V
Minha pele se arrepia pelo gélido ar que corre por entre as árvores, as folhas se soltam dos galhos e são levadas para longe com o vento. Os pássaros formam ninhos e as flores sucumbiram ao outono.
O casamento de meu irmão está marcado para logo após o Netac, é chegada a hora que irei lutar por meu reino. A grande arena está sendo preparada para os próximos dias, venho treinando todos os dias para estar pronta. Eryn só aparece quando quer, e quando mais preciso desaparece, mas não conto com ele me assistindo. Estarei sozinha, todos estarão voltados para o meu irmão ou para o príncipe de seu respectivo reino, mas não me abalarei por isso.
Estou no lugar mais escondido do jardim, aqui posso treinar sem que meu irmão me veja ou Rowena venha me importunar. Pedi para fazerem uma espada para mim, uma longa e bem afiada, com pedras azuis como a cor do céu, pode haver uma cor mais bonita que o azul? Já estou aqui desde antes do sol nascer, entre golpes e flechadas, não posso sequer cair neste jogo.
— Treinando para arrancar a cabeça de alguém?
Meu corpo tremeu com o susto, e no mesmo momento reconheci aquela voz rouca e sarcástica. Me virei com a espada erguida a procura da voz de Eryn.
— Tente um pouco mais para cima.
Olhei para o auto a procura e lá estava ele em pé no tronco de uma árvore. Como sempre em lugares altos.
— Estava me vigiando?
— Há, não, tenho coisas mais interessantes a fazer. Apenas pensei em dar uma passada para ver como estava.
— Sempre a mesma desculpa, tô achando que está inventando essas desculpas só para poder me ver — ele soltou uma risadinha, aquele sorriso, não sei o por quê me causa essas palpitações em meu peito.
— Está começando a ficar convencida demais...— ele saltou da grande árvore — Na verdade, fiquei curioso...
— Com o quê?
— Como está indo suas pesquisas para saber quem eu sou? — ele se recostou no banco de pedra que havia perto do chafariz.
— Infelizmente não consegui terminar minhas pesquisas, estive ocupada desde o dia que você sumiu e eu tive um desprazer de um jantar em família — voltei a golpear o espantalho.
— Por que está treinando dessa forma engraçada? Não me diga que esse é o seu treinamento sério?
— Olha, por favor não me desconcentra, tenho um jogo para ganhar — peguei o arco e atirei nos alvos que pus ao lado do espantalho.
— Não diga que irá participar desses jogos bobos?
— Claro que irei, minha coroa está em jogo e eu a irei recuperá-la! E já falei para não me desconcentrar. — arqueei meu arco, prendi minha respiração para me ajudar, o centro do alvo estava na mira da minha flecha.
— E como eu a estaria desconcentrando? Apenas estou conversando com você — consegui o ouvir levantar, sinto sua presença se aproximando — por acaso te deixo nervosa? — ele chegou perto de meu ouvido e ronronou.
Aquilo me fez soltar a respiração e perder a mira, fazendo errar meu alvo. Ele riu como se tivesse conseguido o que queria.
— Você é um tolo, sabia? — Me virei para ele.
— Se você diz... mas consigo ouvir seu coração acelerado e sua respiração desregulada quanto mais me aproximo de você — ele pegou em meus cabelos — Você tem lindos cabelos negros — minhas pernas estavam quase cedendo, precisava pegar distância o mais rápido possível.
— Preciso ir, já está tarde — engoli em seco.
— Precisa ir ou está com medo de ficar sozinha comigo?
— Só para Eryn, por favor.
Ele se aproximou, estava tão próximo que nossos rostos estavam frente um ao outro, sentia o seu hálito quente em meu rosto, meu coração estava totalmente descontrolado. Por que estava com essa sensação estranha? O que era essa sensação? Ele levantou meu rosto e me olhou nos olhos, suas pupilas estavam dilatadas.
— Eu consigo sentir suas emoções, Rosalie. Não as controle... não comigo — ele roçou seus lábios nos meus soltando uma pequena risadinha.
Eu o empurrei, o mais forte e longe que eu conseguia.
— Você é um idiota convencido que já está me dando nos nervos
— ele riu, sai o mais rápido de sua presença.
— Você está ferindo os meus sentimentos indo embora assim, Rosalie.
Nunca vi uma pessoa tão inconveniente como ele, convencido, egocêntrico, tantas palavras que ficarias horas falando. Mas sinto que a conversa com ele flui de forma natural, como um rio, sua companhia é agradável por mais irritante que seja às vezes.
Passei o restante do dia na biblioteca, em busca de possíveis respostas sobre Eryn, seus comportamento e modo de falar, e não era de uma pessoa que vivia neste reino.
Os livros quase não possuem histórias sobrenaturais, são apenas livros com relatos de guerra e alguns romances colocados por mim. A falta de informação sobre o desconhecido me intriga, o que Eryn é que não posso saber, talvez a nossa falta de vínculo não o deixe confortável o bastante para me contar sobre si. Talvez se eu me abrir, isso o ajuda, mas não sei se estou disposta a contar meus pesadelos e os meus piores demônios.
Minha vida sempre foi uma mentira mal contada cheia de brechas sem respostas, um completo vazio, não sei quem sou de verdade, não sei se sou uma princesa sem dinastia se humilhando para algo que talvez nunca será meu, ou uma pessoa completamente diferente que definitivamente não pertence deste lugar. A falta de respostas sobre um passado que nunca existiu me deixa angustiada e inclinada a saber mais sobre ele, saber sobre quem minha mãe era, de onde veio, a que reino pertenceu.
A companhia de Eryn era agradável, mas a insegurança me faz abster de qualquer tipo de vínculo que possamos ter, o medo de me apegar tanto a alguém e não saber reagir quando a mesma se for. As únicas pessoas que eu tinha eram minhas amigas, companheiras de infância, lembro-me da sensação do seus abraços de quando me viam, o som de suas risadas e o frescor de seus perfumes florais. Digo como se elas já tivessem partido, mas é como me sinto pois não sei se um dia as verei novamente, mas não quero, não quero colocá-las em meu mundo, nesse lugar ruim, cercadas por pessoas ruins.
Percorro os meus dedos por toda a extensão da grande estante de livro empoeirada, como apenas eu a faço uso não tem o porque se limpá-la. Ao fundo vejo um violino, o pegando retiro toda a poeira por cima dele, lembro-me que usava ele para as aulas de música. Sento-me na grande sacada posicionando o violino em meu ombro e pousando o arco sobre as finas cordas, movimentando o arco saiu a primeira melodia e logo em seguida todas as outras com muita facilidade, normalmente prefiro o som mais grave do violoncelo, as melodias saem mais belas e harmônicas com qualquer ambiente.
A lua brilhava como nunca, tão grande e branca, completamente fascinante, meu corpo e mente era levado com a melodia, meus dedos dançavam sobres as cordas a transformando em notas. Era como mágica, meu corpo começou a se mover com delicados passos que meus pés davam, se movimentando com ar que percorria da grande janela formando uma dança, nos unificamos em um único movimento, o ar dançava comigo.
Voltei para meu quarto dançando os acordes que toquei, ainda estavam vividos em minha memória, o que vinha em minha mente era como seria dançar aquela melodia com Eryn, suas mãos dispostas sobre minha cintura, seu rosto perto do meu, seu olhar fixado em mim. Me pergunto porque essa ideia tola veio em minha mente, tenho muitas coisas a pensar do que dançar por aí.
Mas em minha memória ainda estava ele, tudo que ocorreu pela manhã, seu toque em meu cabelo, seu elogio, seu rosto tão próximo ao meu, conseguia sentir seu hálito quente tocar meus lábios, a vontade impulsiva de encostar os meus nos deles. Isso é tão confuso para mim, nunca havia sentido algo desta maneira, nesta intensidade, sinto que as coisas estão indo rápidas demais, não está fluindo como um rio e sim como um vento violento que percorre por entre as árvores na tempestade. Isso é tão confuso, esse sentimento que está dentro de mim, não consigo decifrá-lo.
Adormeci com um turbilhão de pensamentos que me rodeavam, dúvidas, sentimentos, confusão... Era tanta coisa que não achei que conseguiria pegar no sono.
O cheiro dos pequenos Ramos de lavanda pelo grande campo esverdeado inebria meu nariz, o lilás caindo perfeitamente com a tonalidade da grama fazendo um belo contraste na paisagem, o frescor do vento que faz meu cabelo chicotear o rosto.
Fecho os meus olhos aspirando e expirando todo aquele ar puro, um calmante para minha alma, se existe um paraíso, aquele seria o meu. Sinto um toque quente e carinhoso em meu ombro, imediatamente olho para ver de quem seria aquele toque e o vejo, Eryn, com seu cabelo solto e com algumas tranças que seguram parte do cabelo, revelando sua orelhas, essas que são longas e pontudas, um rosto perfeitamente simétrico e lindos olhos verde água. Ele está sorrindo para mim, segurando meu rosto com as duas mãos, ele leva se aproxima lentamente do meu, tocando seus lábios com delicadeza nos meus, um beijo doce e gentil.
Por um único instante o céu se tornou em um carmesim, com nuvens carregadas e tempestuosas, todo o meu paraíso se tornou um cenário pós guerra. Havia muitos corpos deitados pela grama que nem sei dizer se um dia teve uma coloração além do vermelho do sangue que ali foi derramado, em meu braços estavam Eryn, mas não era meu Eryn, ele estava pálido e com a pele gélida, não conseguir sentir sua respiração, não se movia, estava em um estado pétreo. Não conseguia ver desta maneira, a angústia crescerá em meu peito, em meu rosto escorriam lágrimas e uma tristeza profunda se possuía de meu peito, uma dor inigualável. Nunca tive a infelicidade de saber a dor que era a perda.
— Eryn! — gritei, soltando toda a minha dor, meu sofrimento. O meu grito percorreu por todo o meu quarto fazendo ecoar. Era um sonho... um pesadelo, a personificação da dor, meu rosto estava molhado pelas lágrimas que ali escorriam. Minhas mãos não paravam de tremer, a respiração ofegante.
Levantei e bebi um grande gole da água que eu deixava todas as noites em minha penteadeira, olhei pela janela para observar o céu e ele estava tão azul quanto os outros dias. Olhando para ele eu tinha certeza de que tudo não passou de um terrível pesadelo, conseguia sentir que ele estava bem, eu tinha certeza que sim. Talvez possa estar me enganando, mas acreditarei na mentira até conseguir o ver para comprovar.
Mas de todo aquele cenário de caos eu ainda conseguia me lembrar da parte boa, lembro das orelhas de Eryn, longas e pontudas, excepcionalmente fascinantes. Não que eu acha que em apenas um sonho descobriria alguma verdade, mas usarei isso como uma pista, uma possibilidade, por mais mínima que ela fosse.
Todos os meus dias tinha sido do castelo para o jardim e do jardim para o castelo, não sai com meu cavalo em nenhum momento, talvez pelo medo que ainda me assombrava, mas também pela falta de tempo. Sinto falta do vento em meu rosto, aquela sensação de liberdade, um prazer inigualável.
Comecei a receber cartas das minhas amigas falando que estariam aqui para o Netac e ficaram muito felizes por saber que irei atrás da minha coroa, Crityna está mais animada para ver a cara da rainha quando eu ganhar, ela realmente acredita nisso. Já Amber como sempre mais cautelosa, tem inseguranças sobre os jogos mas estará me apoiando.
Hoje darei uma pausa em meus treinos para descansar, por mais ansiosa que estava para o Netac, precisava estar disposta. O castelo estava em um terrível silêncio, Rowena e Liandra decidiram assistir meu irmão nos treinos, meu pai anda confinado em seu escritório. Nunca me senti tão sozinha como agora, deixada de lado, não entendo por que meu pai escolheu meu irmão para o trono em vez de mim, não consigo acreditar que é apenas por eu ser uma mulher. Algo o incomoda e isso me deixa confusa pois não consigo saber o que é. Tenho tantas perguntas mas nenhuma delas foi respondida devidamente.
Estou passando em frente à porta de seu escritório, olho a maçaneta de forma fixa, tentada a abri-la, essa seria a melhor hora para saber pelo menos migalhas sobre minha mãe. Longe de minha madrasta ele conseguia ser uma versão um pouquinho mais agradável.
Decido bater à porta e aguardar para que eu possa entrar.
— Entre! — falou ele.
Abria a porta devagar, olhando de canto, tentando ser o mais sútil possível, não sabia como estava seu humor e agravá-lo não seria agradável.
— Posso entrar? — perguntei tão baixo que não soube se ele conseguiu ouvir.
— Claro. O que deseja? — falou fazendo algumas anotações em algumas páginas.
Cheguei para perto, com passos sutis.
— Queria apenas lhe fazer algumas perguntas... se for possível — ainda não as tinha formulado, mas tinha uma que estava pronta a muito tempo.
— Prossiga — continuou encarando os papéis em sua frente.
— Sei que não gosta de... tocar neste assunto em específico. Mas preciso de respostas e à medida que o tempo passa mais angustiada e curiosa fico — ele continuou encarando os papéis, não fazendo qualquer tipo de contato com os olhos desde o momento que entrei na sala.
Reuni coragem e enchi meu peito com ar e perguntei.
— Poderia me falar mais sobre minha mãe? Qualquer coisa, qualquer tipo de migalha de informações é tudo que peço.
Houve um silêncio, ele não se moveu, apenas fechou os olhos. Soltando a pena em sua mão, encostou a cabeça em sua cadeira. O vi fechando a mão levemente em sinal de dor, aquilo realmente o machucava?
— Por que isso logo agora, Rosalie? — ele voltou para sua posição anterior tentando disfarçar, pegou sua pena, mergulhou em sua tinta e voltou a escrever.
— Pois já se passaram anos e eu não sei basicamente nada sobre mim mesma. É como se eu vivesse em uma mentira — minha voz começou a falhar.
— Tudo que já lhe contei não foi o bastante? Não percebe que esse assunto me causa dor?
— Não só em você papai, em mim também, eu sou filha dela, sua filha. Por que me esconde isso? Não vê que também sofro?
— Prefiro não falar, seria difícil uma única vez me obedecer?
— Mas eu que lhe pergunto, o que havia de errado com o passado que você não consegue falar para mim? Eu mereço saber!
— Por que eu simplesmente não consigo a olhar nos olhos...
— Por quê? Me diga — estava suplicando.
— Pois você é idêntica a ela, tirando os cabelos negros e a pele pálida. Ela possuía lindos cabelos ruivos, uma pele levemente rosada e uma risada tão doce. Olhar para você é como se eu a visse só que em uma versão diferente. Me perdoe, Rosalie, mas não consigo... pode passar anos mas sempre será como dias.
Era a primeira vez que ele se abria desta forma, por mais dolorosa que fosse suas palavras, e eu consigo entender pois escolheu meu irmão. Mas nada daquilo era o suficiente, precisava saber mais, isso só me fazia ficar mais curiosa.
— Uma única e última pergunta... em algum momento de toda a minha vida... você conseguiu me amar? Pois tudo que recebi foi o contrário, eu mereço mesmo todo esse sofrimento? Toda essa mentira? Todos esses segredos que me causam angústia?
— Eu sempre amei você Rosalie, desde antes de seu nascimento... — ele soltou a pena novamente e me olhou nos olhos.
— Não, nunca amou, sempre me tratou de forma diferente, você sempre amou mais ao meu irmão que a mim. Você não suporta me olhar nos olhos por eu me parecer tanto com a minha mãe. Sempre fiz de tudo para te chamar atenção, aprendi a lutar de espada melhor que meu irmão, aprendi a pintar, a tocar, a cantar, a dançar, tentei ser melhor que ele até mesmo nos estudos, e isso tudo só para ter um pouco que seja do seu afeto, eu finjo, finjo estar feliz o tempo todo, ser perfeita, mas não aguento mais! — eu estava suplicando, minha voz estava rouca, estou sentindo um nó em minha garganta, mas pela primeira vez me sinto aliviada por colocar tudo o que eu sinto por fora — Por que mente para mim, papai? O que tenho que fazer para me amar?
— O que digo é sincero, sei que não fui o melhor pai...
— Não, não foi e nunca foi — o interrompi.
Ele respirou fundo.
— Me perdoe Rosalie, por mais difícil que seja é tudo que te peço. Acordo todos os dias com uma sensação estranha em meu peito e não sei o que é, mas antes de qualquer coisa te peço. Me perdoe?
Parecia sincero, e essa seriam as primeiras palavras mais sinceras que ele me dissera em todos esses anos. Meu coração queria e deseja o perdoar, mas meu orgulho impedia de fazer o mesmo, meu maldito orgulho.
— Eu não sei... sinceramente não sei — levantei-me da cadeira, — Irei pensar e lhe falarei.
— Pense, mas peço que não demore, por favor — ele sorriu para mim, talvez um tentativa por mais imperfeita.
Concordei com a cabeça e tentei sorrir, por mais difícil que fosse aquilo.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro