Como o badalar de um sino
13
Depois do encontro inusitado com aquelas crianças, ainda consegui pegar mais algumas frutas antes de procurar novamente o caminho até a caverna, por algumas vezes pensei ter tomado a direção errada, mas assim que avistei a boca escura em meio ao aglomerado de terra e rochas suspirei. Pelos menos Eylef não poderia me provocar dizendo que me perdi na floresta.
Eylef...
A pronúncia do seu nome parecia algo tão surreal quanto sua própria existência.
Se eu tivesse me perdido ele teria vindo atrás de mim?
Fechei a cara imaginando a resposta.
É claro que não.
A passos firmes atravessei o chão coberto de raízes até meus pés alcançarem as rochas deixando outra fruta no mesmo lugar de sempre, e, para minha surpresa, não havia nada ali.
—Por nada — falei de forma ríspida dando as costas à escuridão e indo me enroscar nas raízes da floresta.
Eu podia contar a ele o que aconteceu, o encontro com as crianças, as várias perguntas sobre esses impérios na qual eu não conseguia mais lembrar os nomes, sobre o vilarejo e o aspecto estranho dos dois irmãos mas, decidi guardar aquilo para mim, pelo menos por enquanto.
O dia tomou forma e cansada demais por não ter nada para fazer me afastei um pouco da caverna catalogando os tipos de plantas que encontrava no caminho, algumas eu conhecia como ervas medicinais para emplastros e chás, mas outras eu nunca tinha visto antes, fiquei me perguntando se possuíam alguma propriedade importante que eu seria capaz de usar em remédios ou eram apenas mato. Decidida e com uma nova ideia martelando na minha cabeça, voltei em direção a caverna pronta para conseguir, ou ao menos tentar obter alguma ajuda com os misteriosos olhos prateados.
—Ei, Eylef! — gritei assim que cheguei perto da entrada da caverna, minha voz criando ecos audíveis por longos segundos antes de sumir.
E como imaginei, ele não respondeu.
Direta e reta Sophie...
—Sabe se há uma fonte de água por perto?
Silêncio.
—Olha, eu imagino que se você comeu as frutas então é porque provavelmente sente fome e, se eu estiver certa o mesmo vale para a sede — avancei mais um passo ficando frente a linha da escuridão — Então seria muito legal se me ajudasse a conseguir água.
Nada. Tinha a impressão de estar falando com as paredes, mas eu sabia que ele estava ali em algum lugar.
Ok, foi você que pediu.
Irritada agarrei uma pedra solta e fui em direção a parede batendo por várias e várias vezes, como imaginei as rochas não eram comuns e o som que produziram ecoou alto dentro da caverna como o badalar de um sino. Dessa vez não demorou muito para que um par de olhos irritados surgisse me encarando da escuridão.
—O que pensa estar fazendo?!
—Te chamando — larguei a pedra e cruzei os braços — Se alguém não responde a gente bate na porta, nesse caso na parede.
Vi aqueles olhos se estreitarem, mas não me importei, de agora em diante eu o chamaria daquele jeito e por sorte ele pareceu ter percebido isso.
—Eu não sei onde conseguir água, então suma daqui e me deixe em paz!
—Então me ajude a procurar.
—Não.
—E por quê?
—Porque não é um problema meu.
Já podia ver os olhos de Eylef sumindo na escuridão quando agarrei novamente a pedra segundos antes daquele brilho prateado surgir bem próximo de onde eu estava.
—Se bater nessa parede de novo — ele fez uma pausa — Vou te enterrar até o pescoço no chão da floresta quando estiver dormindo.
Por um breve segundo estremeci, mas logo abandonei o medo daquela ameaça estreitando os olhos para ele.
—Você não sai durante o dia, e ainda falta muito tempo até o anoitecer — apertei a rocha mais firme entre os dedos — Ou promete me ajudar a encontrar água ou vou fazer desse lugar um campanário.
Eylef e eu ficamos nos encarando em profundo silêncio, as duas ameaças pairando no ar. Eu precisava de água e por algum motivo sabia que ele precisava de silêncio, talvez pelo tempo em que esteve preso seus ouvidos se tornaram sensíveis, então eu usaria essa e qualquer outra carta a meu favor.
Depois do que se pareceram horas, ergui a pedra que estava na minha mão, pronta para bater novamente contra a parede quando ouvi sua voz.
—Se eu encontrar água vai prometer nunca mais abrir essa boca! — as palavras foram cuspidas.
—Não faço promessas que não posso cumprir! — bradei, a pedra pronta para se chocar com as outras.
—Está bem!Eu ajudo! — podia sentir a raiva e a consternação em cada uma daquelas palavras — Agora largue essa maldita pedra!
—Também vai prometer não me enterrar em lugar nenhum quando eu estiver dormindo! — o encarei, as íris prateadas emanando incredulidade e irritação.
—Não faço promessas que não posso cumprir.
Conseguia sentir o leve tom de prazer vindo dele ao usar minhas palavras contra mim mesma, mas não me abalei. Firme com minha decisão, respirei fundo, arrumei a postura e encarei uma última vez os olhos prateados.
—Então nós dois vamos arcar com as consequências.
Com um único impulso bati com toda força possível a pedra contra a parede rochosa fazendo um estrondo ecoar tão alto que reverberou até mesmo dentro de mim.
Depois de fazer trovões surgirem na caverna, Eylef finalmente concordou em prestar sua ajuda sem cavar um buraco e me jogar dentro, mas por precaução, naquela noite, decidi me enroscar no meio de várias pedras dificultando qualquer tentativa de mãos que pudessem me tirar dali.
Não demorou muito para que eu visse o belo par de olhos prateados se moverem no breu irradiando um misto de raiva e humilhação, em resposta eu simplesmente sorri ouvindo um baixo grunhido pouco antes dele sumir pelas trevas que engoliam a floresta. Foi então que senti, aquela horrível sensação que subia pelo peito e parava na garganta, o medo de estar novamente sozinha, e dessa vez, no escuro de um lugar completamente desconhecido.
Sem ter noção de tempo não sabia se Eylef já havia saído por alguns minutos ou muitas horas atrás, o máximo que podia fazer era contar, contar até dez, trinta, sessenta e então começar de novo, no entanto, a cada ruído, mesmo que distante, eu me encolhia prendendo a respiração e perdendo a conta, só depois de tudo ficar novamente em silêncio eu voltava a contar. Um, dois, três, mas depois de repetir tantas e tantas vezes aqueles números e eles começarem a perder o próprio sentido simplesmente parei, os olhos fixos nas plantas brilhantes, ansiosos para avistar as estrelas prateadas que pertenciam a Eylef.
Ele vai voltar...
Me desvencilhei das rochas que me garantiam proteção dobrando os joelhos na altura do peito.
Ele vai voltar...
Apoiei o queixo em minhas pernas sentindo minha cabeça pesar com várias ideias e pensamentos ruins.
E se ele foi embora?
Eylef havia prometido não me enterrar viva, mas não tinha falado nada sobre me abandonar em uma caverna escura no meio da floresta. Meu corpo estremeceu e mais uma vez repeti para mim mesma: Ele vai voltar.
Não sei quanto tempo passou, talvez algumas horas pois eu acabei cedendo ao cansaço e caído no sono, um sono leve e perturbador onde criaturas de olhos vermelhos arrancavam minha pele com dentes afiados, até que um ruído no chão áspero da caverna me despertou por completo, ainda com a imagem de dentes ensanguentados na mente peguei a pedra que havia usado mais cedo arremessando-a sem pensar duas vezes na direção do som quando o impacto com a rocha vez o badalar de um pequeno sino preencher meus ouvidos seguido de uma voz.
—O que pensa estar fazendo?!
Encarei com profundo alívio o brilho dos olhos prateados de Eylef soltando o ar que prendia nos pulmões. Lá fora a noite começava a virar dia.
—Você voltou...
—E porque eu não voltaria?
Desconfiado, ele se abaixou aproximando aquele olhar místico do meu rosto, porém, o corpo ainda envolto na escuridão.
—Ah, não me diga que ficou com medo de estar sozinha?
Tentei ignorar o deboche em sua voz.
—Coitadinha, isso é tão...humano.
—Como se tivesse feito muita diferença! — fechei a cara ciente de que ele conseguia me ver — É mais fácil dar falta de uma das rochas dessa caverna do que de você!
Ouvi uma longa puxada de ar seguida de um suspiro.
—Achei água, humana.
Podia sentir sua raiva emanando até mim.
—Onde?
—Não me lembro de você pedir um mapa enquanto batia nas paredes.
Eu sabia que não pedi nenhum mapa e agora me sentia idiota por não ter exigido algo do tipo, ainda mais quando Eylef aceitou o acordo na força do mais puro ódio. Mas eu não ia dar para trás, então retruquei.
—Ou será que o som alto afetou seus ouvidos e você não escutou?
Em outros tempos seu silêncio repentino teria feito com que eu recuasse cheia de medo, apenas aguardando que uma mão avançasse sobre mim, mas dessa vez eu simplesmente continuei encarando aqueles olhos de prata. Os olhos do monstro do poço, tão firmes e igualmente irritados como os meus até que eu ouvisse novamente a sua voz.
—O caminho está marcado — grunhiu.
Senti toda aquela raiva e tensão abandonarem o meu corpo.
Ele marcou o caminho?
Encarei seus olhos deixando as ideias de extrair alguma informação de como chegar até essa tal fonte d'água para trás. Eylef já havia pensado em marcar o caminho. Talvez para ele mesmo não se perder, mas ainda assim, ele havia me dito que marcou o caminho, sem ameaças ou acordos, apenas esperando que eu simplesmente seguisse. Já podia ver o brilho dos seus olhos sumirem na escuridão quando abri a boca para falar, as palavras soando de forma mais sincera do que eu esperava.
—Obrigada Eylef.
Por um momento ele parou, o olhar prateado fixo aos meus como se não acreditasse no que ouviu, então ele me deu as costas e como das outras vezes, sumiu em meio a escuridão.
Assim que a floresta começou a tomar forma sai em busca de qualquer sinal que pudesse me indicar um caminho, e só fui encontrar um quando os primeiros raios de sol foram fortes o suficiente para espantar os últimos resquícios da noite me mostrando sulcos entre os troncos de casca lisa ou rugosa. As marcas eram apenas uma linha longa e profunda, fiquei imaginando o que Eylef teria usado para fazer aquilo e, assim que a lembrança de uma mão com dedos pontudos onde eu não sabia se eram ossos ou unhas surgiu abandonei qualquer pensamento me concentrando apenas no caminho. Andei por alguns minutos adentrando arbustos e saltando por troncos caídos, pensando seriamente se não teria sido enganada ou seguido algum caminho errado quando um gorgolejo preencheu meus ouvidos. Bem na minha frente, serpenteando as árvores como uma longa cobra, um pequeno riacho cristalino corria floresta adentro se perdendo na vastidão verde.
Mal acreditando no que meus olhos viam corri em direção a ele afundando as mãos e levando água até os lábios secos, só então me dei conta do quão sedenta eu estava por aquele líquido tão precioso.
Com um impulso de alegria infantil afundei nas águas cristalinas sentindo o frio cortante pressionar meus pulmões, mas ignorei a sensação. Sentada em uma rocha retirei o vestido rasgado e sujo, lavando-o junto do meu corpo cheio de arranhões e hematomas. O ferimento na minha perna não era feio mas ainda sim fiz uma anotação mental de preparar um emplastro para aquelas marcas de dentes. Depois de me certificar que cada canto do meu corpo estava livre de terra ou sangue seco, mergulhei algumas vezes aproveitando a temperatura agora morna, as luzes do sol descendo pela copa das árvores como uma cortina dourada refletindo sobre a superfície das águas renovando minhas energias.
Eu poderia ficar ali para sempre, flutuando, vendo os mosaicos de luz e sentindo a paz que o vazio em minha mente trazia, porém, assim que meus dedos começaram a enrugar sai do riacho pegando meu vestido que deixei secando em uma árvore, era hora de conseguir mais comida e, quem sabe, outro encontro com aqueles dois irmãos e um pouco mais de informações sobre esse mundo estranho.
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