Eudora
22
O suor frio escorria pelas minhas costas, queria gritar, me debater, mas era impossível, meu corpo não respondia. Na frente estava um homem, as costas largas viradas para mim enquanto observava alguma coisa adiante.
—Não queria que fosse desse jeito, mas é a sua função e você sabe disso, então obedeça a um último comando meu.
Senti um arrepio gélido subir pelo meu pescoço assim que ele se virou, o olhar vazio fixo em mim enquanto sua figura permanecia oculta nas sombras. Ao redor podia sentir uma forte onda de energia me chicoteando com força.
—Morra para que eu possa unificar Ywura!
Acordei em um salto com a respiração ofegante.
Foi um sonho...
Levei a mão ao peito como se ainda pudesse sentir o choque da energia vibrar pelo meu corpo. Parecia ter sido real, assustadoramente real.
—Moça!Moça!Você acordou!
Procurei ao redor até encontrar uma silhueta agachada, o dia não havia nascido mas já conseguia discernir o contorno dos móveis graças a fraca claridade.
—Como se sente?Precisa de alguma coisa?É só falar que eu pego!
—Eu estou bem — me sentei, cada músculo reclamando — Onde estamos?
—Em um casebre antigo...
Na penumbra observei a jovem se acomodar perto de mim, seus olhos emitiam um leve brilho azul.
—Ah sim, agora eu me lembro, e você?Como se sente?
—Viva, obrigada por ter me ajudado.
—Não foi nada...
—E seu ombro?Fiquei preocupada achando que não ia parar de sangrar...
Levei uma das mãos até o ferimento aberto, a aparência não era boa mas pelo menos a hemorragia foi estancada, eu podia cuidar do resto com algumas ervas.
—Vou ficar bem.
Um fraco sorriso moldou seus lábios.
—Aliás, me chamo Sophie.
—Eudora, pode me chamar de Eudora.
—É um nome muito bonito.
—O seu também, de onde eu venho Solfi, significa inteligência.
Acabei rindo.
—Conheço alguém que iria discordar.
Foi então que me dei conta, Eylef não estava ali.
Será que ele voltou durante a noite?Se machucou na cidade?Ou aqueles homens o pegaram?
—Eudora, por acaso alguém apareceu enquanto eu dormia?
A vi se colocar de pé segurando um pedaço de madeira.
—Ninguém ousou colocar os pés aqui, mas não se preocupe, mesmo que alguém tivesse nos seguido eu iria defendê-la!
—Eu agradeço mas é que-
Antes que eu pudesse terminar ouvi a porta da frente abrir com um estrondo fazendo com que as paredes balançassem. Eudora colocou sua arma improvisada na frente do corpo e mesmo com as pernas bambas parecia pronta para atacar quando uma máscara surgiu.
Eylef!
Ele parecia cansado, as costas sempre retas estavam encurvadas enquanto o som de uma respiração ofegante ecoava pelo rosto da raposa. No beiral de madeira consegui ver os sulcos profundos que seus dedos fizeram, quase ao ponto de arrancar a porta das dobradiças.
—A.al.alto lá!Quem é v.você?!
—Eylef! — gritei, o par de olhos fixando-se imediatamente em mim — O que foi?!Aconteceu alguma coisa?!Você está bem?!
Tentei ficar de pé, mas antes de alcança-lo Eylef cobriu a distância entre nós segurando firme meus braços. Os olhos tão abertos que consegui ver com perfeição os traços da cor prateada em suas íris.
—Você está aqui...
O vi respirar fundo pouco antes do seu tom de voz mudar, quase como se contivesse a raiva que subia pela garganta.
—Mandei você esperar, onde esteve?!
—Eu...
—Te procurei a noite inteira!
Não consegui pensar em algo para dizer, foram tantas coisas, a garota, a perseguição, o corpo morto daquela jovem, a luz do colar, queria contar tudo, mas a única coisa que fiz foi imagina-lo procurando por mim naquela cidade durante a noite.
—O que foi isso?
Seu tom era calmo, perigosamente calmo enquanto avaliava o ferimento no meu ombro.
—Aconteceram algumas coisas — falei baixinho, o medo me mantendo alerta conforme um arrepio subia pelas minhas costas — Mas eu estou bem...
Os olhos de Eylef estavam tão atentos quanto os de um animal selvagem.
—Ajudei uma garota que estava perdida — falei tentando desviar sua atenção — Alguns homens estavam a perseguindo, mas conseguimos nos livrar deles.
Depois de segundos angustiantes senti seus dedos afrouxaram enquanto os olhos pratas se dirigiam até Eudora, a pobre garota se afastou até grudar as costas na parede.
—Quem é você?
O tom seco e hostil me lembrava o primeiro dia que o conheci no poço.
—E.eu...
—Eudora — completei, a coitada parecia assustada demais para falar qualquer coisa e o humor de Eylef já refletia sua paciência — É a garota que estavam perseguindo.
—E que quase te fez morrer.
—Foi minha decisão ajudá-la.
—Você sempre toma péssimas decisões.
—Não vejo motivos para agir de outra maneira.
—Até o dia que morrer.
—E por que você se importa com isso?
Ouvi um grunhido sair da sua garganta pouco antes de uma voz baixa quebrar o clima tenso entre nós.
—Me desculpe, não foi minha intenção colocá-la em apuros...
Graças ao nascer do sol a imagem da garota ganhou forma e cor. Eudora era bochechuda com um rostinho oval delicado, tinha a pele rosa onde seus olhos azuis ganhavam todo o destaque, ainda mais com os longos cabelos ondulados que caiam pelos ombros como cascatas douradas. Definitivamente uma nobre, e os adereços de ouro que pendiam na sua testa confirmavam isso.
—Eu estava desesperada, não sabia o que fazer e graças ao grande rio Sophie me ajudou — a vi tomar coragem e dar um passo adiante — Mas ela está ferida e precisa descansar, então por favor, não brigue com ela por minha causa.
Eudora...
Me sentia grata por ver sua determinação em falar como Eylef daquele jeito. A contragosto vi a raposa branca se voltar para mim ignorando a presença da menina.
—Do que precisa?
O encarei sem entender.
—As plantas, vi você fazendo alguma coisa com elas uma vez.
—Ah, sim, bom...
Expliquei os tipos de ervas que eu usava para os emplastros e não demorou muito para que ele se levantasse indo novamente em direção a saída.
—Fique aqui — o tom firme já bastou para eu entender que era um aviso.
Quando Eylef desapareceu respirei fundo.
O que deu nele?
Em outra oportunidade eu teria rebatido, mas me sentia cansada demais para questionar qualquer coisa, então simplesmente me aconcheguei nos trapos cheios de pó.
—Você precisa de ajuda?
Eudora sussurrou tão baixo que mal a ouvi.
—Como eu disse vou ficar bem, a ferida não é profund-
—Não é isso...
Seus olhos azuis espiaram a porta.
—Ah!Não, não...ele é meio irritado as vezes, e rabugento, mas não é uma ameaça.
—Ele parecia uma ameaça...
Seus olhos estavam arregalados.
—Seu jeito turrão pode parecer assustador, mas Eylef me salvou da morte muitas vezes — sorri —Tenho certeza que ele não me faria mal.
Ainda desconfiada, Eudora manteve os olhos atentos, não podia julgá-la pela primeira impressão com Eylef, a minha também não havia sido uma das melhores, mas com o tempo aprendi que por trás da máscara existia um pouco de humanidade naquele ser tão misterioso e solitário.
—De qualquer forma vou ficar de olhos bem abertos, me desculpe por dizer isso do seu salvador mas eu não gostei muito dele.
—Não se preocupe, eu entendo seu lado.
—Bom, pelo menos ele parecia determinado em ajudar.
—Confesso que isso me surpreendeu...
Não esperava uma atitude assim vindo dele, de qualquer forma, era melhor agradecer do que ficar questionando suas atitudes.
—Aliás, não sabia que você tinha conhecimento sobre emplastros e infusões.
—Sua técnica para estancar a hemorragia também me surpreendeu, você
é tão nova, onde aprendeu a fazer isso?
—Minha mãe me ensinou, ela é curandeira.
Lembrei da conversa com Alie sobre curandeiros. Aquela garota devia ser especial, e talvez seu status de nobreza não fosse o único motivo.
—E onde ela está agora?
Os olhos azuis voltaram-se pensativos para o chão.
—Em casa...
—Você se perdeu dela?
A vi negar.
—Foi raptada?
—Não...
—Então?
—Eu vim recuperar algo importante, sai de casa sem ninguém me ver e acabei sendo seguida.
—Por aqueles homens?
—Sim.
—Seus pais devem estar muito preocupados, você mora muito longe daqui?
—Não muito, mas eu não sei voltar para minha cidade sozinha — suas mãos seguraram com firmeza a barra do seu manto — Confesso que estou com medo de mais alguém vir atrás de mim.
—Bom, talvez eu possa te ajudar — respirei fundo — Mas isso não vai depender apenas de mim...
—Está falando do seu amigo assustador.
Sorri concordando com a cabeça, em resposta Eudora abraçou o próprio corpo.
—Acho que ele também não gostou muito de mim.
—Quem sabe se eu falar com ele não podemos ir junto para sua cidade.
—Acha que consegue?
—Prometo tentar.
Em um gesto repentino, Eudora se inclinou para me dar um abraço.
—Obrigada Sophie.
Não demorou muito para a figura de manto voltar, dessa vez trazendo alguns ramos de folhas verdes e o que parecia ser um cantil velho.
—Aqui — as mãos finas deixaram tudo perto de mim.
—É o suficiente, obrigada.
—Posso te ajudar Sophie?
—Claro Eudora.
Como se já soubesse o que fazer, a garotinha começou a separar as folhas.
Enquanto a pequena nobre trabalhava, deixei que o silêncio reinasse por alguns minutos antes de falar com a raposa branca.
—O que aconteceu depois que você foi atrás daqueles homens?
—Consegui informações — ele foi breve — Partimos amanhã.
—Para onde?
—Claredon.
Vi Eudora derrubar o cantil, em desaprovação Eylef a encarou por longos segundos antes de se acomodar no banquinho.
—A próxima runa está lá?
—Talvez.
—Eudora irá com a gente então, quem sabe não encontramos um jeito de mandá-la para casa.
—Não me lembro de concordar com isso.
—Não vou deixa-la sozinha, é só uma criança.
—Não é problema meu.
—Não, mas eu preciso ajudá-la.
—Então não me envolva nisso.
—Não fale como se fosse o fim do mundo, é só ela ir com a gente, quem sabe em Claredon não encontramos alguém que a leve de volta para casa.
Vi os olhos prateados alternarem entre a menina e eu.
—Você é um imã para confusão, humana.
—Vai ver é só um charme.
Respirando fundo Eylef inclinou o rosto em direção ao teto.
—Partimos amanhã.
Com um sorrisinho nos lábios me virei para Eudora que retribuiu com o mesmo.
Aproveitei o máximo de tempo possível para recuperar minhas energias, o susto de ser perseguida ainda não havia passado, mas eu não podia me dar ao luxo de gastar forças com esse tipo de preocupação, precisava me recuperar. Durante a noite, Eylef já dava sinais de impaciência enquanto sentava próximo à porta observando a floresta. O brilho prateado da lua entrava pelo buraco do teto clareando o cômodo. Eudora havia dormido ao meu lado, e mesmo com o ombro ferido acariciei seu cabelo pensando nos perigos que ela correu sozinha.
—Não se apague.
Olhei em direção a porta vendo o brilho de um par de olhos místicos.
—Nobres podem ser decepcionantes.
Sem entender o que ele quis dizer acariciei uma última vez os fios dourados da garotinha antes de cair em um sono profundo.
No dia seguinte acordei com uma mão me sacudindo. Eudora já estava de pé enquanto a raposa esperava do outro lado da sala.
—Já vou...
Caminhamos pela floresta vendo a luz do dia preencher o céu com tons de laranja. Eylef ia na frente afastando galhos e arbustos enquanto eu o seguia com Eudora na minha cola. Por algumas vezes pássaros em plumagens coloridas voavam sobre nossas cabeças, já em outras algumas flores pareciam se inclinar na nossa direção. Tudo era novo e curioso para mim, tanto que eu parecia mais com uma criança do que a própria Eudora.
—Veja Sophie!
Segui com os olhos a direção que a garotinha apontou vendo uma árvore de galhos baixos, o tronco fino retorcido enquanto suas folhas pareciam pequenos rubis cintilando com os feixes de luz.
—É uma árvore outonal!
A pequena correu em direção a planta com os olhos brilhando, logo em seguida eu fiz o mesmo tocando as folhas que, para minha surpresa, eram macias.
—É linda!Veja Eylef!
Olhei na direção da raposa que nos encarava com um ar severo.
—O que foi?
—Nada, vamos continuar.
Sem dar tempo de apreciar melhor a curiosa planta seguimos em frente, sempre em frente até meus pés não aguentarem.
—Estou cansada, podemos parar um pouco?
No fundo esperei que Eylef ignorasse minha queixa, mas acabei sendo surpreendida quando ele se virou concordando.
—Quinze minutos.
—Que tal meia hora?
Fui repreendida pelos seus olhos.
Ok, quinze minutos então...
Me acomodei em um tronco velho esticando as pernas cheias de hematomas e arranhões. Um pouco mais longe, Eudora se distraia com algumas borboletas azuis que voavam ao seu redor. Olhei a cena pensando na saudade de um tempo onde os problemas não pareciam ser problemas.
—Beba.
Levei um susto quando alguém me entregou um cantil.
—Onde encontrou isso afinal?
—Não importa.
—Bom, obrigada.
Depois de alguns goles devolvi o cantil vendo-o se afastar.
—Tem bastante espaço aqui — bati de leve na casca grossa da árvore — A não ser que prefira sentar no chão.
—Talvez eu prefira.
—Vamos lá ranzinza, você cabe aqui.
Continuei dando tapinhas no tronco da árvore até Eylef finalmente ceder se acomodando no espaço vago.
—Viu só, você não morreu.
—Muito engraçado.
Sorri.
—Vai demorar para chegarmos nessa tal Claredon?
—Está com pressa?
Senti sua ironia.
—Não, mas meus pés ficariam gratos se eu tivesse uma noção do quanto ainda vamos caminhar no meio da mata.
—Chegaremos no final do dia — seus olhos se voltaram para mim — Isso se não ficarmos parando no meio do caminho.
Recebi a indireta com um revirar de olhos.
—Como sabe para onde ir?A essa altura eu já estaria perdida no meio dessas árvores...
—Se eu soubesse que teria que responder a um questionário teria me sentado no chão.
—Não exagera, foi só uma pergunta.
—Duas.
Respirei fundo.
—Só me responda essa e eu paro.
Vi seu olhar cheio de desdém que parecia dizer: "Acredito".
—Tá bom, eu tento parar...
Dessa vez foi ele que respirou fundo.
—Conheço muitos lugares, por isso sei o caminho.
—Hmn, você tipo um viajante?
—Pensei que ia parar com as perguntas.
—Eu disse que ia tentar.
Eylef inclinou a cabeça para trás, as faixas que cobriam seu pescoço estavam sujas de terra e sangue. Fiquei me perguntando se ele não estava machucado, mas pelo movimento ágil que fez descartei essa possibilidade.
—Viajei muito — ouvi um longo suspiro — Mas eu era mais do que um nômade por essas terras.
—Deve ter visto muitas coisas legais, conhecer vários lugares e pessoas, ainda mais em um mundo como esse...
Deixei minha imaginação flutuar junto das nuvens que cobriam o céu. Quantas coisas fantásticas não existiriam por aí? Paisagens que fugiriam do que muitos consideravam normal. Pessoas com aparências únicas. Plantas e animais jamais vistos ou sonhados. As possibilidades eram tantas.
—Meus olhos não viram nada além da verdade.
Fui arrancada dos devaneios pelo tom amargo da sua voz.
—Vamos, os quinze minutos já passaram.
Com uma aura pesada emanando ao seu redor, Eylef mal me deu tempo de saltar do tronco e chamar por Eudora antes de tomar a frente quebrando galhos secos de forma ruidosa abrindo caminho pela floresta.
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