Mascaras para o festival
17
Na manhã do dia seguinte acordei sem nenhum sinal de vida da misteriosa figura que se esconde nas trevas, isso desde nossa última conversa, mas eu não me importei, Eylef não era o único irritado por ali.
Sem pensar muito no assunto que estragou meu bom humor, tirei da bolsa de pano alguns pãezinhos e duas maçãs colocando tudo em cima da rocha, não sabia se o sr.rabugento iria comer, mas pelo menos seria melhor do que simplesmente jogar fora por ter perdido o apetite.
A passos firmes caminhei entre a vegetação alcançando a estrada que levava até o vilarejo, com o capuz sobre a cabeça e mais algumas oparins dentro da sacola tomei o rumo da casa de Alie antes mesmo de Minir e Dimir aparecerem. A conversa de ontem havia grudado na minha cabeça e no fundo eu sabia que a pequena mulher de chifres tinha razão, eu não poderia continuar sobrevivendo apenas de frutas e dormindo em uma caverna para o resto da vida, eu precisava recomeçar de alguma maneira e já que alguém estava disposto a me dar uma mãozinha eu não poderia perder essa oportunidade.
Com o sol tomando forma no horizonte cheguei até meu destino batendo duas vezes na porta segundos antes de uma mulher ruiva com um avental amarrado na cintura e um pano de prato jogado sobre o ombro atender.
—Sophie!Que bom que veio!Vamos entrar!
—Bom dia Alie, desculpe aparecer tão cedo.
—Imagina, eu já estava indo acordar as crianças para tomarem café, hoje elas tem aula, e problemas com as notas...
Segui seus passos pela casa, primeiro até o quarto onde ela entrou puxando a coberta de cima das duas crianças, Minir e Dimir protestaram mas assim que me viram os dois correram para me abraçar.
—Agora que estão de pé, direto para o banho.
—Ah mãe...
—Só mais cinco minutinhos...
—Nem mesmo um, já para o banho!
Alie não esperou para sair do quarto me puxando pelas escadas em direção a cozinha.
—Aqueles dois só não dão nó em pingo d'água!
Seu corpo contornou a mesa pegando uma travessa de pães e um bule de porcelana com desenho de flores.
—Se eu afrouxar só um pouquinho é perigoso irem dormir cobertos de lama, aceita um pouco de chá Sophie?
—Por favor.
Estendi uma pequena xícara vendo o líquido rosa fumegar diante dos meus olhos.
—Fiz os pães ontem a noite, pode comer à vontade.
—Obrigada Alie, mas eu não vim aqui só para comer, para ser sincera, me sinto um pouco mal em estar aproveitando da sua hospitalidade, por isso eu — fiz uma pausa observando meu reflexo na bebida — Gostaria que me ajudasse a recomeçar.
—Vejo que pensou na minha proposta.
—Sim...
—Com o tempo vai ver que esse lugar é ótimo, apesar das diferenças, tenho a sensação de que você vai se adaptar.
—E os outros feéricos?Será que vou ter problemas com eles?
Vi seus olhos desviarem para o teto de madeira, como se procurasse as palavras certas para responder minha pergunta.
—Não é muito comum termos humanos em Ywura.
—Mas outros já vieram, não é mesmo?
—Sim, a muito tempo, mas digamos que o caminho que eles escolheram não levou boa fama...
Podia ouvir as outras perguntas se formando na minha cabeça quando Alie desviou o assunto me oferecendo uma travessa com uvas e morangos.
—De qualquer forma, vai ser um prazer te ajudar, tem alguma coisa em mente que gostaria de fazer?
—Eu não sou muito boa costurando roupas, entendo de frutas e hortaliças e sei me virar na cozinha, sou realmente boa em fazer infusões e emplastros, mas não acho que alguém iria querer comprar isso...
Estava tão ocupada pensando sobre minhas habilidades e no que elas poderiam ser úteis para recomeçar a vida naquele mundo mágico que demorei para notar que Alie me encarava com um misto de espanto e incredulidade.
—Eu disse alguma coisa de errado?
—Emplastros e infusões...
Sua voz não passava de um sussurro, o que só aumentava meu nervosismo, porém, antes que eu pudesse perguntar mais alguma coisa Alie pulou de onde estava para me abraçar com força quase esmagando meus ossos.
—Pelo grande rio!Você é uma curandeira!Uma curandeira!
—A.alie...
—Isso é incrível Sophie!
Minhas vistas começavam a escurecer quando senti os braços em volta do meu peito sumirem me permitindo engolir uma longa lufada de ar.
—Nem sei o que dizer Sophie...
Ainda precisei de alguns minutos para me recompor, não fazia ideia de que uma mulher tão pequena pudesse ser tão forte.
—Vender emplastros e infusões vai te render um bom dinheiro, ainda mais para os viajantes que passam pela feira repondo as provisões para a viagem!
—Mas não é mais fácil eles mesmos colherem as ervas e fazer as infusões?
—Não é qualquer um que conhece as plantas da floresta e a maioria passa despercebida, sem contar que é difícil saber qual delas usar dependendo da enfermidade, ser curandeiro é muito complicado por isso existem tão poucos.
—E o que vocês fazem quando ficam doentes?
—Pedimos ao grande rio para reverter o mal que se abateu sobre nós, ou aceitamos ser uma obra do destino.
Senti compaixão ouvindo aquelas palavras, cuidar de enfermidades realmente não era algo fácil, existiam inúmeras formas de tratamento e remédios, mas não imaginei que em um mundo de magia isso fosse um problema.
—Mas parando para pensar — a vi levar uma das mãos ao queixo — Se uma curandeira aparecesse do nada seria suspeito...
—E eu também não sei sobre as enfermidades desse mundo...
E não queria arriscar usar uma planta desconhecida e envenenar um feérico.
—Posso até colher algumas ervas conhecidas para alívio de dores, mas por favor me ensine a fazer outra coisa Alie, eu não sei nada sobre as plantas e remédios daqui, nunca fui curandeira, só aprendi a me virar nas dificuldades, igual estou fazendo agora...
Encarei seus olhos esmeraldas que pareciam pensativos, depois de longos segundos em silêncio ouvi novamente sua voz.
—É claro Sophie, e você tem razão, seria arriscado, posso te ensinar a cozinhar, assim você me ajuda nas vendas e eu divido uma parte dos lucros, o que acha?
—Eu adorei a ideia.
—Perfeito!Então vamos!
—Agora?
—Sim!O dia acabou de nascer e ainda temos muito pela frente!Mãos à obra minha aprendiz!
Fiquei o resto da manhã na cozinha aprendendo a fazer massa de tortas e os mais variados tipos de recheios com frutas, assim que acabamos de assar duas fornadas Minir e Dimir apareceram com os cabelos penteados para trás e com bolsas coloridas nas costas.
—Estamos prontos mamãe.
—Ótimo, aqui está o lanche de vocês e as encomendas de hoje.
Vi os dois pegarem uma cesta com vários pedaços de torta.
—A Sophie pode ir com a gente?
—É mamãe!Ela pode?!
—Se ela quiser ir.
—Eu? — encarei os três — Não vai ter problema?
—É só usar a capa querida — Alie sorriu — Vai ser bom para você sair um pouco e conhecer o vilarejo.
—É Sophie!
—Vai ser muito bom!
Sorri.
— Tudo bem eu vou.
Pulando de alegria Minir e Dimir mal me deram tempo de vestir a capa para agarrarem minha mão me puxando para fora da cozinha.
—Se cuidem!
Foi a última coisa que ouvi Alie dizer antes de sair da casa alcançando as ruas de terra. O sol estava alto no céu, no entanto, o clima ameno permitiu que eu usasse a capa sem sofrer com o calor andando normalmente pelas barracas sem chamar atenção dos feéricos que estavam por ali. A feira era grande, quase tão grande quanto a da minha cidade no mundo humano, a única diferença eram os habitantes com chifres nascendo na cabeça ou as várias capas ondulando pela multidão.
—Veja Sophie!A barraca de brinquedos!
Dimir apontou para uma tenda azul onde carrinhos de madeira, cavalinhos, peões, cubos com desenhos de animais e cordas de pular estavam expostos.
—Mamãe disse que se tirarmos notas boas vai comprar outro brinquedo para a gente.
—Eu quero uma boneca!
—E eu outro carrinho!
—E como estão as notas de vocês?
—Bom...
Sem precisarem dizer mais nada passamos pela barraca de brinquedos indo cada vez mais a fundo na feira, volta e meia Dimir e Minir paravam para entregar tortas e pegar algumas moedas de bronze como pagamento, fiquei receosa no começo imaginando como aquilo poderia ser perigoso para duas crianças mas, assim que vi outras fazerem os mesmo com frutas, colares ou geleias me convenci que aquele deveria ser um costume do vilarejo.
—Olhe!Já estão vendendo as máscaras para o festival das árvores!
Correndo em direção a uma barraca de lona vermelha, os dois irmãos me puxaram para apreciar várias máscaras com o formato de cabeças de ursos, cervos, lobos e até mesmo raposas, algumas com desenhos em tinta e outras completamente brancas como ossos. Curiosa olhei para as faixas coloridas penduradas ao lado das máscaras enquanto o vendedor, um feérico de chifres longos retorcidos no alto da cabeça atendia um viajante de capa cinza.
—O que é o festival das árvores?
—Acontece todo final de estação.
—É uma festa em homenagem aos espíritos das árvores da floresta.
—O professor Mone e a mamãe disseram que é uma tradição, mas eu não sei o que isso significa, mas gosto do festival!
—Nesse dia todo mundo usa máscaras de animais, e cobre as mãos, braços, pernas e pés com as faixas!
—Depois usam roupas largas e um manto!
—Para ficar igual aos espíritos!
—Calma crianças, eu não estou entendendo nada...
—Não tem problema Sophie!
—Nós vamos explicar tudinho para você!
—Sim!Nós vamos!
O restante do caminho foi em uma conversa profunda sobre comidas e danças ao redor da fogueira, Minir e Dimir até tentaram me explicar sobre o tal festival, mas quanto mais eles falavam mais confusa eu ficava, o assunto só virou outro assim que chegamos em frente a uma grande construção e os dois me disseram que alí era a escola.
—Chegamos Sophie!
—Quer entrar com a gente?
Conseguia sentir a expectativa de cada um.
—Desculpe crianças, mas acho que vou voltar para casa, a mãe de vocês ainda precisa da minha ajuda.
—Tudo bem, nos vemos a tarde então.
Me inclinei para abraçar Dimir pouco antes de Minir se aproximar.
—Pode levar a cesta e o dinheiro para a mamãe?
—É claro.
—Obrigada Sophie!
Abracei a garotinha e esperei até que ambos tivessem entrado, quando me vi sozinha respirei fundo, ajeitei a capa e fui novamente em direção ao comércio torcendo para não me perder no caminho de volta.
Passar a tarde com Alie me rendeu alguns cortes nos dedos, muita farinha espalhada pelo rosto e um grande livro de receitas para ler, até aproveitei a oportunidade para perguntar como o idioma poderia ser o mesmo em mundos tão diferentes porém, nem mesmo Alie sabia explicar o motivo, sem muito o que fazer me concentrei na massa que ganhava forma e o restante dos ingredientes que ainda precisavam ser cortados.
...
Os outros dias continuavam na mesma rotina, eu visitava Alie pela manhã, ajudava as crianças a se arrumarem e depois trabalhava na cozinha fazendo inúmeros pratos diferentes ganhando algumas moedas como pagamento no fim do dia, quando voltava para a caverna tentava conversar com Eylef mas ele se tornava cada vez mais distante e silencioso. Cansada cogitei por várias vezes em ir morar com Alie e seus filhos mas alguma coisa me impedia de aceitar a proposta sempre me trazendo de volta aquele lugar.
Na manhã seguinte cheguei pronta para mais um dia de trabalho, hoje prepararíamos biscoitos coloridos, no entanto, a pequena mulher de chifres estava com outros ingredientes espalhados sobre a mesa com Dimir e Minir em cada ponta vestindo aventais e toucas.
—Bom dia...
—Bom dia Sophie!
—Está tudo bem por aqui?Perdi alguma coisa importante?
—De forma alguma, acho que o certo a dizer é que chegou bem na hora de começarmos!
Alie estava animada, mais do que o comum.
—Pelo visto não vamos fazer biscoitos hoje.
—Não!Hoje vamos fazer os bolos para o festival!
Minir e Dimir deram pulinhos.
—O festival? — puxei na memória a primeira vez que acompanhei as crianças até a feira — Já é o final da estação?
—Sim Sophie e a festa é amanhã à noite!Gente de todos os lugares vai passar por aqui para ver a dança dos espíritos!E os bolos do festival são da nossa responsabilidade!
—Mas eu não sei fazer isso...
—Não se preocupe, a massa e o recheio são por minha conta, você e as crianças vão cuidar da decoração.
—Também não sei fazer isso...
—Nós ensinamos Sophie!
—É!Ensinamos!
Um pouco mais aliviada sorri para os pequeninos.
—Se já está tudo certo, mãos à massa!
Fazer a decoração dos bolos parecia algo tão difícil quanto preparar a massa e o recheio, Alie trabalhava com agilidade com as tigelas enquanto as crianças e eu enfeitavamos com caldas e frutas da estação. No final estava exausta, e tinha perdido a conta de quantos bolos haviam passado na minha frente mas ao ver a mesa repleta imaginei que pelo menos uns trinta.
—Acho que nunca trabalhei tanto na vida...
Sentei em uma das cadeiras com as pernas doendo, Dimir e Minir me acompanharam logo em seguida.
—Fazer os bolos é realmente complicado, por isso eu uso magia, mas vocês trabalharam muito bem, a decoração ficou perfeita!Amanhã quando for ao festival vai ver que todo o esforço vai ter valido a pena!
—Quero usar minha máscara de coelho e faixas rosas!
—E eu a de lobo!E faixas azuis!
—E você Sophie?Vai usar o quê?
—Para ser sincera eu não sei se vou — confessei. Nunca havia saído a noite e depois do incidente no primeiro dia a ideia de pegar o caminho da floresta na escuridão me apavorava — Além do mais, eu não tenho nada para vestir.
—Não seja por isso!Pode fazer compras!Com sorte talvez os vendedores ainda tenham alguma coisa nos estoques!
—É Sophie!Vamos no festival!
—Eu não sei...
—Se o problema for andar a noite pode dormir aqui em casa pelo menos amanhã, o festival não acontece todos os dias e vai ser uma festa linda demais para não participar.
Ainda encarava o teto pensativa, no fundo eu tinha receios de passar uma noite inteira longe da caverna, mas por outro lado eu estava curiosa com o festival.
—Acho que uma noite não tem problema.
—Eba!
—A Sophie vai dormir aqui!
—Sim crianças mas amanhã, então tratem de se acalmar.
—A Sophie vai dormir comigo!
—Não, ela vai dormir comigo!
—Crianças...
—Comigo!
—Comigo!
—Muito bem!A Sophie vai dormir com quem terminar de arrumar o quarto e tomar banho primeiro!E já está valendo!
Depois de encararem a mãe e a mim por pouco mais de um segundo, os dois dispararam em direção as escadas com gritos de "Eu primeiro!" ecoando pelo andar de cima.
—Gostaria que tivessem essa energia para estudar...
Encarei Alie surpresa com a chantagem que tinha usado.
—Não se preocupe, tem um quarto de hóspedes lá em cima, e se os dois insistirem podem levar os colchões e dormir junto com você, eu só não podia deixar a oportunidade de fazê-los arrumar o quarto passar.
Nós duas rimos, mas quando eu estava prestes a pegar um vasilhame para limpar Alie a tirou das minhas mãos tão rápido que eu mal tive tempo de protestar.
—Você ainda precisa comprar a roupa para o festival, então deixa que eu termino por aqui ou as melhores peças vão esgotar rapidinho.
—Mas...
—Nada de "mas", é bom se apressar, não esqueça que precisa de uma máscara, faixas longas para os braços e as pernas e um manto comprido, a cor não importa.
—Pensei que você ia comigo para me ajudar a escolher.
—Eu adoraria, mas preciso limpar isso aqui, não quero ter que acordar amanhã e ver que a primeira coisa a fazer é lavar a louça.
Seus olhos se reviraram me arrancando um sorriso.
—Está esperando o que parada aí?Anda, anda!
Me despedi brevemente correndo para a saída com o capuz na cabeça, lá fora o dia estava frio mesmo com o sol alto, várias pessoas andavam de um lado para o outro enfeitando cercas, casas e árvores com tiras coloridas e algumas lanternas a gás, o comércio não estava diferente, dessa vez mais agitado me obrigando a passar por uma massa de corpos até a barraca das máscaras onde cinco clientes estavam parados esperando para terminar de comprar seus adornos.
—Com licença, ainda sobrou alguma máscara? — perguntei vendo que não havia mais nenhuma em exposição.
—Lamento mocinha, acabei de vender as últimas.
—Ah, sério?
—Sim.
—Bom, obrigada mesmo assim.
Já estava prestes a ir embora quando ouvi sua voz me chamar.
—Eu ainda tenho outras duas aqui, mas elas estão trincadas, por isso nem ofereci, mas vai que você se interessa.
—Posso ver?
—Claro!
O vendedor tirou as duas máscaras colocando sobre o balcão, ambas eram de um branco leitoso com o formato do rosto de raposas, uma maior e a outra menor com um risco visível que descia das orelhas até os olhos.
—Se ainda quiser posso fazer um desconto generoso para você, são bem resistentes e mesmo com essa rachadura não vão quebrar, só é esteticamente incômodo.
—Não tem problema, vou ficar mesmo assim.
—A maior ou a menor?
Encarei as duas máscaras com atenção.
—Acho que a menor é perfeita para mim.
—Também acho, aqui está, vai custar apenas uma moeda de bronze.
Enfiei a mão no bolso pronta para dar o dinheiro ao vendedor quando uma ideia surgiu.
—Acho que vou ficar com as duas...
—Mesmo?Nesse caso posso te emprestar isso!
Vi quando ele puxou uma pequena caixa com vários potes de tintas e pincéis os colocando na minha frente.
—Normalmente as pessoas preferem comprar elas prontas mas ainda tem quem goste de fazer as pinturas.
—Nossa!E tem alguma coisa em específico que são pintadas nas máscaras?
—Normalmente folhas e flores, depende muito da próxima estação.
—Entendi...
—Se me der licença vou atender outro cliente, mas fique à vontade.
—Obrigada.
Assim que o vendedor se afastou peguei o pincel mais fino, os potes de tinta vermelha e laranja e comecei meu trabalho.
Não sabia se minha ideia ia dar certo mas não custava nada tentar.
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