Uma rosa vermelha banhada em sangue
18
Como já estava tarde, decidi sair do comércio direto para a trilha, alcançando a entrada da caverna quando o sol começava a se pôr.
—Voltei!Não trouxe nada da casa da Alie hoje, mas fui na feira e comprei essas maçãs, parecem estar com uma cara ótima!
Tirei a capa antes de me acomodar nas rochas frias.
—Vai querer uma?
Como de costume minha companhia era o silêncio.
—Vou deixar aqui caso sinta fome depois...
Coloquei a fruta na mesma rocha de sempre antes de comer a minha.
—Hoje o dia foi cheio, decorei bolos, um monte deles!Foram tantos que nem me lembro, mas ficaram lindos — fiz uma pausa — Acontece que vai ter uma festa amanhã, e todos parecem muito ansiosos por ela.
Olhei em direção a floresta, o olhar disperso enquanto eu me lembrava das preparações do festival. O vilarejo era tão cheio de vida, cores e aromas que era praticamente impossível não comparar com o silêncio da caverna. Respirando fundo dei outra mordida na maçã pronta para contemplar mais uma vez a escuridão da noite em completo silêncio quando uma voz ecoou distante reverberando pelas rochas.
—Por que você volta?
Olhei sem entender para o vazio atrás de mim.
—Por que você volta?
Dessa vez escutei com mais clareza, no entanto, a pergunta ainda não fazia sentido.
—Desculpa, mas eu não entendi o que você quer dizer Eylef.
Tomando forma na escuridão o belo par de olhos se tornou visível.
—Você passa o dia no vilarejo, fez amigos, tem um trabalho, dinheiro, comida e um teto para morar...
Fazia tanto tempo que eu não o via que tinha me esquecido do rancor palpável que parecia envolver sua presença, principalmente a amargura em sua voz.
—Qualquer idiota aproveitaria a oportunidade e recomeçaria a vida, então por quê?Por quê?Isso é irritante!
Fiquei um tempo apenas absorvendo tudo o que ouvi. Eu mesma já me peguei várias vezes pensando no motivo de ainda não ter aceitado ir morar com Alie, mas a resposta para isso eu havia encontrado a um bom tempo atrás.
—Por que você volta?!
O encarei com um sorriso leve e sincero nos lábios.
—Porque você continua aqui me esperando, Eylef.
Um silêncio profundo encheu meus ouvidos enquanto via as duas estrelas fixarem-se em mim com incredulidade, quase como se Eylef duvidasse do que acabei de falar. Passado alguns segundos tirei da sacola algumas faixas brancas, um longo manto vermelho escuro junto da máscara de raposa.
—Alie me chamou para ir ao festival e me ofereceu o quarto de hóspedes para passar a noite — falei quebrando o silêncio — Eu concordei em ir.
Deixei as roupas na rocha junto da maçã, mas segurei a máscara analisando os desenhos que eu havia feito. A tinta vermelho vibrante ressaltava o contorno dos olhos junto de uma rosa com margaridas laranjas que cobriam a longa rachadura na testa, não era o melhor desenho do mundo mas me senti estranhamente feliz com o resultado.
—Pensei que talvez você se sentisse sozinho então trouxe isso — coloquei a máscara junto das roupas — Como vai ser a noite talvez você queira ir, ao menos para ver a festa, respirar novos ares...
Encarei a caverna sentindo um tremor pelo corpo, aquilo não era uma casa, não algo que pudesse ser chamado de lar.
—Amanhã cedo vou pedir ajuda da Alie para me vestir, não conheço nada dos costumes do festival, mas pelo visto todo mundo usa máscaras de animais, mantos ou capas longas junto de faixas cobrindo as mãos e os pés.
Encarei as plantas brilhantes que começaram a surgir na floresta imaginando como seria amanhã à noite.
—Acho que vai ser legal...
—Não conte com a minha presença.
De forma ríspida ouvi suas palavras ecoaram pela caverna antes do silêncio voltar a reinar.
—Imaginei que não...
Disse a mim mesma caminhando em direção a árvore mais próxima onde adormeci entre as raízes.
Na manhã seguinte cheguei cedo na casa de Alie, mas diferente dos outros dias me surpreendi com as vozes animadas que vinham lá de dentro.
—Mamãe a Sophie chegou!
Vi o rosto de Dimir na janela pouco antes do mesmo abrir a porta para mim.
—Bom dia Sophie!
—Bom dia Dimir, vejo que acordou cedo hoje!
—Sophie!
Minir apareceu logo em seguida correndo para me abraçar.
—Acho que esses dois nem dormiram direito a noite.
Alie veio logo atrás dos filhos.
—Tudo isso por causa do festival?
—E porque você vai dormir aqui Sophie!
—Comigo!
—Não!Comigo!
—Eu terminei as tarefas primeiro!
—Mentira!
—Vamos se acalmem, os dois podem dormir comigo, tudo bem?
—Sim!
—Vêm Sophie!Vem ver nossas máscaras, elas são lindas!
A manhã se resumiu em acompanhar as crianças agitadas enquanto elas me mostravam suas roupas coloridas e as máscaras que usariam no festival, Minir não para de falar nas danças já Dimir parecia mais ansioso pela comida, quando os dois finalmente pararam para almoçar me sentei na sala com Alie onde ela me explicou melhor sobre a festa.
—O festival nasceu de uma tradição dos nossos ancestrais — a pequena mulher começou esticando os pés sobre um banquinho acolchoado — Antigamente o povo do vilarejo sobrevivia da colheita de frutas e ervas da floresta e todo final de estação algumas pessoas alegavam ver figuras com rosto de animais sair de dentro das árvores mais antigas se reunindo em uma clareira, mas todo vez que alguém se aproximava eles sumiam misteriosamente.
Escutei com atenção enquanto saboreava uma fatia de torta de morango.
—Então eles decidiram se vestir como as criaturas na esperança de conseguir se aproximar, o que acabou dando certo, ao invés de fugir os espíritos festejavam junto do povo, e na estação seguinte a colheita de frutas sempre era maior.
—Nunca imaginei que as árvores teriam espíritos dentro delas...
—Quando eu era criança achava essa história incrível, ainda mais depois da minha mãe começar a ouvir as vozes da floresta, houve um tempo em que acreditei que eram os espíritos falando com ela — Alie fez uma pausa respirando fundo — Hoje em dia vivemos da agricultura e o festival é feito no vilarejo já que antigamente algumas pessoas acabavam desaparecendo.
—Desaparecendo?
—A floresta pode não ser um lugar muito seguro à noite, ainda mais nos dias de hoje.
Um arrepio percorreu meu corpo com a lembrança da criatura de olhos vermelhos.
—Não sabemos se a tradição é verdadeira e se os espíritos da árvore realmente vêm festejar mas é uma noite especial, até mesmo pessoas de outros impérios acabam vindo para prestigiar a festa.
Imaginei uma variedade de feéricos desfilando pelas ruas com capas coloridas e máscaras de animais.
—Estou ansiosa.
—Logo logo vai ver que o festival é a melhor atração de Teraryn!E pelo rio, veja a hora!É melhor nos arrumarmos ou vamos chegar tarde!
Olhei para o céu através das janelas.
—O sol ainda está alto.
—Vai por mim querida, enrolar aquelas faixas leva tempo e eu ainda tenho duas crianças para vestir.
Ao contrário do que Alie disse enfaixar os braços e as pernas foi fácil, talvez a prática com curativos tenha me ajudado na tarefa mas, de qualquer forma, deixei que a pequena mulher me ajudasse. As tiras que envolviam meu corpo eram de um leve tom amarelo assim como o manto, pequenas flores estavam bordadas nas mangas e na barra enquanto algumas pedras verdes enfeitavam o capuz que caia nas minhas costas, para completar coloquei a máscara de raposa onde o botão de uma rosa vermelha ao lado de uma margarida escondia a rachadura na testa.
—E aí?Ficou bom?
Alie se afastou alguns centímetros, ela vestia um manto lilás com uma máscara de coruja e faixas roxas.
—Você está ótima!Que bom que conseguiu encontrar bons adereços, e essa máscara é linda!
Agradeci aos elogios com um sorriso.
—As crianças já estão lá embaixo, é melhor irmos logo antes que eles derrubem a casa.
O sol começava a se pôr, o tom alaranjado das nuvens tingia o céu enquanto lamparinas brilhavam iluminando as estradas de terra até a multidão que se encontrava no centro do vilarejo. Tudo estava muito colorido e agitado, o aroma da comida chegava até meu nariz abrindo o apetite enquanto a música me fazia querer dançar e não parar mais. Os festivais da minha cidade costumavam ser agitados e alegres, mas nada se comparava àquele.
—Veja mamãe!Quantos doces!
—Vou querer dançar nas rodas!
—E comer muitas tortas e bolos!
—Se acalmem crianças, lembrem-se dos modos.
Dimir e Minir estavam tão agitados que duvidava muito que conseguiriam pensar em alguma coisa que não fosse o festival.
—Vamos pegar alguns sucos primeiro, depois vocês podem ir brincar, mas lembrem-se de ficar por perto!
—Sim mamãe!
Como eu não conhecia ninguém, fiquei próximo de Alie e das crianças boa parte da festa, mas assim que começou a anoitecer decidi me afastar um pouco já que eles pareciam ocupados conversando com outros feéricos. A música continuava alta, pequenas fogueiras começaram a ser acesas enquanto eu me acomodava em um dos bancos próximo ao bufê onde os mais diversos tipos de aperitivos estavam expostos. Algumas pessoas mascaradas se aproximavam mas nenhuma parava para conversar, o que de certa forma foi um alívio já que eu estava com a cabeça longe demais para pensar em algum assunto interessante, meus olhos estavam fixos nas estrelas enquanto pensava em Eylef. Por algumas vezes me pegava procurando por máscaras de raposa com o desenho de uma rosa mas todas que passavam por mim eram coloridas demais para ser ele. Passado um tempo eu simplesmente aceitei o fato de que Eylef não viria, no entanto, eu não conseguia afastar o estranho sentimento que preenchia meu peito.
—Com licença, será que posso me sentar aqui um instante?
Estava tão distraída com meus pensamentos que levei um susto ao ver o alto feérico que apareceu na minha frente, ele vestia um manto verde escuro, uma máscara de lobo e faixas marrons, seus braços eram adornados com braceletes e pulseiras de bronze junto de um colar que refletia a luz alaranjada das fogueiras.
—Ah... é claro.
Me afastei dando espaço para ele se sentar.
—Adoro o festival mas confesso que ficar ajeitando as faixas é bem chato.
Vi suas mãos retirarem os braceletes puxando uma tira marrom que estava frouxa, com dedos ágeis ele apertou o nó arrumando as amarras mas quando chegou ao outro braço parecia completamente perdido.
—Eu posso?
Perguntei me compadecendo da sua dificuldade.
—Se não for incomodo, digamos que não é fácil amarrar esse lado.
Com o sorriso oculto pela máscara puxei a longa tira marrom revelando a pele morena pouco antes de passar a faixa novamente escondendo a amarra com uma das pulseiras.
—Pronto.
—Nossa, parece bem firme...
O vi mover os dedos várias vezes antes de olhar para mim.
—Acho que não vou ter que me preocupar em amarrar esse lado de novo, onde aprendeu enfaixar tão bem?
—Digamos que tenho um pouco de prática com isso.
—Eu diria que é bem eficaz nesse trabalho.
—Obrigada.
—Deixe-me recompensar de alguma maneira.
—Não é necessário...
—Nesse caso, muito obrigado.
—Foi um prazer ajudar..
Observei o feérico ficar de pé pronto para ir embora quando seu corpo se virou mais uma vez na minha direção.
—Se por acaso nos encontrarmos de novo, será que poderia me ensinar a técnica de enfaixar com tanta eficiência?
Sorri.
—É claro.
—Temos uma promessa então.
Como se um sorriso também se escondesse atrás da máscara de lobo o vi dar as costas e sumir no meio da multidão. Assim que fiquei novamente sozinha voltei a olhar para o céu, as estrelas brilhando distantes e a estranha sensação ainda apertando meu peito.
Pare com isso Sophie...
Tentei me concentrar na dança que acontecia ao redor das fogueiras, nas brincadeiras das crianças que corriam de um lado para o outro mas alguma coisa ainda me perturbava.
Aproveite a noite...
Respirei fundo por várias vezes, mas o incômodo continuava lá, e quanto mais o tempo passava mais intenso ele ficava. Decidida a afastar aquela sensação ruim, me coloquei de pé pronta para pegar mais um copo de suco quando um grito alto silenciou todos os outros.
—FUJAM!
—Aliks!São Aliks!
—Corram!
Demorei para perceber o que estava acontecendo, mas assim que um feérico caiu próximo de mim e um cachorro enorme tão negro quanto a noite pulou sobre ele a ficha caiu. Era a mesma criatura que havia me arrastado pela floresta, e ela não estava sozinha. Em meio ao caos, figuras altas com corpos magros andavam rodeadas de vários cães ditando ordens para atacar, seus rostos tinham feições animalescas e longos braços que tocavam o chão.
—Corram!Corram!
Assim que me recompus do choque me juntei aos outros procurando por Alie e as crianças.
—Dimir!Minir!
Minha voz era engolida pelos gritos que ecoavam de todos os lados.
—Alie!
Por várias vezes tive que desviar de corpos caídos ou pedaços de membros que banhavam de vermelho a terra. A imagem era aterrorizante mas não saber onde Dimir e Minir estavam conseguia ser pior.
—Crianças!
Vultos saltavam ao meu lado, alguns como manchas escuras e outros coloridos, mas não parei para assistir aquele show de horrores. Segui em frente acompanhando cada máscara que surgia no meu campo de visão até finalmente encontra-los. Alie estava abaixada, Minir e Dimir sob seus braços enquanto o feérico com máscara de lobo empunhava uma longa espada brilhante cortando os cães que se aproximavam, a cena era hipnotizante, cada movimento certeiro que não errava o alvo, a linha de luz que acompanhava o aço prateado brilhando na noite, a eficácia de cada golpe, um espetáculo que foi interrompido quando um grito grotesco ecoou bem atrás de mim.
—Hast!
A criatura com longos braços berrava enquanto dois cães negros mudavam o alvo focando-se em mim.
—Hast!
Com uma onda de adrenalina queimando dentro do peito corri na direção contrária passando por corpos e mais corpos tendo em mente que eu seria a próxima.
—Socorro!
Gritei a plenos pulmões mas não havia ninguém por perto. As casas que surgiam estavam com as luzes apagadas e completamente silenciosas, ninguém em sã consciência abriria a porta, minha sobrevivência dependia apenas de mim.
Alguma coisa...qualquer coisa...
Aflita procurei por algo que pudesse usar como arma até que meus olhos encontraram um machado fixo em um toco de árvore, provavelmente usado para cortar a lenha das fogueiras, mas assim que segurei seu cabo me frustrei ao notar que estava preso.
—Droga!
Puxei com mais força ouvindo os rosnados se aproximarem.
—Vamos!Vamos!
Já podia ver o grande animal com os olhos vermelhos cobrir a distância com um pulo, as garras prontas para me rasgar ao meio no exato instante em que soltei o machado cravando a lâmina em uma das patas das suas patas fazendo-o cair uivando de dor.
Corra!Corra!Corra!
Era tudo o que minha cabeça dizia, sem o machado e com ninguém por perto minhas chances haviam se esgotado.
Alguém!
Quanto mais eu fugia, mais alto ficavam os outros rosnados.
Por favor alguém!
Sem prestar atenção no caminho senti meu pé escorregar em uma poça de lama segundos antes do meu corpo se chocar com tudo no chão. Ouvi o ruído da máscara se partir segundos depois de um par de olhos vermelhos brilhar no escuro. O vilarejo estava longe, assim como os gritos que ainda ecoavam de lá, eu estava sozinha, morreria ali sozinha, rasgada por um animal de um mundo mágico. Será que achariam meu corpo?Será que alguém daria falta de mim?Alie, as crianças?Sabia que ninguém do mundo humano iria se importar. No final das contas eu acabaria morrendo de um jeito muito pior do que eles imaginaram. Sentindo cada músculo do meu corpo se contorcer pronto para o impacto um sibilo passou ecoando pouco antes de um grito de dor alcançar meus ouvidos.
O que foi isso?
Não importava, os olhos vermelhos haviam sumido e aquela era a chance perfeita. Usando o que restou das minhas forças, fiquei de pé pronta para fugir quando uma mão longa agarrou meu pescoço me empurrando novamente contra o chão.
—Hast!Hast!Hast!
A criatura de braços longos berrava, os olhos negros brilhando enquanto apertava com força o meu pescoço.
—Hast makhavila!
Podia sentir meu corpo implorar por ar ao mesmo tempo que a dormência aumentava. Eu ia morrer, só mais alguns segundos e seria o fim, minha última visão, o semblante animalesco do meu assassino.
Silêncio.
A morte era silenciosa, assim como o inverno, mas um barulho distante conseguiu quebrar a quietude dos meus pensamentos.
—Hast makhal-
O mesmo sibilo ecoou, alto e claro como o bater de asas de um inseto. Segundos depois o som oco de algo se partindo preencheu meus ouvidos na mesma medida que a cabeça da criatura caía no chão ao lado da minha. Cravado em uma árvore próxima, o tênue brilho de um machado banhado em sangue refletia a luz da lua.
—Levante!
Um borrão branco.
—Vamos!
Nas fendas escuras podia ver o brilho prateado de duas estrelas.
—De pé!
Esse é...
—Sophie!
Com um puxão fui trazida de volta à realidade pelas mãos enfaixadas com tiras brancas. A máscara de raposa tinha uma rosa, uma rosa vermelha banhada em sangue, mas ela estava ali, o traço trêmulo mas inconfundível do meu desenho.
Eylef...
—Corra, e não pare!
Obedecendo ao comando avancei em direção a floresta enquanto ele recuperava o machado me seguindo logo depois.
—Continue reto!
Confiando na sua voz avancei sem pensar duas vezes, sempre em frente quando outro rosnado surgiu pouco antes de um cão negro saltar na minha direção. Antes que eu pudesse pensar em qualquer coisa ouvi o som do machado cortar o ar segundos antes da criatura cair com a lâmina cravada na cabeça.
—Não pare!
Confie, confie, confie...
Sem conseguir enxergar um palmo à minha frente, continuei até que meus pés encontrassem o vazio. Não muito longe o som alto de uma correnteza quebrava o silêncio da noite.
—Eylef!
Gritei antes do meu corpo se chocar contra as águas congelantes afundando aos poucos na escuridão.
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