Gratidão
2
Com pressa e sem tempo a perder arrumei algumas das ervas, emplastros e infusões que ainda tinha colocando-as em uma trouxa de pano velho, ninguém poderia ver o que eu carregava, portanto, tomei o cuidado de esconder o embrulho em uma cesta de vime e cobri-la com uma toalha de renda antiga, se alguém perguntasse eu simplesmente poderia dizer que estava a caminho do comércio.
—Certo — respirei fundo mais uma vez — Vamos lá!
Fazendo o máximo para não esboçar meu nervosismo cobri minha cabeça com uma echarpe velha saindo em direção a luz do dia, do lado de fora tudo continuava como antes do anúncio daquele homem, ninguém parecia preocupado ou abatido, a vida simplesmente continuava por ali. Contendo minha indignação segui em frente passando despercebida pelas pessoas que estavam ocupadas de mais com seus afazeres, por sorte, nem mesmo Carla pareceu me ver da barraca de tecidos da sua mãe onde conversava animadamente com outra jovem.
Menos mal...
Pensei enquanto me afastava cada vez mais do alvoroço do comércio para o silêncio dos becos e vielas. Naquela parte da cidade as ruas eram de terra batida e as casas de aspectos simples, as pessoas não se vestiam com pompa ou exibiam adereços caros, por ali as roupas tinham emendas, furos de traças e os adornos do corpo não passavam de rugas, feridas ou cicatrizes. Caminhar por aquelas vielas já havia se tornado um hábito, os cães latiam junto das crianças que brincavam descalças enquanto as mães penduravam as roupas limpas nos varais de corda sempre com um lenço amarrado na cabeça, os mais velhos sentavam em bancos observando o céu azul enquanto aos mais novos pediam por histórias antigas, mesmo com as dificuldades tudo tinha um tom de alegria, porém, hoje as coisas estavam diferentes, exceto por mim e um cão que perambulava com suas orelhas baixas não havia uma alma sequer por ali.
O que aconteceu?
—Tia, tia...
Perdida nos meus próprios pensamentos não notei quando um garotinho de pele suja e olhos brilhantes se aproximou puxando a barra do meu vestido.
—Tia, o que tem na cesta?É comida?
Senti um aperto no peito ao ouvir aquilo.
—Desculpa pequeno — me abaixei ficando na altura dos seus olhos — Mas isso aqui são apenas panos velhos.
—Ah...então você não tem comida também?
—Não.
—Mamãe me deu um pedaço de pão para o café, mas eu guardei ele para mais tarde, se quiser eu posso dividir com você.
O vi levar a mãozinha até o bolso do short quando o impedi.
—Não, não precisa, eu estou bem, pode ficar para você.
—Tem certeza?
—Sim.
—Então eu vou guardar para quando o papai acordar.
—Mesmo?Seu pai deve ter trabalhado muito então, o sol já está quase descendo no horizonte.
—Sim, mamãe disse que papai trabalha desde que tinha meu tamanho, mas que agora ele estava descansando e ia demorar muito tempo para acordar.
—Ah... — senti meus olhos arderem — É mesmo?
—Sim!Por isso vou guardar o pão para ele.
Não chore...
Contendo as lágrimas acariciei o topo da sua cabeça.
—Qual é o seu nome?
—Vini.
—Escuta Vini — o puxei para mais perto — Da próxima vez que eu vier aqui vou trazer algo bem gostoso para você.
—Mesmo?!
—Mesmo!
—Igual uma maçã?!
—Igual a uma maçã — sorri.
—Obrigado tia!
Pulando de alegria recebi um abraço apertado pouco antes do pequeno ir embora saltitando pelas ruas, por alguns minutos eu fiquei ali, parada, apenas o observando, sentindo a dor que, felizmente, ele ainda era muito pequeno para compreender.
Depois que Vini desapareceu por completo do meu campo de visão segui pelas ruas até chegar em frente a uma casa de muro amarelo, com cuidado subi o único degrau que levava até a entrada batendo três vezes na porta de madeira, segundos depois uma voz rouca ecoou lá de dentro.
—Já vai!
Mal tive tempo de me afastar para que uma moça de pele pálida, vestida em roupas simples mas coloridas aparecesse pela porta arregalando os olhos assim que me viu.
—Sophie?!
—Bom dia Maria, ou será que já é boa tard-
Sem que eu esperasse, sua mão agarrou firme meu pulso enquanto me puxava para dentro de casa como se um animal raivoso estivesse prestes a me atacar.
—Nossa!O que foi isso?
Espiando por uma fresta da porta Maria me estendeu a mão pedindo silêncio segundos antes de respirar fundo e se afastar da entrada, seu corpo estava ereto e o olhar atento, nunca a tinha visto daquele jeito antes.
—Está tudo bem? — me aproximei devagar — Você está pálida — foi então que um pensamento nebuloso tomou conta de mim — Pelos céus!Não me diga que o Caio...
—Meu irmão tá bem sim.
Suspirei aliviada.
—Fico feliz em saber, eu até trouxe mais um pouco do unguento para a ferida.
Busquei pelo pote em meio às ervas medicinais sentindo seu olhar atento sobre mim.
—Aqui, achei!
Estendi o pequeno objeto para ela que, diferente das outras vezes, não aceitou.
—Não posso.
—É claro que pode, vamos, pegue.
—Não Sophie, não posso.
Confusa deixei o unguento de lado para encarar seus olhos ainda atentos.
—O que aconteceu Maria?Por que está tão estranha?
Observei uma das suas mãos ir até a cabeça antes de um longo suspiro escapar dos seus lábios.
—Você não tá sabendo?
—Do que exatamente?
Mais uma vez seus olhos foram até a porta como se temesse que alguma coisa, ou alguém entrasse.
—Do pronunciamento daquele homem.
—Ah... — respirei fundo — Sim, eu estou sabendo.
—E mesmo assim tu veio aqui?!
—Claro.
Com um movimento rápido suas mãos agarraram meus ombros com força.
—É doida mesmo!E se alguém te pega andando com os remédios?Quer ser jogada no buraco com o monstro é?!
Em silêncio retirei suas mãos com delicadeza, não sabia ao certo o que dizer. Assim como Carla, Maria também estava preocupada comigo e ambas tinham boas razões para isso, no entanto, mesmo com medo eu não poderia simplesmente ficar de braços cruzados quando ainda tinha tempo para ajudar alguém.
—Não precisa se preocupar — sorri na esperança de acalmá-la — Mesmo que o pronunciamento tenha sido hoje é amanhã que as coisas vão ser realmente válidas.
Afinal de contas, a noticia já vai ter se espalhado pelos quatro cantos da cidade nesse tempo.
—Não deixa de ser perigoso mulher.
—Eu sei, mas o que importa é que consegui chegar até aqui, não? — voltei a tirar o potinho da cesta — E ai?Cadê aquele cabeça dura do seu irmão?
—Sophie...
—Sim?
Sustentei seu olhar preocupado até finalmente vê-la ceder com um sorriso.
—Ele tá lá nos fundos, vêm, acho que vai gostar de ver uma coisa.
Com um clima mais leve segui seus passos pela simples residência, o chão de madeira rangia, as paredes estavam descascadas e os móveis gastos, porém, como sempre, cada cômodo continuava impecavelmente limpo. Depois de passar pelo pequeno corredor, cruzar com os quartos e a cozinha desci um pequeno lance de escadas até o quintal dos fundos onde uma arvorezinha se esticava forte em direção ao céu mesmo no solo seco e duro na qual havia nascido.
—Caio!Não vai nem dizer oi pras visitas agora?
Mal acreditei quando meus olhos alcançaram um rapaz de pele morena e cabelos ondulados se apoiar em um cabo de madeira e vir na minha direção esboçando um largo sorriso.
—Sophie!
—Eu não acredito! — com os olhos cheios d'água corri na sua direção o abraçando apertado —Você levantou!Levantou! — não conseguia parar de rir — Eu disse que você ia sair daquela cama, não disse?!
—Ah Sophie, tu não faz ideia do quão feliz eu tô!
Senti seus braços me apertarem com força.
—Só não vou rir junto porque minhas bochechas já tão doendo de tanto faze isso ontem.
Ainda com o peito transbordando alegria soltei o rapaz que buscou o apoio da muleta improvisada.
—Mas me diz, quando foi isso?Só fiquei três dias sem vir aqui e você me aparece com uma novidade dessas?!
—É porque eu sou um cara de muitas surpresas.
—E bota surpresa nisso.
Maria se aproximou do irmão com um largo sorriso no rosto, bem diferente do semblante sério de instantes atrás.
—Acredita que eu tava lavando roupa no riacho quando esse moleque apareceu atrás de mim?Pensa num susto que eu levei.
—Ela quase me bateu com o cabo de vassoura que eu tava usando.
—Mereceu!Onde já se viu assustar os outro desse jeito.
—Ah mas tu gostou da surpresa vai.
—Claro que gostei — Maria não parava de sorrir — Quando eu vi meu irmão de pé na minha frente, até larguei as roupa no meio da água e fui correndo abraçar ele igual você fez agorinha.
—Acredita que minhas calça quase foram imbora Sophie?.
—Eee, deixa disso menino besta — Maria deu um tapa no ombro do irmão que simplesmente riu.
—Eu fico muito feliz de saber que você se recuperou Caio — com os olhos vasculhei seu corpo até chegar na perna esquerda onde havia faixas de pano amarradas — Mas parece que ainda precisa de cuidados.
—Que nada!Garanto que já melhorei.
—Mas o ferimento não cicatrizou, caso contrário não teria essa mancha vermelha no curativo.
Me abaixei para examinar melhor o local mas Caio se afastou.
—De verdade, Sophie, não precisa.
—Não me diga que você também está preocupado comigo por causa daquele anúncio?
Caio não respondeu, não de imediato, ficamos um tempo nos observando até que ele finalmente concordasse com a cabeça.
—Já disse para a Maria e vou dizer para você também — toquei seu ombros esboçando um leve sorriso — Não precisa se preocupar comigo, eu só vim hoje porque sei que as coisas vão ser mais difíceis amanhã, e o mais importante é que você está se recuperando muito bem graças aos remédios.
—E a você também!Por isso não quero que corra perigo por minha culpa!
—Aquele homem ruim já disse que vai joga no buraco qualquer um que mexa com essas planta e remédio que você usa, se alguém te pega Sophie...
—Eu vou ficar bem, o que importa é ajudar quem precisa enquanto ainda tenho tempo — voltei a encarar Caio com o mesmo sorriso de antes — Gosto de ver que meus cuidados ajudam as pessoas a melhorarem e vou continuar fazendo isso.
—Tu não existe menina, mas cuidado com esse coração bom, tem muita gente ruim no mundo que gosta de aproveitar de pessoas assim.
—É Sophie!Tu se cuida viu?
—Pode deixar, mas mudando de assunto, será que podem me fazer um favor?
—Claro.
—É só tu pedir.
—Entregariam algumas folhas de capim santo a Dona Joana?Eu não a vi e já está ficando tarde para uma visita.
—Se quiser hoje mesmo do pra ela essas folhas, mas vai se de noite pra curioso não fica especulando depois.
—Obrigada Maria, já o resto das ervas vou deixar com vocês, como não sei o dia que vou conseguir voltar aqui sem levantar suspeitas é melhor que tenham um estoque para fazer o unguento caso o potinho que trouxe acabe.
—Não vai faze falta?
—Não, não vai, fiquem tranquilos.
—Se é assim, muito obrigada Sophie, de coração.
—E que tal um café antes de ir?Acabei de passar!
—Eu agradeço Maria, mas vai ter que ficar para uma próxima — olhei em direção ao céu vendo que já estava tarde — Preciso chegar logo em casa porque um amigo vem me visitar.
—Hmn, um amigo é?
Seu sorrisinho fez com que eu ficasse momentaneamente sem jeito.
—Sim, um amigo — sorri — E você rapaz!Se cuide, hein! — voltei a abraçar Caio uma última vez antes de me afastar em direção a cozinha.
—Tu também viu!
—Vêm, eu te acompanho até a porta Sophie.
Deixando Caio para trás segui Maria pelos cômodos da simples residência até alcançar a sala onde, novamente, ela segurou firme meus ombros mas dessa vez para um abraço.
—Muito obrigada por cuidar do meu irmão.
—Eu é que fico feliz por ter ajudado — a gratidão martelava no meu peito enquanto eu retribuía o gesto — Não deixa ele fazer arte de novo, não sei quando vou poder voltar aqui para "colar" outro osso.
Rimos juntas.
—Vê se te cuida menina.
—Pode deixar.
A abracei uma última vez antes de sair para as ruas empoeiradas de terra batida. Por ali o movimento continuava o mesmo, nenhuma alma viva cruzava meu caminho enquanto eu virava pelas vielas em direção ao centro da cidade, no fundo me perguntava se aquilo teria algo haver com o pronunciamento do grande líder, talvez o medo de retaliações ou simplesmente o receio de se contaminar com alguém doente que estivesse passando impedisse que as pessoas andassem livremente. Respirei fundo. Tempos difíceis estavam por vir. E como sempre a corda arrebentaria para o lado mais fraco.
Continuei minha caminhada até que o chão de terra ficasse para trás cedendo espaço as pedras que formavam as ruas do comércio, mesmo próximo do entardecer a multidão ainda era grande, com a mesma facilidade de antes passei pelo aglomerado de pessoas sem chamar atenção, só quando estava próximo de casa que ouvi uma voz chamar pelo meu nome, assim que me virei para ver quem era dei de cara com Rafael que vinha na minha direção com um olhar desconfiado.
—Sophie, está de saída?
Senti o ar me faltar aos pulmões, a sensação de ter cometido um crime se misturava a de dever cumprido quase me enlouquecendo.
—Eu tinha ido dar uma volta no comércio, esfriar a cabeça e quem sabe comprar alguns pães.
—Pensei que estivesse sem dinheiro, disse que não tinha como pagar as maçãs que eu te dei hoje de manhã.
—É...eu...
Pense Sophie.
— Encontrei algumas moedas que tinha escondido para o caso de uma emergência.
—Sei, e os pães?
Seus olhos foram até o cesto vazio.
—Mudei de ideia no caminho, aliás — continuei antes que ele pudesse fazer mais perguntas — Eu ainda tenho alguns pedaços de ontem, não posso me dar ao luxo de ficar gastando.
Observei o par de olhos azuis me encarar por mais alguns segundos antes de um longo suspiro escapar dos seus lábios e um sorriso meigo surgir.
—Bom, então fico feliz por ter trazido isso.
Sem que eu tivesse notado o vi estender uma pequena sacola de pano.
—O que é?
Deixei o cesto vazio no chão pegando o embrulho.
—Fiquei mal hoje de manhã por você não ter tomado café então...
—Eu não acredito! — fechei o saquinho para encará-lo de boca aberta — Bolo de nozes?!Eu amo bolo de nozes! — mordi um pedaço sentindo a explosão de sabores— Isso é simplesmente divino...
—Fico feliz que tenha gostado.
Espiei seu rosto tendo a leve impressão de ver um tom vermelho tingir suas bochechas.
—Eu adorei, muito obrigada Rafael.
—Não precisa me agradecer, até porque, de agora em diante vou trazer algo para você comer todos os dias.
Ouvir aquilo me deixou um tanto constrangida, eu sabia que minha condição financeira não era lá essas coisas, mas não me sentia bem que outras pessoas gastassem comigo.
—Agradeço a intenção mas não vejo necessidade, mesmo que eu pare de trabalhar por causa do pronunciamento eu tenho algumas economias que vão me ajudar até eu conseguir um novo emprego.
—Já disse que você não precisa se preocupar com isso, conversei com meu pai e ele aceitou ter mais uma ajudante.
—É muito bondoso da sua parte mas...
—Além disso!
Fui cortada por um sorriso doce que prendeu minha atenção.
—Estou fazendo isso porque gosto de você Sophie, e quero te ver bem.
—G.gosta? — senti minhas pernas tremerem.
—Sim — mais uma vez ele sorriu — Gosto muito de você.
Muito?
Aquelas duas palavras ficaram pairando na minha cabeça enquanto eu encarava o belo par de olhos azuis.
—De qualquer forma você deve estar cansada já que está chegando agora.
—É...eu... — não sabia o que dizer, as palavras simplesmente sumiram — Um pouco.
—Não vou tomar mais do seu tempo então.
Rafael já estava para partir quando virou mais uma vez na minha direção.
—Amanhã voltarei aqui, por favor pense na proposta que te fiz — ele sorriu — Vou adorar ter sua companhia no trabalho!
Dito isso ele me deu as costas e foi embora. Eu podia não ver mas, tinha certeza que meu rosto estava mais vermelho do que os pimentões da banca de verduras do comércio.
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