Minir e Dimir
12
Assim como ele havia dito, não tive ajuda alguma para conseguir mais comida, no entanto, mesmo depois de enroscar o graveto em meio aos galhos e quase arrebentar as tiras consegui pegar frutas o suficiente. Nunca havia experimentado ou sequer visto algo do tipo, a casca amarela era lisa como a de mangas, no entanto, a textura da polpa branca lembrava a melancias enquanto o sabor era idêntico ao de laranjas. Doce, cítricas e refrescantes. Comi até sentir a barriga doer, guardei o restante para mais tarde e me deitei em meio às raízes de uma árvore bem próxima à caverna escura. O dia estava quente, mas a sombra conseguia deixar o clima fresco enquanto uma brisa morna acariciava meu rosto.
—Gostaria de mais uma? — ofereci uma fruta maior que a minha mão — Você também deve estar com muita fome.
Isso se ele é capaz de sentir fome...
Imaginei quantos anos deveria ter ficado sem comer, preso naqueles túneis escuros e, principalmente, como ainda poderia estar vivo.
Não é humano.
Depois de um tempo com o braço estendido guardei a iguaria junto das outras me concentrando nos mosaicos de luz que brilhavam em meio às folhas.
Simples e lindo...
Pensei sentindo meus olhos pesarem quando uma voz quebrou o silêncio.
—Sua inteligência é tão discutível que comeu frutas na qual não conhece, quem lhe garante que não são venenosas e que morrerá em minutos?
—Se eu não comesse nada o destino seria o mesmo — bocejei — Se eu morrer pelo menos vou estar de barriga cheia — me virei acomodando a cabeça nas raízes — E se eu morrer você também vai junto porque comeu a mesma coisa.
—Não me compare a você, humana.
—Sophie — outro bocejo — E você ainda não me disse seu nome.
—Não prometi nada.
—Nem discordou — fechei os olhos sentindo a preguiça me invadir — E quem cala consente...
—Não vou te dizer meu nome.
—Eu inventarei um então...
Não escutei sua voz depois disso, e para ser sincera eu nem me importava, meu ego já havia sido massageado quando provei que conseguiria pegar as frutas e meu estômago parou de roncar, saber seu nome não era o principal objetivo.
Ainda posso inventar um apelido só para não chamá-lo de criatura.
Criatura era estranho e ofensivo, parecia que eu estava me referindo a um animal e não a uma pessoa. Mesmo que ele não fosse uma pessoa humana, não queria me referir a ninguém assim.
—Vejamos... que tal Tim, Bob, Mayck...
Ouvi um baixo grunhido mas ignorei.
—Claus, Jorge, Jorginho...
—Basta!
Indiferente a sua reação virei para o lado contrário, o sono me consumia aos poucos.
—Que seja, eu penso em alguma coisa depois...
Deixei a brisa acariciar minha pele e meus cabelos enquanto ouvia o som de cigarras e pássaros, não pensei em criaturas de dentes afiados e perigosas, nem em qualquer coisa estranha que aquele novo mundo tinha a me mostrar, simplesmente deixei aquela sensação de paz e tranquilidade me embalaram. Estava quase cochilando quando ouvi, distante, quase como um sussurro a mesma voz amargurada chegar aos meus ouvidos.
—Eylef.
—Ey - lef... — repeti sonolenta com um sorriso no rosto.
Bem melhor que Jorginho...
Acordei com o pescoço suado e com dor no corpo, eu ainda estava enroscada em meio às raízes, ao redor a claridade havia diminuído e entre as árvores já conseguia enxergar a escuridão que acabou fazendo meu corpo arrepiar.
É só o entardecer...
Respirei fundo me acalmando.
Logo virá a noite e depois o dia de novo.
Me forcei a ficar de pé esticando os músculos doloridos tentando não pensar em um lugar escuro abaixo da terra.
Depois de alguns segundos me convencendo de que não ficaria presa novamente em uma escuridão eterna caminhei até a caverna me sentando próximo da parede de rochas, lá dentro estava escuro e silencioso, mas não senti medo ao pensar que aquele lugar não estava vazio.
—Acho que dormi demais — falei ouvindo o eco da minha voz — Está com fome?Ainda tenho algumas frutas.
Silêncio.
—Bom, vou deixar aqui em todo caso.
Coloquei a fruta amarela em uma rocha oculta pelas sombras voltando minha atenção para a floresta. Já conseguia ver alguns pontos luminosos surgirem pela fraca escuridão que começava a tomar espaço pelos troncos.
—Você sabe onde estamos?
Não tive resposta.
—Alguma coisa me diz que sim — respirei fundo — Eu não imaginei que pudesse existir outro mundo onde as plantas brilhavam...
E criaturas assustadoras agarrassem mulheres as arrastando pela floresta.
—Pensei que isso só existisse nas histórias que os mais velhos contavam para as crianças.
Olhei para o negrume da caverna.
Ele também não passava de uma história, o monstro do poço, mas estava ali, em algum lugar me escutando.
—O que será que tem além dessas árvores?
Disse a mim mesma, mas me surpreendi ao ouvir uma segunda voz.
—Medo, desespero, desgosto...
—Só está falando isso para me assustar.
—Sinta-se à vontade para ir descobrir por conta própria.
Engoli em seco imaginando ao que ele estava se referindo.
—Não obrigada, estou bem aqui.
Mas no fundo eu sabia que não estava. Eu vivia agora em uma caverna, colhendo frutas sem saber até quando durariam, sem uma fonte de água ou calor.
Será que haveria um inverno naquele mundo?
Pensar nisso fez algo subir até minha garganta me sufocando.
Era só uma questão de tempo até os problemas aparecerem e eu sabia que estava por conta própria.
Tentando não deixar transparecer meus receios, apertei firme a pedra do meu colar lembrando da luz estranha que havia surgido dela, até mesmo aquele pequeno objeto havia se tornado um mistério na qual eu duvidava ter capacidades de desvendar. Perdida em pensamentos demorei um pouco para perceber os olhos pratas perto de mim, o brilho emanando da escuridão, do lado oposto ao meu onde a luz alaranjada do sol que aquecia minha pele se tornavam a sombra de uma parede de pedras.
—Com medo?
Conseguia sentir a provocação em sua voz. Erguendo o queixo sustentei seu olhar.
—Não — menti.
Aquele brilho continuou a me encarar, como se tentasse ver além da minha postura confiante, sondando os receios que faziam meus ossos tremerem, a insegurança de um novo amanhã e o medo do desconhecido. Depois de longos segundos ouvi um riso baixo antes dos olhos sumirem outra vez.
Ele não estava mais ali, podia sentir, soltando o ar preso em meus pulmões relaxei as costas na pedra fria vendo a noite inundar a floresta aos poucos.
Mais algumas horas e vai ser dia de novo...
Encolhi as pernas para mais perto do corpo observando os últimos raios de sol sumirem.
Só mais algumas horas...
Diferente da outra vez minha noite foi perturbada com pesadelos onde criaturas de dentes afiados me espreitavam da escuridão, os olhos vermelhos sedentos por sangue enquanto eu estava, novamente, presa a uma noite sem fim. Perdi as contas de quantas vezes acordei, o peito doendo e a pele grudenta com o suor frio, só depois de um longo tempo fui observar com alívio os primeiros raios de sol inundarem a copa das árvores trazendo uma claridade fria à floresta. Pensei se, algum dia, eu seria capaz de aceitar a noite sem o medo de nunca mais ver a luz do sol. Sem respostas coloquei- me de pé, enrolei as tiras sujas e o graveto nas mãos e olhei para a imensa mancha escura as minhas costas antes de caminhar em direção as árvores para conseguir mais comida.
Caminhei perto do lugar onde eu havia conseguido as frutas de ontem mas o restante estava muito alto e mesmo que eu jogasse o galho com toda minha força eu não seria capaz de alcançá-las. Frustrada fui para a próxima árvore mas a situação foi a mesma.
Droga...
Enrolei as tiras nas mãos e parti para a próxima, e então a próxima e a próxima até que finalmente encontrei uma árvore onde os galhos eram baixos o suficiente. Girando minha invenção, mirei nas frutas maiores, conseguindo a façanha de enroscar as tiras em volta de três delas e, com um único puxão, às derrubar próximo dos meus pés.
Isso!
—Ela conseguiu...
—Shii!
Parei a poucos centímetros de onde estava, a mão estendida em direção a fruta amarela quando ouvi aquelas vozes.
O que foi isso?!
Meu coração batia forte no peito. Olhei para trás e instantaneamente me arrependi, não havia sinal algum da caverna.
—Quem está aí? — perguntei, a voz rouca enquanto tentava controlar minhas pernas bambas.
Ninguém respondeu, mas eu sabia que não estava sozinha.
—Vamos, apareçam!
Segurando firme o galho na frente do corpo vi os arbustos se moverem quando duas crianças saíram do meio das folhas. Ia respirar aliviada e até mesmo feliz por ver outras pessoas naquele lugar estranho quando o brilho ressaltado em seus olhos verdes e o par de chifres retorcido que cresciam em suas cabeças alcançou meu campo de visão.
—Q.quem são vocês?
Dei um passo trêmulo para trás.
—Eu disse para você ficar quieto...quando mamãe descobrir...
—Mamãe não vai descobrir se você não contar...
As duas crianças sussurravam uma para a outra sem tirar os olhos de mim. Quando viram que eu não ia dizer mais nada e um silêncio espesso caiu sobre nós uma cutucou a outra como se esperasse uma atitude.
—Oi...
A pequena figura de cabelos ruivos cacheados tomou a frente erguendo a mão. Usava um vestido de flanelas laranja e botas de couro.
—Desculpe...não queríamos espiar você.
—Nem pegar suas frutas!
A segunda figura disse com os olhos arregalados, um menino de cabelos ruivos como a garota só que lisos, vestia uma blusa de algodão cor palha, calças verde musgo e botas também de couro, parecia tão assustado quanto eu.
—Dimir!
O garotinho encolheu.
—Desculpe...
—Quem são vocês? — repeti com a voz mais firme.
—Somos irmãos e vivemos no vilarejo.
Os olhos brilhantes do garotinho me encaravam de cima a baixo com uma curiosidade inocente mas era a irmã que tomou as palavras.
—Você conseguiu pegar as frutas...
Olhei para as iguarias amarelas caídas no chão.
—Sim, algum problema com isso?
Senti medo só de imaginar que aquelas frutas poderiam ser algo sagrado para eles, e talvez comer uma chegasse a ser considerado crime.
—Não, é só que, é muito difícil conseguir pegar.
Respirei aliviada.
Menos mal...
—Pode nos dar uma moça?
Vi os olhos da irmã se voltarem para o pequeno em censura.
—Claro — disse, os dedos se afrouxando na madeira áspera do galho enquanto me abaixava e pegava duas das três frutas amarelas entregando uma para cada um.
—Obrigado!
Os olhos do garotinho eram pura alegria assim como os da irmã, mais tranquila com aquela reação soltei o galho mantendo-o preso apenas pela tira suja de tecido.
—Vocês disseram que moram em um vilarejo aqui perto.
—Sim, logo no fim da trilha de pedras.
Olhei pelo chão da floresta mas não consegui ver nada.
—E nesse vilarejo... — voltei minha atenção para as crianças — As pessoas também tem... — apontei para o alto da cabeça — Chifres?
Foi a vez deles me encararem, talvez finalmente se dando conta do quão estranha eu deveria parecer.
—Nunca vimos ninguém como você por aqui.
—Digamos que eu vim de longe...
Outro mundo para ser exata...
—Uma viajante! — o garotinho exclamou — Conhece os outros impérios?!
—Impérios?
—Zolaryan, Moonyr, Oceanyla...
Sacudi a cabeça tentando acompanhar aquelas palavras estranhas. Reparando na minha confusão a jovem de cabelos ruivos tomou a palavra mais uma vez.
—Desculpe o Dimir, ele é um sonhador, nunca saímos do vilarejo, nem mesmo fomos ao império de Tarryan, então o máximo que ouvimos dos outros impérios são as histórias que os viajantes nos contam ao ficarem na estalagem.
Continuei olhando confusa para as crianças, as palavras criando um emaranhado dentro da minha cabeça.
—É mesmo!Esqueci de me apresentar, meu nome é Minir! — a jovenzinha sorriu fazendo uma breve reverência — Posso saber seu nome?
—Sophie — falei — Me chamo Sophie.
—Agradecemos pelas frutas Sophie!
—Sim, muito obrigado!
Dimir, o garotinho de chifres de carneiro sorriu largamente apertando o fruto amarelo, mesmo com a cabeça doendo com tantas informações confusas, me abaixei para fazer carinho no seu cabelo liso.
—Se quiserem podem passar aqui amanhã, se eu conseguir pegar mais dessas guardo algumas para vocês.
—Mesmo?!
Sorri.
—Sim.
—Voltaremos então!
—E vou trazer alguns biscoitos para você!
—Não precisa...
—Será nosso agradecimento!
Os dois balançaram as cabeças juntos, concordando.
—Mas agora temos que voltar ou mamãe vai ficar preocupada.
Os irmãos se afastaram pouco antes de Dimir olhar para trás, erguer a mãozinha e dizer com uma voz suave e alegre: — Tchau Sophie!Até amanhã!
Plantada no mesmo lugar, observei os arbustos pararem de se mover até que o silêncio voltasse a reinar na floresta.
—Crianças com chifres...
Me sentei pesadamente entre as folhas secas levando uma mão ao rosto.
—Crianças com chifres!
Respirei fundo várias e várias vezes antes de me deitar no chão, os olhos fixos nos mosaicos de luzes, nas frutas amarelas mas com a cabeça muito, muito, longe.
Que raios de lugar é esse?
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