando-os. Ele engatilhou a arma e colocou as crianças atrás deles.
- O que foi?!
- Vimos alguma coisa! - Beto desgrudou-se de Lúcio assim que avistou os pais, correndo para um abraço apertado com Carla enquanto Mário se punha ao lado de Lúcio, fitando a rua vazia de onde as crianças apareceram.
- O que viram, filho? - A pergunta veio de Carla, abaixada ao lado do filho. Entretanto, ela não fitava seu rosto. Ela fitava além dele.
Pelo canto do olho, Carla viu quando ele se aproximou, aquela figura desforme que já não aparentava ter vida. Ele saiu de dentro do prédio abandonado e olhou dentro dos olhos de Carla, que não conseguiu nem balbuciar um pedido de socorro.
A criatura já fora um homem, agora sem cabelos na cabeça e o corpo tão magro quanto um esqueleto, como se sua pele pudesse rasgar sob qualquer contato. Mas o que realmente a apavorou não foram os olhos, não foi o corpo, foi a boca.
Carla finalmente conseguiu gritar quando aquela boca com dentes putrefatos sorriu para ela.
(ilustração autoral - Fred Mendes)
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