VI
O céu estava carregado por grandes nuvens tempestuosas que logo se desprenderam despencando em várias gotas pesadas. O chão seco se tornou uma lama densa e escorregadia, todos os animais estão voltando para suas tocas para se abrigarem.
A chuva não poderia ser mais que um aviso, um aviso que o grande dia chegou. O pensamento sobre o Netac me dava calafrios, meu corpo não sabia como reagir, nunca estive em campo e ainda mais com uma recompensa tão alta em jogo.
Pensei por um único momento que as pessoas não iriam comparecer por conta das estradas, mas me enganei no momento em que a primeira carruagem atravessou o portão. Meu coração palpitou ainda mais quando vi minha aminha Crystina descer da carruagem, corri o mais rápido que conseguira, a saudade era imensa. Pulei em seus braços, afundando meu rosto em seu pescoço, seu cheiro floral ainda era o mesmo, me afastei e a examinei, ela estava linda. Seus cabelos cor de mel estavam presos em um coque com algumas mechas caídas sobre os ombros, o vestido azul dava um lindo contraste com sua pele dourada e os seus olhos esverdeados. Seu sorriso estava iluminado, sentia que estava feliz e isso me deixava ainda mais contente.
— Eu não acredito que você veio — falei ansiosa.
— É claro que eu iria vir, minha amiga vai competir e eu não estaria aqui? Jamais — ela me deu um outro abraço.
— E Amber?
— Infelizmente não poderá vir, as estradas estão péssimas e ela não quis arriscar com o filho dela que está por vir.
— Ela está esperando um filho? — dei um longo sorriso.
— Sim, e está mais linda que nunca.
— Eu imagino que sim. Mas estou muito feliz por você estar aqui. Achei que estaria sozinha.
— Jamais deixaria você sozinha em um momento desses, sei que de sua família não pode esperar nada — ela olhou com desdém para o castelo.
Olho para fora e a chuva ainda permanece ali, sem previsão para estiar.
— Calma, tenho certeza que a chuva logo irá passar.
— Assim espero...
Levou várias horas para a chuva cessar, e mesmo quando a chuva estava presente as carruagens não paravam de chegar, as pessoas são capazes de correr perigo apenas para assistir a um espetáculo. Meu pai construiu a arena preparada para abrigar da chuva, tudo pensado no grande dia, onde nem a chuva poderia atrapalhar.
A arena estava cheia, meu pai já estava sentado no centro junto a rainha e Liandra. Eu estava de pé no meio da arena e ao meu lado direito acabara de se posicionar meu irmão, e os outros participantes ao seu lado. Meus olhos navegam pela multidão à procura de um rosto conhecido, logo encontro Crystina acessando para mim com um sorriso em seu rosto, seu amado está junto a ela acenando, isso faz meu coração se acalmar por um instante. Não estava sozinha, tinha alguém ali torcendo por mim.
As pessoas estão me olhando e cochichando no ouvido um dos outros, me pergunto o que eles tanto cochicham. Imagino que seja pelo fato de ser a primeira mulher na história que irá competir, espero assim conseguir respeito e talvez um resquício de poder.
O rei se levanta e de imediato todos se levantam com ele. Os jogadores fazem uma breve reverência, sou levada a me curvar junto a eles.
— Sejam todos bem vindos ao Netac. Estamos esperando por esse dia a muito tempo, as estações estão mudando e precisamos saber qual reino irá prosperar esse ano — ele sorriu — Esse ano meus dois filhos irão participar, mas o prêmio entre eles é muito maior.
As pessoas começaram a se olhar sem entender.
— Minha filha decidiu que o prêmio entre eles será a coroa de Notolia.
Houve um silêncio ensurdecedor na arena, mas durou apenas alguns segundos até ouvir risadas ao fundo e não levou tempo para todos estarem rindo.
— Não entendo o motivo para rirem — esbravejei.
— É por quê normalmente os primogênitos do nosso reino sempre foram homens... Nunca uma mulher governou — meu irmão respondeu.
O rei levantou a mão fazendo as risadas cessaram por completo. Rowena estava se divertindo com toda aquela situação.
— Não entendo o motivo das risadas, por acaso contei-lhes alguma piada? Rir da princesa é a mesma coisa que rir do rei e isso eu jamais irei tolerar — ele bateu com o punho no muro.
Olhei para ele sem entender, seria a primeira vez me defendendo. Mas um pouco tarde para isso.
— Dando continuidade ao que eu estava falando desde o início, a princesa irá competir pela coroa junto ao irmão — o rei levou suas duas mãos — Anúncio o primeiro e único desafio, que será a caça.
Vi alguns participantes rindo, pois era um desafio muito simples, mas sentia que não era apenas aquilo. Meu pai nunca faria um desafio único tão simples, com certeza tinha algo a mais, conseguia ver em seu sorriso.
— E o que iremos caçar? — perguntou um dos jogadores com um sorriso largo no rosto.
— Há algo que venho procurando há muito tempo. Algo que para alguns é de muito valor, algo não... um animal selvagem e extremamente difícil de se encontrar...
— Tem como falar sem rodeios? — falei, ele me olhou sério nos olhos.
— Quero que tragam para mim, vivo ou morto o cervo branco — ele sorriu sentando em sua cadeira acolchoada com um veludo vermelho, esperando para trazermos seu prêmio. Enquanto nos matamos a procura de algo que talvez nem acharemos.
Os jogadores deram um passo para trás, o jogador ao meu lado bambeou as pernas com o que tinha acabado de ouvir. Medo, isso que passava em seus rostos, ninguém tinha coragem de se aproximar da floresta negra, tão escura quanto a noite, um lugar onde ninguém sabia que tipo de animais selvagens havia ali. Apenas havia rumores do que poderia haver ali, muitos dizem que é o lar das bruxas, dos lobos e monstros que nem se quer os deram nomes e o único lugar onde poderia achar o servo branco.
Um animal branco e puro em um lugar tão perverso, precisava ter um equilíbrio, ou talvez alguma esperança para quem se atrever a entrar ali. Mas o que meu pai pediu foi algo extremamente difícil de se encontrar, já que ninguém sequer o viu, apenas ouviu histórias de alguém com a mente fantasiosa.
— Mas ninguém que entrou naquela floresta voltou para dizer o que havia ali — falou um dos jogadores — Isso é suícidio.
— Está dando para trás, soldado? — falou o rei — Irá desistir?
— E-u... jamais – levantou a cabeça, talvez tentando mostrar algum tipo de coragem, mas ele mente muito mal.
— Então que comece a caça — levantou a mão para o trompetista e ele levou o trompete a boca o assoprando, junto a ele tocaram os bombos, era o aviso do início do jogo.
Meu irmão estava com seu semblante convencido de sempre, e sei que por trás daquele sorriso há uma pessoa que tremeu ao saber onde que iríamos. Estou um pouco assustada, por mais que você não acredite nas histórias que contam, de tanto ouvi-las passa a temê-las.
Há algumas histórias sobre a floresta negra, mas apenas uma é a mais contada. A floresta negra há centenas de anos atrás era apenas uma floresta comum, um lugar onde muitos caçadores iam, pois era onde havia as melhores caças da região. Um lugar cheio de beleza, e o lar do cervo branco, o símbolo dos feéricos.
Os feéricos são uma raça muito parecida com a humana, só que na escada da vida, nós humanos estamos no primeiro degrau enquanto eles no topo. Seres que dominam "magia", e possuem uma habilidade de luta incomparável, ágeis e letais. Alguns dizem que já habitaram entre nós, mas um desentendimento fez com que eles se separassem dos humanos, um desentendimento que custou milhares de vidas. Toda essa história é muito improvável, para mim, é apenas histórias de terror.
Por que uma raça tão poderosa escolheria se separar de nós humanos se ela é capaz de dominá-los? Por questionamentos como esse que me fazem desacreditar de tamanha tolice. Mas como julgar os humanos, foram criados para acreditarem em algo, deuses, reis ou qualquer outra coisa fantasiosa. Nunca foi sensata a decisão de causar desespero nos homens, pois quem não espera o bem não teme o mal.
Os ventos uivavam por entre as árvores, os grandes galhos se moviam em sintonia, a beleza vista por fora era convidativa, como uma ratoeira armada pronta para capturar sua presa. Um lugar desconhecido, estamos fazendo nossa própria sentença de morte, os cavalos não obedecem ao nosso comando de prosseguir para dentro das árvores, eles temem o que pode haver lá, mas quem não temeria?
Escorrego pela sela do cavalo, puxando as rédeas para frente, levando ele a um grande tronco na beira da estrada e ali o amarrando. Olho para dentro da floresta e sinto uma leve pontada em minha espinha, era medo, medo do que nunca conheci.
Os outros participantes já haviam entrado na densa floresta, meu irmão acabara de chegar largando o seu animal solto, ele olha para mim e dá um leve sorriso.
— Com medo, irmã?
— Jamais! — sabia que aquilo era apenas uma provocação e não iria cair nela — E você irmão, com medo?
— Nunca senti, e não será agora que sentirei... Boa sorte tentando ganhar a coroa, mas ela já é minha... se eu bem me lembro, ela é minha desde o momento que nasci, estou errado?
Aquilo me irritou, mas não transpareci, arrogante e egocêntrico.
Eu e meu irmão nos separamos no momento que entramos por entre a floresta, não queria andar com má companhia. Apenas sua presença em um lugar, consegue tirar toda a paz e a harmonia, toda vez que abre sua boca ele fala alguma coisa desagradavel sai por ela.
É admirável seu poder para estragar tudo, se ele for coroado rei, será pior que meu pai que é um tirano. E sua mãe conseguirá tudo que sempre quis, poder, sussurrando em seu ouvido coisas ruins para fazer com o seu povo e a mim.
O silêncio é agoniante, consigo ouvir os sons dos meus passos por mais leve que eles sejam. Ao vê-la por dentro, não aparenta ser tão horrível como dizem, mas não há nada, não há vida, nenhum animal... nada. Sinto gotas de água pousar em minha pele, olho para cima, mas as árvores tapam parte de todo o céu, por uma pequena brecha vejo o céu escuro... chuva.
Ouço a chuva pesada agredir as folhas das árvores, apenas respingos caem em mim, toda aquela água está escorrendo pelos galhos das árvores, e isso explica todo aquele musgo. A terra molhada está ficando cada vez mais escorregadia.
Não há nada nesta floresta, apenas um vazio, não é possível que algo possa viver aqui, voltarei com apenas um mito que alguém o inventou, e a chance de recuperar minha coroa escorreu por entre meus dedos como a água. Me recostei em um enorme tronco, apoiando a minha cabeça para aliviar o cansaço, o silêncio faz minha mente dissipar qualquer pensamento, por um único momento consegui relaxar.
Galhos estalam, um sinal de vida ou da morte. Olho de soslaio pelo tronco, pedindo para ser algum dos participantes ou o cervo branco, mas para a minha sorte, vejo a morte iminente, uma criatura bizarra, com pernas e braços longos, garras do tamanho de uma adaga e afiadas como agulha, sua face era apenas uma boca larga cheia de dentes. Andava como um coelho em duas patas, procurando sua presa para a dilacerar.
Nunca tinha visto tamanho horror, voltei para a minha posição inicial, minha respiração ficou pesada, sentia as minhas mãos tremerem quando levei a espada. Olhei novamente e ele estava ao meu lado, contive um grito, ele sentiu a minha presença, suor escorreu pela a minha espinha.
O som que ele produziu era aterrorizante, um som grave, lembrava o coaxar de um sapo, mas de forma contínua. Ele se aproximou tentando ouvir, a centímetros do meu rosto, não consegui conter minhas lágrimas, eu estava aterrorizada com a morte ao meu lado.
Uma flecha foi lançada ao alto de minha cabeça, a aberração se levantou gritando, lançando suas garras com força contra a árvore, me jogo no chão no instante que elas se chocam contra o tronco o rasgando. Imaginei a minha cabeça ali naquele instante, me arrastei levantando, corri... corri o mais rápido que conseguia, a fera estava atrás de mim, arrancando com suas garras tudo que havia em sua frente. Nem mesmo a noite do baile se compara a isso, lá o perigo estava ao meu lado, aqui, a morte está me perseguindo.
A lama escorregadia me derrubou, olho para trás e a fera ainda me persegue, pânico, eu estava em pânico e tudo que me vinha à mente era Eryn, imaginei se ele conseguiria partir essa fera como fez com aqueles homens, e desejei que ele estivesse ali, desejei mais que tudo.
Alguém atingiu aquela flecha de proposito, queriam me matar. Estou entre a vida e a morte, preciso pensar em algo para me livrar dessa fera, penso e nada me vem à mente, nada, minha mente está vazia, única coisa que consigo pensar nesse exato momento era o que aconteceria se aquela besta me alcançasse, suas garras abrindo o meu corpo, cortando a minha pele como uma folha de papel, devorando os meus restos mortais
Minhas pernas doíam, os galhos que eu batia pelo caminho lenhou todo o meu braço, a fera corria em tortuosidade, fazendo seus sons altos e graves. Tinha que ser um pesadelo, algo desse tipo não pode ser real, eu escorreguei, um pequeno vacilo, me arrastei tentando levantar, mas não fui rápida o bastante, a besta me alcançou, dando um pulo em minha frente, via apenas as suas patas enormes. Ele coaxou aquele som horrível novamente, tremi fechando os olhos, suas garras arranharam a terra ao me lado, esvaziei minha mente tentando não exitar, me levantei lentamente puxando a espada da minha bainha, a posicionei em minha frente e olhei fixamente para ele.
— Venha! — murmurei.
Não sabia o que estava fazendo, apenas segui um extinto que havia dentro de mim, não irei mais fugir, não posso mais ter medo, apenas eu posso lutar minhas lutas. A besta avançou golpeando o ar com suas enormes garras, esquivei meu corpo, e novamente ele avançou, corri pegando impulso em uma pedra que havia ali e mirei minha lâmina em seu braço, o arrancando, a fera se irritou ainda mais gritando, me atacando.
Defendi seu golpe com a espada, seus enormes dedos estavam entre a lâmina, me empurrando para trás com força, firmei meus pés no chão e empurrei minha espada contra seus dedos, conseguia ver que o estava cortando, gritei com todo o esforço que estava fazendo.
— Eu...sou — empurrei — a... Rainha... de Notolia! — gritei, dilacerando seu braço do dedo anelar ao ombro.
Peguei a adaga acertando o seu peito, golpeando-o várias vezes, entre gritos, de raiva e medo. A fera caiu no chão agonizando, minhas pernas cederam no chão, estou ofegante. Olho para fera em minha frente, se debatendo, até ficar estático como uma pedra.
Me apoio na espada para me erguer, minhas pernas estão fracas, estou coberta por lama, guardo minha espada e a adaga, suja com o líquido preto que saiu da fera. Esse deveria ser o primeiro de muitos outros monstros que havia ali, não consigo acreditar que um cervo branco possa viver aqui.
Não aguentarei se encontrar outra besta dessas, não treinei para isso, meu corpo está a ponto de desmoronar. Entrei nessa floresta faz pouco tempo e parece que estou a um dia, entendo por que os cavaleiros não voltavam, seus esqueletos devem estar jogados por aí, ou seus pedaços. Me pergunto como estão os outros jogadores, se depararam com a mesma coisa que eu.
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