Capítulo 5 - O Julgamento de Leila
"Se o deus protetor do Império do Sol está morto, por que sua estrela ainda brilha no céu? Não faz sentido... talvez o que nos contaram seja mais uma mentira, mais uma artimanha para manter a paz em um império que já não sabe o que é verdade."
Aaron entreabriu os olhos, ajustando-se à luz suave do jardim. Logo, um brilho metálico cortando o céu, entre as copas das árvores, capturou sua atenção. Seu olhar encontrou o de Kaylus, que se equilibrava em pé sobre uma espada voadora. O contato entre os dois durou apenas um instante, mas foi o suficiente para que o príncipe mais velho inclinasse o corpo, direcionando a lâmina em uma descida lenta até os dois.
Aaron sentiu um impulso de levantar-se, mas se conteve, lembrando-se de que ainda estava meditando. Com as mãos sobrepostas no colo, lançou um olhar discreto ao irmão ao seu lado e sussurrou:
— Ethan, olha... é o Kaylus.
Ethan abriu os olhos, como quem emerge lentamente de um sonho profundo. Piscou algumas vezes, com uma expressão levemente confusa, até que seu olhar se fixou em Kaylus, que, com um toque suave, dissipava a lâmina brilhante antes de esfregar os pés na grama.
— Estavam meditando? — Kaylus comentou, com um meio sorriso, passando a mão pelos cabelos escuros e desordenados enquanto se aproximava dos irmãos. — Parece que estão levando isso a sério.
Ethan se levantou, sacudindo a terra das roupas com um gesto impaciente. Não queria soar como se estivesse insatisfeito, mas a frustração transpareceu em sua voz, mais forte do que pretendia.
— Meditar? Não, não estávamos meditando, Kaylus. Estávamos brincando de cultivar luzes. — Ele forçou as palavras, e a palavra “brincando” saiu mais amarga do que imaginava. — Lembra? Você mesmo falou que não havia problema em colocar as ideias malucas do Aaron em prática.
Kaylus sorriu de forma casual, achando divertido o receio de Ethan que sempre seguia o gêmeo, mesmo quando não concordava com ele.
— Você está pensando demais, garoto. Aaron simplesmente nomeou a meditação. Bom, eu não vim aqui para conversar sobre isso. Leila Kaylon se recusa a confessar. Mesmo com as provas, ela continua negando. — Kaylus disse, assumindo uma expressão de seriedade.
— Então... o que vocês vão fazer agora? — Aaron perguntou, apertando a mão em punho, esforçando-se para não deixar transparecer o desgosto em sua face.
— A imperatriz ordenou que o alquimista imperial preparasse pílulas da Verdade. Hoje, veremos o resultado — Kaylus respondeu, seu tom continha uma sombra de desaprovação.
— Por que está nos contando isso? Não é uma informação confidencial? — Ethan perguntou, analisando o irmão mais velho.
— Bom, sua mãe quer que vocês assistam ao julgamento. Ela acredita que vocês devem ver o resultado de um trabalho bem feito. — Kaylus lançou um olhar significativo a Aaron. — Mas não se preocupem, vocês não verão nada inadequado.
Aaron hesitou, sentindo o peito comprimir devido a sensação de que havia algo a mais nas palavras de Kaylus. Por que a imperatriz faria questão deles assistissem ao julgamento? Será que Darius estava envolvido em sua decisão?
— Quando é o julgamento? — Aaron perguntou, tentando esconder o desconforto enquanto se levantava, ainda se ajustando à situação.
— Daqui a meia hora. É tempo suficiente para os alquimistas chegarem. O uso de qualquer artefato mágico é proibido nas redondezas do Palácio Hibisco, então é melhor nos apressarmos. Vamos ter que caminhar um bom trecho. — Kaylus respondeu.
Ethan olhou para as próprias roupas e torceu o nariz, visivelmente desconfortável com sua aparência desleixada.
— Meia hora? Isso significa que estamos atrasados. Podemos pelo menos trocar de roupas? Não estamos exatamente apresentáveis — ele disse, apontando para suas calças folgadas, com a barra desleixada na altura dos tornozelos, e o casaco desabotoado, que deixava transparecer uma falta de cuidado inesperada para um príncipe.
Kaylus os avaliou por um instante, cruzando os braços enquanto ponderava. Após um breve suspiro resignado, respondeu:
— Vocês estão bem assim. A presença dos dois é mais importante que o protocolo de vestimenta. O que importa é o que vocês têm a dizer, não como estão vestidos.
Aaron abaixou o olhar para as roupas simples que usava, claramente confortáveis, mas pouco refinadas. Estavam longe do que seria considerado apropriado em um julgamento real. Ele lançou um olhar furtivo para Kaylus, cujas vestes escuras e bem alinhadas refletiam o status de um príncipe, e um leve desconforto se alojou em seu peito.
— Eu não vou a lugar algum desse jeito, a culpa é sua por avisar em cima da hora! — Aaron protestou, sua voz carregada de insatisfação.
Kaylus soltou um riso curto, desprovido de humor, como se tivesse esperado por essa reação.
— Eu também fui pego de surpresa. Quem imaginaria que a imperatriz chamaria vocês para um julgamento sem aviso prévio? — Ele balançou a cabeça, como se ainda tentasse compreender a
situação absurda. Sua expressão, porém, rapidamente se tornou séria.
Ethan franziu o cenho, percebendo a gravidade nas palavras do irmão. Aaron, por sua vez, apertou os punhos, irritado e apreensivo ao mesmo tempo.
— Então, o que devemos fazer? — Ethan questionou, tentando esconder sua crescente preocupação.
— Preparem-se, mas sejam rápidos. Não podemos deixar a mãe de vocês esperando — Kaylus concluiu, lançando-lhes um olhar firme antes de dar-lhes as costas.
[...]
Os passos dos gêmeos ecoavam pelo corredor em uníssono, enquanto a criada os guiava à frente. A tensão pairava densa, quase tangível, refletindo a ansiedade mútua. Ambos compreendiam o que aquela audiência significava. Contudo, ainda restava a pergunta não respondida: por que Darius, o irmão que raramente demonstrava qualquer apreço por eles, os ajudou a conseguir esse convite? Ele poderia pedir ajuda a qualquer um de seus aliados, mas não o fez.
— Não consigo me livrar da sensação de que ela é inocente — Ethan murmurou, lutando contra o turbilhão interno. A incerteza tingia sua voz, que ecoava baixa pelo corredor.
— Vamos descobrir isso em breve. Darius conseguiu que estivéssemos presentes, e agora cabe a nós vermos a verdade com nossos próprios olhos — Aaron respondeu, tentando soar firme, embora estivesse intrigado com as intenções do príncipe herdeiro. Ele nunca se preocupava com eles, e ainda assim… ali estavam, prestes a testemunhar algo importante.
As portas do escritório de Kaylus estavam fechadas diante deles. A criada fez uma pausa, ajustou a postura e bateu suavemente.
— Alteza, os príncipes estão prontos.
— Entrem — a resposta veio abafada e carregada de autoridade.
No interior, Kaylus estava encostado em sua escrivaninha, cercado por pilhas de documentos e livros. Embora parecesse exausto, seu olhar ainda carregava a autoridade de quem comandava cada detalhe da capital de Marguentano. No centro do cômodo, dois alquimistas encapuzados estavam concentrados no círculo mágico que desenhavam. Suas mãos criavam símbolos complexos que pulsavam com energia.
Para Aaron, os círculos mágicos de teletransporte tinham uma eficiência prática, embora apresentassem riscos. Ele sabia bem sobre os efeitos colaterais — na melhor das hipóteses, uma leve tontura; nos piores casos, náuseas ou vômitos. Ainda assim, não nutria grande apreço pelo recurso tecnológico que o Imperador investira, algo que antes era reservado para uma elite. O progresso sempre vinha com um preço, e o príncipe sabia disso melhor do que ninguém.
Os anéis de teletransporte eram uma alternativa mais segura, mas limitados. Conseguir transportar mais de uma pessoa ao mesmo tempo era um desafio cujas consequências eram melhores se não testadas. Era irônico que o império que cultivava tanto poder bélico e controlava reinos flutuantes ainda enfrentasse limitações em algo tão essencial.
Aaron suspirou baixinho, quase resignado, enquanto observava o encapuzado se levantar e anunciar com voz firme: — Está feito.
Kaylus respondeu com um breve aceno, afastando-se da mesa com naturalidade antes de caminhar em direção ao centro do círculo, que pulsava com um brilho esverdeado, como uma respiração viva. Os gêmeos o seguiram, mas seus passos vacilavam, denunciando o receio que compartilhavam em silêncio.
Aaron notou que as mãos de Ethan tremiam, apertadas em punhos ao lado do corpo. Sem dizer nada, ele estendeu a mão e a pousou sobre a do gêmeo, apertando-a suavemente, como um gesto silencioso de apoio. Ele lançou um rápido olhar ao irmão, uma tentativa sutil de transmitir confiança. Ethan, pego de surpresa pelo gesto, respirou fundo, tentando se firmar. Por fim, deu um breve aceno com a cabeça, como se o toque de Aaron tivesse acendido nele um fio de coragem para seguir em frente.
Assim que os garotos entraram no arranjo mágico, os alquimistas, com mantos longos de tecido pesado, adornados com detalhes bordados em fios de ouro, caminharam até o centro. Braceletes intricados com pedras preciosas envolviam seus pulsos, cada um gravado com arranjos mágicos em miniatura que brilhavam suavemente sob a luz do círculo.
Os alquimistas se agacharam, estendendo as mãos delicadamente sobre a superfície fria, tocando o arranjo mágico que formava um padrão de espirais e símbolos alquímicos. Seus lábios se moveram em uníssono, entoando um cântico que parecia antigo, suas vozes harmonizavam-se em uma melodia que ecoava pelas paredes.
Em questão de minutos, uma transformação sutil, mas poderosa, ocorreu. A cor do arranjo mágico intensificou-se, adquirindo uma vivacidade que parecia pulsar com energia. Pequenas faíscas de luz começaram a dançar ao redor das mãos dos alquimistas, tecendo fios de magia no ar e Aaron sentiu o mundo girar. Ele estava sendo arrastado para outro lugar em questão de segundos, e quando deu por si, estavam todos em um pátio vasto e vazio.
— Ugh, eu odeio esses círculos! — Ethan se queixou, tentando esfregar o peito, enjoado.
Aaron observou o tom esverdeado que dominava seu rosto. Era um efeito colateral previsível. Ele estendeu a mão e puxou de leve o tecido do manto dele, em um gesto discreto, mas que deixava transparecer sua preocupação.
— Você vai ficar bem, Ethan? — perguntou, a preocupação escapou de forma sutil em sua voz.
Ethan, ainda lutando contra o enjoo, assentiu com um sorriso fraco, forçando uma expressão confiante.
— Isso sempre acontece, mas logo passa — ele respondeu, tentando soar despreocupado, mesmo que o tom vacilante traísse seu estado.
Aaron soltou o manto do irmão e observou enquanto ele aceitava o frasco oferecido por Kaylus. Ethan o bebeu em goles lentos, com o rosto ainda contorcido, mas, aos poucos, sua cor retornava ao normal.
Após muita reflexão, Aaron chegou a algumas hipóteses:
A primeira possibilidade era a de que a viagem no tempo — resultado de seu renascimento — poderia ter fragmentado sua alma, isso parecia plausível à primeira vista. Mas havia um detalhe gritante. Se Ethan era realmente uma extensão dele, por que sua personalidade era tão... diferente? Como poderia uma pessoa tão bem-intencionada ter nascido de alguém tão amargo quanto Aaron? Isso não fazia sentido.
A segunda teoria, mais sombria, se infiltrou na mente do príncipe com uma intensidade desconcertante. E se Ethan não fosse, de fato, quem ele pensava ser? E se o corpo dele estivesse sendo habitado por algo... alguém, vindo de fora?
Rowan Eckart — a divindade reverenciada do continente lunar — era conhecido por suas artimanhas astutas. Não seria a primeira vez que infiltrava seus súditos em territórios inimigos sem que ninguém percebesse. Seria possível que tivesse, de alguma forma, manipulado o corpo de Ethan e implantado ali uma alma estranha, uma essência de outro lugar?
A ideia de que aquele garoto, que Aaron começava a enxergar como um irmão — sua extensão, seu reflexo —, pudesse ser, na verdade, um fantoche, uma peça manipulada por um inimigo, aterrorizava-o. E se fosse verdade? Quem, afinal, era o Ethan que agora estava diante dele? Um espelho distorcido do que deveria ser? Um inimigo oculto, aguardando o momento exato para revelar suas verdadeiras intenções?
Aaron apertou os lábios, sentindo uma leve dor de cabeça começar a se formar, como se sua mente estivesse tentando se proteger de mais uma reflexão angustiante. Ele não queria pensar, não queria se perder em suas próprias teorias sobre o garoto, mas a imagem do irmão continuava a persegui-lo, como uma sombra indomável.
E se…?
A dúvida se insinuou novamente, e Aaron sentiu algo gelado se arrastar pela garganta, como um presságio amargo. A ideia de que Ethan pudesse ser alguém completamente diferente — um inimigo, um espião enviado por Rowan Eckart — parecia, a cada segundo, mais plausível. Mas isso não explicava o vínculo que ele sentia com aquele garoto, um vínculo que, embora vago e distorcido, se mantinha firme, quase imutável.
Enquanto o grupo caminhava pelo corredor largo, as janelas de vidro ao longo das paredes permitiam que a luz suave do fim de tarde filtrasse para o interior, iluminando o caminho. Arbustos meticulosamente podados formavam labirintos naturais, criando passagens sinuosas entre canteiros exuberantes, e a grama verdejante era salpicada com flores de cores vibrantes. Mas o que mais capturava sua atenção eram os pequenos coelhos com asas translúcidas como as de borboletas, batendo rapidamente enquanto saltavam e brincavam na grama verde.
Aaron respirou fundo, sentindo o cheiro doce da grama e das flores que pairava no ar, mas isso não era suficiente para acalmar os pensamentos tumultuados que o consumiam.
Por que não conseguia se lembrar de algo tão simples, mas tão crucial? Algo tão íntimo quanto a memória de um irmão gêmeo? Se realmente tivesse tido um irmão, isso não deveria ter sido o suficiente para fixar aquele rosto e aquelas memórias em sua mente?
E então, uma última hipótese lhe ocorreu. Frágil, fugaz e praticamente impossível. Mas uma teoria que se recusava a ser silenciada. Um mundo paralelo. Uma realidade onde os fios do destino se entrelaçavam de maneira diferente, onde a sua vida tomava rumos completamente alterados.
Uma sensação de vertigem tomou conta de seu corpo, como se ele estivesse à beira de um abismo. Mas logo o príncipe sorriu amargamente. Era impossível, pensou. Os poucos Oficiais Celestiais ainda vivos jamais seriam capazes de algo assim. Isso só poderia ser feito por um poder absoluto, um poder que ele sabia estar além de qualquer falso imortal. E esse poder... era o do deus do Sol. Mas Kallisto estava morto. Ele o sabia, todos sabiam.
“Aquela estrela brilhante no céu diz o contrário” uma voz zombeteira sussurrou em sua mente.
Ele congelou. O impacto daquelas palavras foi como um soco. Aaron se lembrou de um conto, algo que ouvira há muito tempo. A história falava sobre as estrelas que estavam conectadas aos Oficiais Celestiais, sendo manifestações de suas existências e destinos. Cada imortal possuía uma estrela única, que surgia no céu quando eles alcançavam o auge de seu poder e influência. A estrela representava a vida deles, seus feitos, sua essência. Quando morriam, suas estrelas desapareciam, tornando-se fragmentos perdidos no céu. Era uma metáfora perfeita para eles, e uma lei universal: a estrela de um cultivador imortal nunca poderia brilhar depois de sua morte.
Aquela estrela parecia desafiar sua própria lógica. Devia haver alguma base para esse conto, não? Aaron sentiu a sensação de algo caindo dentro de si, uma tempestade interna que parecia querer engoli-lo. A estrela ainda estava lá, como se o universo estivesse zombando de sua dúvida.
Foi então que ele sentiu uma leve pressão no ombro. Um toque suave, mas firme, que o fez pular. O coração disparou dentro de seu peito. Olhou para o lado, com os olhos arregalados, tentando recompor a sanidade que parecia se dissipar. Ethan estava ali, com aquele sorriso tranquilo de sempre, como se tudo estivesse sob controle, como se nada do que estava acontecendo fosse importante.
“Você está bem?” Ethan perguntou com um tom tão simples, tão... descomplicado. O sorriso em seus lábios era suave, sem pressa. Não havia pressa em suas palavras, não havia urgência em seu olhar. Aaron engoliu em seco, sentindo a tensão começar a desaparecer como uma neblina ao amanhecer. Mas a dúvida ainda estava ali, quente, na ponta da língua. Ele olhou para Ethan, tentava buscar algo nos seus olhos, mas o sorriso o fez esquecer o peso das suas próprias questões.
— Estou bem — Aaron respondeu com a voz mais fria do que gostaria. Então completou — Só... não estou preparado para ver o que vem a seguir.
O príncipe certamente não possuía uma explicação definitiva, mas algo dentro dele se agitou quando pensou em Ethan como seu irmão. Havia uma conexão ali, algo que Aaron não conseguia compreender completamente, mas que de alguma forma preenchia o vazio que ele sentia. Ele queria que essa fraternidade fosse genuína, mais do que qualquer coisa, mais do que qualquer certeza que o mundo pudesse oferecer.
Após meia hora de caminhada, o céu nublado cedeu à suavidade dourada do fim de tarde, com o sol se despedindo timidamente atrás de nuvens que se dissipavam como fumaça. O ar parecia mais denso, carregado com o peso da espera, e Aaron sentia a fadiga começando a tomar conta de seu corpo. Mesmo assim, ele manteve os olhos atentos, absorvendo cada detalhe ao redor.
Ao cruzar o arco principal, a visão do pátio se revelou em toda sua grandiosidade. O espaço se abria em uma vasta arena, com um chão de mármore dourado que capturava os últimos raios de sol, devolvendo-os em lampejos cegantes. Degraus largos e polidos levavam ao trono elevado da imperatriz, ladeado por colunas que sustentavam o andar superior, onde nobres e conselheiros ocupavam seus camarotes. Lá de cima, eles observavam, como predadores à espreita de uma caça, enquanto seus murmúrios abafados ricocheteavam nas paredes de pedra branca, dando a impressão de que o próprio espaço sussurrava.
Aaron contou os guardas enquanto atravessava a arena, rumo aos degraus que levavam ao andar superior. Cinquenta, talvez mais. Espalhados de forma simétrica, suas armaduras reluziam sob os núcleos de luz presos nas paredes — esferas mágicas que flutuavam dentro de nichos dourados, projetando sombras vacilantes que dançavam conforme os corpos se moviam. Acima deles, no segundo andar, bandeiras do Palácio Hibisco balançavam suavemente, exibindo o brasão da imperatriz bordado em carmesim e dourado, seus hibiscos estilizados pareciam ganhar vida com o vento.
Ministros e conselheiros, adornados com trajes opulentos, moviam-se como abutres ao redor da arena. Com passos lentos e calculados, rostos escondidos por máscaras de polidez, e os olhos... Ah, seus olhos entregavam tudo. Ali, no brilho frio de cada olhar, residia o veneno das palavras que sussurravam entre dentes, tramando e conspirando com a naturalidade de quem respirava o ar do poder.
Enojado, Aaron voltou seu olhar para o trono. A imperatriz repousava ali com uma majestade inabalável, como se o mundo girasse sob sua vontade. Ela vestia um traje escarlate, de um vermelho tão profundo que parecia pulsar sob a luz das esferas mágicas. O corte elegante deixava seus ombros nus, a pele pálida contrastava com o dourado reluzente de um colar ornamentado por uma gema solar. A pedra cintilava a cada movimento, refletindo nos olhos dourados da imperatriz — olhos frios e penetrantes, que pareciam atravessar carne e espírito com um único olhar.
Porém, ao encontrar os olhos de Aaron, a dureza de seu olhar se suavizou. Sua expressão, antes impenetrável, agora carregava uma pitada de algo difícil de ler — talvez preocupação, talvez um afeto inesperado.
Por um momento, o garoto quase desviou o rosto, sentindo-se estranho diante daquele olhar, mas uma inquietação maior o tomou. Foi quando percebeu que não eram apenas os olhos da imperatriz que o acompanhavam. Virando levemente a cabeça, seus próprios olhos encontraram os de Helena. A fera mágica da imperatriz.
Ela estava parada atrás do trono, uma mulher que parecia moldada pelo próprio gelo eterno dos picos de gelo e neve do Reino de Inoaden. Seus cabelos, presos em uma trança elaborada, eram como fios de prata, tão claros que o brilho do sol parecia transformá-los em uma aura de luz espectral. Seus olhos, no entanto, eram o que mais inquietavam: um púrpura intenso que o encarava com uma frieza que o fazia querer olhar para outro lugar, mas que o prendia como um animal encurralado.
Havia um chifre vermelho surgindo de sua testa, brilhante e polido, curvando-se como a ponta de uma lança demoníaca. Sua armadura parecia ter sido esculpida diretamente do osso de alguma criatura lendária, branca e sólida como marfim. Mesmo imóvel, ela exalava uma força brutal, como se pudesse se lançar à ação a qualquer instante. Aaron conhecia bem essa força. Ele a sentira antes, quando estava tomado pela loucura.
— Aaron, para onde você está olhando? Não se distraia, ou vai acabar tropeçando! E você, Ethan? Não se afaste! Fiquem perto, segurem as mãos para não se perderem! — A voz de Kaylus interrompeu seus pensamentos. Ele pegou a mão de Ethan com firmeza, que, ansioso, mantinha seus olhos em Grace.
O mármore dourado do pátio se estendia à medida que os garotos davam os últimos passos nas escadas, que se curvavam elegantemente até a construção superior, onde a elite do império se acomodava, em silêncio e com expressões impassíveis.
O ambiente no andar superior, iluminado apenas pelas mesmas esferas mágicas que banhavam a arena abaixo, era imponente, mas sem acolhimento. Ali, os nobres se reuniam em seus assentos, mas o olhar de cada um estava fixo naquilo que acontecia lá embaixo, na arena, onde os carrascos estavam já posicionados, com seus machados reluzindo sob a luz tênue das esferas.
Uma hora se passou, e a tensão já era visível. Os olhos dos nobres se cruzavam em silêncio, furtivos, suas expressões demonstravam cada vez mais impaciência. As conversas baixas não eram mais murmúrios discretos, mas sim resmungos impacientes, carregados de frustração e desaprovação. O julgamento, que todos aguardavam com tanta ansiedade, não havia começado, e o peso da espera começava a se tornar insuportável.
A sensação de desconforto era palpável. Como se todos ali estivessem tentando entender o que estava acontecendo, tentando dar sentido ao atraso que estava se tornando insuportável. Um nobre de cabelos grisalhos, com uma capa azul lazuli que se arrastava pesadamente pelo chão de mármore, foi o primeiro a romper o silêncio.
— O que está acontecendo? Este julgamento não deveria ter começado há uma hora? — Sua voz grave soou, carregada de frustração. Sua expressão estava marcada pela impaciência, e sua postura rígida refletia o desconforto de um homem acostumado a ser servido rapidamente, a não ter que esperar por nada. Outros seguiram, suas queixas baixas, mas visíveis nas expressões contorcidas de desagrado.
Aaron sentiu a tensão se acumular no ar ao redor deles. Ele olhou para Kaylus, que permanecia rígido ao seu lado, com os olhos fixos na arena abaixo. O irmão não se mexia, mas havia algo em sua postura, uma rigidez, como se ele sentisse a mesma pressão que Aaron.
E então, o que parecia ser uma eternidade de espera foi quebrado de forma abrupta. O som de passos apressados ecoou em um corredor, e um guarda — seu uniforme bordado com padrões diferentes dos usados pelos guardas já presentes — invadiu a arena em uma corrida desenfreada. Seu rosto estava pálido, seus olhos arregalados de terror, e suas mãos, sujas de sangue, tremiam visivelmente.
— ESTÃO MORTOS! OS PRISIONEIROS QUE FORAM DETIDOS ESTÃO MORTOS! — O grito rasgou o ar, gelando o sangue de todos os presentes. Era como se o tempo tivesse parado por um momento, e o som daquele grito se espalhasse pelas paredes de pedra, reverberando em cada canto.
Aaron, instintivamente, apertou o braço de Ethan, sentindo o peso do medo começar a tomar conta de seu corpo. Seu coração disparou, e um pressentimento sombrio se apoderou de sua mente. O alarde que se espalhou pelo salão, como um trovão distante, reverberou nos corredores, tomando conta de todos os presentes. As vozes, agora ansiosas e confusas, começaram a se elevar em um tumulto, tentando entender o que estava acontecendo.
— Kay, o que isso significa? — A voz de Aaron saiu nervosa, a tensão evidente em cada palavra. Seus olhos buscavam respostas, tentando encontrar alguma explicação no rosto do irmão. Algo estava errado, e o pressentimento que o assombrava só se intensificava.
Kaylus os encarou com os olhos sombrios e concentrados. Seu maxilar estava tenso, e uma ruga profunda de preocupação marcava sua testa. Ele olhava alternadamente para os gêmeos, tentando manter a compostura, mas o brilho inquieto em seus olhos não podia ser ignorado. Era claro que ele sentia o peso da situação, ainda que tentasse esconder isso de seus irmãos.
— Escutem, vocês dois… fiquem calmos. Está tudo bem, por enquanto. Ainda não sabemos exatamente o que está acontecendo. — Sua voz era baixa, mas carregada de urgência e preocupação. — Observem tudo e fiquem atentos. Eu estou aqui e não vou deixar nada acontecer com nenhum de vocês.
As palavras de Kaylus, embora tranquilizadoras, não foram suficientes para dissipar a crescente sensação de perigo no ar. Enquanto o príncipe falava, o guarda que havia gritado estava agora pálido, com o rosto banhado de suor, e seus passos apressados ecoaram pela arena até o centro. Os olhos de todos se voltaram para Grace, que observava a cena de sua posição elevada, sentada em um trono luxuoso no alto de alguns degraus. Sua postura era impecável, mas o olhar carregado de incredulidade deixava clara sua fúria. A presença da imperatriz dominava o ambiente, e a tensão ao redor era tremenda.
— Como assim "mortos"? — A palavra saiu com desprezo, carregada de uma frieza gélida. Ela se inclinou levemente para frente, e o som da madeira rangendo sob a pressão das suas mãos parecia um aviso. Seus olhos ardiam com uma raiva congelada, uma mistura de desprezo profundo e incredulidade. — Eu mandei verificar mais cedo, e eles ainda estavam vivos. Portanto, explique-se imediatamente, ou eu mesma verei até onde sua garganta aguenta gritar.
O guarda, tremendo de terror, tentou falar, mas as palavras falharam. A cada respiração, ele se tornava mais pálido, e sua voz, quando finalmente veio, foi uma mistura de medo e pânico, cortada por silêncios entrecortados.
— M-minha imperatriz... os prisioneiros... estão mortos. Quando chegamos à cela... já era tarde. — O guarda engasgou, sua respiração pesada e irregular, como se o simples fato de falar fosse um esforço sobre-humano. Seu corpo estava praticamente curvado em um gesto involuntário de submissão.
Grace não se moveu. Ela não precisava se mover. Sua presença era mais do que suficiente para fazer todos se encolherem. Um sorriso de escárnio surgiu lentamente em seus lábios vermelhos, causando um arrepio em Aaron que recuou um passo. Seus olhos procuraram os de Ethan, mas a atenção do irmão estava totalmente na situação que se desenrolava na arena.
— Tarde? — A palavra saiu com uma suavidade cruel, mas carregada de um veneno que poderia matar mais rápido que qualquer lâmina. — Você me informa o óbvio como se fosse uma novidade. — Ela fez uma pausa, deixando o silêncio pesar entre eles, antes de lançar sua última pergunta, como um golpe certeiro. — Deve ser muito confortável ocupar seu posto e ser inútil ao mesmo tempo. Diga-me, o que fez enquanto eles eram mortos? Admirava o horizonte ou estava confuso demais para agir?
Ethan, ao lado de Aaron, franziu o cenho, seu rosto refletia a mesma confusão que se espalhava pelo salão. Ele murmurou baixinho, inquieto.
— Ela vai matá-lo? — A dúvida pairou no ar, mas ninguém respondeu.
Antes que o guarda pudesse se encolher ainda mais, um velho conselheiro atravessou o pátio com passos rápidos. O homem vestia um manto azul-escuro bordado, que combinava com o turbante em sua cabeça. Seus olhos azuis brilhavam com astúcia sob as sobrancelhas grossas. Sua postura era respeitosa, mas seus olhos estavam alertas, como se já soubesse que a situação exigia mais do que palavras diplomáticas.
— Majestade, permita-me fazer algumas perguntas. — Sua voz era um misto de reverência e autoridade, o suficiente para atrair a atenção da imperatriz. Após receber a permissão, o idoso voltou-se ao guarda. — Você é um dos carcereiros, certo? Diga-me, quantos corpos foram encontrados? E quanto a Leila Kaylon, ela estava entre os mortos?
— Cinco corpos foram encontrados na cela e, ao que tudo indica, foram assassinados. Já Leila Kaylon, ela desapareceu. Meu senhor, não sabemos explicar como isso aconteceu, mas posso lhe garantir que em momento algum a cela foi aberta — O guarda gaguejou, a voz mal controlada pelo terror. Ele respirou fundo e continuou: — É quase como se… como se alguém tivesse usado encantamentos proibidos.
Grace apoiou o queixo na mão, analisando as palavras do guarda. Quando falou, sua voz era baixa, controlada, mas cada palavra parecia carregar o peso de uma sentença.
— Encantamentos proibidos, você diz. — Ela tamborilou os dedos no braço do trono, seus olhos âmbar faiscavam enquanto ponderava. — Interessante. Diga-me, qual foi exatamente o protocolo seguido quando esses prisioneiros foram detidos?
O guarda engoliu em seco, hesitando antes de responder:
— T-tudo foi feito conforme ordenado, minha senhora. Seus pertences foram confiscados, a cela foi trancada, e havia carcereiros de plantão…
— Então você está me dizendo que, mesmo com todas as precauções, Leila Kaylon desapareceu deixando uma pilha de corpos para trás? — Grace inclinou-se para frente, os olhos cravados no guarda. — Espera mesmo que eu acredite que alguém que não possui uma gota de energia espiritual no corpo, evaporou no ar minutos antes de seu julgamento? Pare de encobrir seus colegas antes que saia como culpado.
O conselheiro interveio com sua voz calma, cortando o crescente nervosismo no ar.
— Majestade, por que não ouvi-lo? E se alguém realmente tiver feito algum encantamento proibido? — Ele deu um passo à frente, seus olhos azuis brilhavam com discernimento e um leve toque de desconfiança. — Os corpos encontrados na cela podem ser um indício de magia de sacrifício. Há registros de rituais que utilizam sangue para abrir portais ou ativar encantamentos avançados. Isso, claro, poderia explicar os mortos e a ausência da governanta. Mas, considerando as circunstâncias... bem, seria interessante saber quem exatamente teve o conhecimento e os meios para realizar algo tão elaborado.
Ele fez uma pausa, deixando o silêncio pesar, como se a resposta estivesse subentendida, e então completou, com um leve sorriso nos lábios:
— Existe uma possibilidade de que tenha sido obra da própria Leila Kaylon, não? Ela vem de uma família de grande prestígio, com cultivadores em ascensão. Não seria surpreendente que ela soubesse um ou outro segredo... ou tivesse acesso a informações menos... convencionais. Estamos falando de encantamentos proibidos, tudo é possível, até mesmo um não-cultivador seria capaz de desenhar um círculo mágico a troco de sangue e então desaparecer.
Grace ergueu uma sobrancelha, ponderando as palavras com cuidado. Ela voltou sua atenção para o guarda, seus olhos âmbares fixavam-se nele com um brilho penetrante.
— Encantamentos proibidos ou não, o círculo mágico não pode ser ativado se o criador estiver usando uma pulseira de contenção mágica. Estou errada?
O guarda hesitou, suas mãos tremiam ligeiramente enquanto ele tentava formular uma resposta:
— B-bem... Veja bem, Majestade, os suspeitos eram apenas uma cuidadora e alguns cozinheiros. Não havia razão para utilizarmos as pulseiras. Além disso, também tínhamos informações de que os guardas do Palácio Gardênia não eram cultivadores.
O silêncio que se seguiu foi quase insuportável. Todos no pátio prenderam a respiração quando os olhos de Grace se estreitaram, brilhando com uma fúria contida.
— Não havia motivo? — A voz dela começou baixa, quase um sussurro. Cada palavra era carregada de uma ira que queimava sob a superfície. — Essa é a sua justificativa? Vocês não só subestimaram os prisioneiros como também ignoraram deliberadamente a possibilidade de que eles poderiam ter aliados. Vocês colocaram a segurança de todo o palácio em risco por negligência?
O conselheiro, que estava atento a cada palavra de Grace, interveio novamente, com uma expressão grave.
— Com a ausência das pulseiras de contenção mágica, o risco de manipulação do poder espiritual aumenta significativamente. Isso explica como a prisioneira poderia ter utilizado até mesmo uma técnica antiquada para escapar.
Grace assentiu, mas sua expressão permanecia severa.
— Uma falha inaceitável. Quero uma revisão imediata dos protocolos de contenção em todas as áreas do palácio. Não importa se os prisioneiros são apenas babás ou cozinheiros. A partir de agora, qualquer um sob custódia será tratado com o rigor necessário. Continue investigando os detalhes desse ritual. É impossível não pensar que eles tenham recebido ajuda interna. Quero nomes e provas. E se Leila Kaylon estiver, de fato, ligada à facção anti-imperador, ela não deve escapar impune.
O conselheiro inclinou a cabeça em sinal de concordância.
— Majestade, permita-me reforçar a segurança nas fronteiras do Palácio Hibisco e mobilizar uma equipe para rastrear a movimentação ao redor da cela. Os vestígios mágicos podem nos dar pistas sobre o paradeiro dos prisioneiros.
— Faça isso imediatamente. — Grace recostou-se no trono, mas sua expressão continuava afiada. — Não permitirei que esses erros se repitam. Cada detalhe deve ser esclarecido.
Aaron manteve os olhos fixos na mãe. Ele não ouvia as palavras que saíam de sua boca; o som parecia abafado, como se viesse de um lugar distante. No entanto, sua atenção estava completamente presa a ela — o levantar de uma sobrancelha, o movimento rígido de suas mãos no apoio do trono, o brilho cortante de seus olhos enquanto dava ordens. Cada detalhe era uma ameaça silenciosa que fazia sua respiração vacilar.
A garganta estava seca, e ele teve que engolir em seco para afastar a sensação de sufocamento. Ele mal percebeu quando Ethan se aproximou até sentir o calor sutil do irmão ao lado.
— Você está ouvindo, Aaron? — Ethan sussurrou, inclinando-se, sua voz era um misto de ironia e seriedade. — Eles estão especulando que Leila pode ter criado um círculo mágico dentro da cela.
Aaron piscou, tentando afastar o torpor que o dominava.
— Leila? — Ele murmurou, sua mente girava enquanto tentava conectar os fatos.
Ethan arqueou uma sobrancelha, a ironia mais evidente agora.
— Aparentemente, nossa cuidadora não era apenas uma mulher de sangue frio, mas também uma lutadora feroz, capaz de enfrentar homens e mulheres com as mãos nuas e ainda usar sua fonte de vida para montar um arranjo mágico. Isso não te lembra algo?
O príncipe mordeu o lábio enquanto refletia sobre as palavras do irmão. Leila vinha de uma família nobre, participante do conselho imperial. Seu pai, Timos Kaylon, nunca comprometeria sua posição para ajudá-la. Alguém mais devia estar envolvido.
— Um bode expiatório. Alguém está manipulando a situação, talvez a Facção Anti-imperador, a Corte ou o próprio Conselho — Aaron concluiu.
A Facção Anti-Imperador era composta por diversos grupos dissidentes, unidos por um único propósito: derrubar a opressiva Família Imperial, e por sua vez, o poder que os sacerdotes do templo da divindade exerciam. Esta facção acreditava que o domínio dos Elementos Primordiais pela Família Real mantinha o povo subjugado e impedia a verdadeira liberdade e igualdade entre os reinos do império.
A facção operava nas sombras, realizando ataques cirúrgicos contra alvos imperiais e fomentava rebeliões em territórios descontentes. Seus espiões estavam infiltrados em todas as camadas da sociedade, sempre à procura de oportunidades para enfraquecer o regime imperial.
Antes que os gêmeos pudessem continuar, um murmúrio crescente na multidão chamou a atenção dos dois. Guardas imperiais tentavam conter um nobre que havia sacado um cajado mágico, suas vozes estavam cada vez mais evidentes.
— Garotos, eu preciso verificar a situação nas masmorras. Algo me diz que me arrependerei se não for agora. — Kaylus disse, e desviou o olhar para um ponto específico atrás dos gêmeos, onde estavam os alquimistas do Palácio Lótus. — Fiquem tranquilos, minha fera mágica ficará aqui e cuidará de vocês.
— Aquele dragão enorme!? — Ethan murmurou, temeroso. Ele trocou um olhar apreensivo com Aaron, como se buscasse confirmação de que o irmão mais velho estava apenas brincando. — Kaylus, e-eu não quero andar com aquele monstro!
Antes que Aaron pudesse dizer algo, Kaylus suspirou profundamente, sua expressão estava neutra, mas os lábios estavam pressionados em uma linha de leve irritação. Sem dizer mais nada, ele estendeu a mão, e uma energia sutil começou a se formar em torno de seus dedos. A pequena serpente verde com garras emergiu em espirais fluidas, enrolada no pulso dele.
Os pequenos príncipes encararam a criatura enquanto ela se desdobrava. Apesar de seu tamanho diminuto, havia algo em sua presença que fazia a pele dos dois formigar, como se a serpente com chifres carregasse uma força muito maior do que aparentava. Seus olhos brilhavam como pedras preciosas sob a luz dos núcleos mágicos, e as garras em miniatura em suas patas reluziam com um tom metálico.
— Lilian não é um monstro, Ethan. — Kaylus disse, com um tom mais firme, mas não desprovido de um toque protetor. Ele passou a mão nas escamas lustrosas da serpente, que o observava atenta à situação — Ela é minha amiga e sabe distinguir aliados de inimigos.
Aaron, sem dizer uma palavra, estendeu a mão hesitante, mas Lilian se aproximou por conta própria, escalando por seu braço com movimentos ágeis e calculados. O contato das escamas frias em sua pele fez um arrepio percorrer sua espinha, mas ele não recuou. Lilian parou em seu ombro, erguendo a cabeça com um ar de vigilância, como se já estivesse cumprindo seu papel.
— Fiquem com Lilian — instruiu ele — Ela vai mantê-los seguros. Por favor, confiem em mim e me obedeçam dessa vez.
Ethan parecia prestes a protestar novamente, mas um grito cortante rasgou o ar, tão penetrante que o fez instintivamente levar as mãos aos ouvidos. A voz do idoso carregava um desespero que parecia ecoar não apenas pela estrutura do segundo andar, mas dentro de cada pessoa presente, como um prenúncio de algo terrível.
O homem que antes era interrogado pelo conselheiro, agora o imobilizava, pressionando uma espada contra seu pescoço, era possível ver um filete de sangue descer vagarosamente pela gola de sua roupa. O rosto do idoso estava pálido, destacando suas profundas olheiras e rugas. Ele parecia estar murmurando algo para o carcereiro, talvez implorasse por sua vida, ou quem sabe o amaldiçoasse, mas não importava, o idoso tentava de todas as formas se libertar, mas sem sucesso.
O cenário, já tenso, foi marcado por outro grito rouco e desesperado do conselheiro, ele se contorcia entre o abraço de ferro e a lâmina que era pressionada contra seu pescoço, cortando cada vez mais fundo. Após o seu último lamurio, o carcereiro permitiu que o corpo caísse ao chão, inerte. Segurando a cabeça decapitada pelos cabelos, o assassino lançou-a aos pés do assento da imperatriz. A cabeça rolou pelos degraus até parar, permitindo que os olhos sem vida encarassem o céu noturno.
O momento do assassinato do conselheiro foi um ponto de inflexão, um grito silencioso que reverberou através das almas de todos os presentes. A brutalidade do ato, a frieza com que a vida foi ceifada, serviu como um lembrete sombrio da mortalidade que todos compartilhavam. No segundo andar, a confusão era generalizada. Nobres e servos igualmente atordoados buscavam refúgio, a ordem social foi momentaneamente esquecida em face do caos.
O assassino limpou sua espada, espiralando o sangue no chão, e avançou, passando por cima do corpo que já acumulava uma poça vermelha.
— Vejam só o que encontramos por aqui. Deve ser um dos ratos da facção anti-imperador. A que devo essa visita, tão... ousada? Deve ter sido divertido brincar com nossas reações — Grace declarou, erguendo-se de seu assento com um sorriso mordaz.
— Não deveria ser uma surpresa, minha senhora. Suas investigações sempre terminam em sangue. Você estava brincando com fogo. — O carcereiro rebateu, sua postura era relaxada em contraste com o teatro de momentos atrás.
Grace inclinou levemente a cabeça, sua expressão se tornou quase curiosa.
— Fogo? Interessante escolha de palavras. Você é bem corajoso, vindo aqui sozinho. Ou tolo, talvez.
O homem hesitou por um instante, antes de baixar levemente a cabeça. Um sorriso resignado curvou seus lábios, mas havia algo de cruel em seus olhos.
— Corajoso ou tolo, tanto faz. Sou apenas uma isca. — Ele ergueu o olhar, agora carregado de malícia. — Enquanto estamos aqui conversando, meus companheiros já têm tudo sob controle. Coletaram todo o ouro dos cofres do Palácio Hibisco e pegaram toda a comida. Isso é demais para uma mulher gananciosa como você, não acha?
— Palavras arrogantes de um homem condenado. — Helena interveio, aproximando-se com uma aura de poder emanando dela. Seus olhos púrpura faíscavam contendo perigo — Você fala como se já tivesse vencido, mas esquece onde está. Este é o Palácio Hibisco, e aqui, já derrubamos adversários bem mais formidáveis que você!
O homem hesitou por um momento, mas logo forçou um sorriso.
— Sim, você pode estar certa — ele admitiu, estalando a língua — Só é uma pena que os príncipes não tenham morrido. Vocês estão tornando minha vida cada vez mais difícil. Eu planejava dar a eles uma morte rápida e pacífica.
— Seu atrevimento só é superado pela sua estupidez. — Grace respondeu. Seu rosto delicado assumiu uma expressão feroz enquanto descia os degraus rumo a arena, erguendo ligeiramente a barra de seu vestido. — Você realmente acha que pode vir aqui e ameaçar a minha família sem consequências?
A luz dourada do chicote tremeluziu como um sol distante, sua luminosidade era refletida nas manchas escarlates que tingiam o mármore polido. O ar carregava o cheiro acre de sangue e ferro, um perfume que se misturava ao calor abrasador emanado da arma recém-invocada. A imperatriz descia os degraus com uma lentidão calculada, como se o mundo tivesse parado para observar o desenrolar de sua ira.
A cabeça do conselheiro, arrancada de seu corpo, jazia ao pé da escadaria. Seus olhos vítreos fitavam o vazio, e os lábios arroxeados estavam entreabertos em um grito que jamais seria ouvido. Grace lançou um olhar breve àquela relíquia de carne, mas não havia piedade em seus olhos dourados, apenas uma chama fria que queimava mais forte a cada passo.
O homem à sua frente, ainda segurando a espada, deu um passo à frente, seus músculos estavam retesados como os de um animal encurralado. A lâmina tremulava em sua mão, mas seus olhos permaneciam fixos na imperatriz, sustentando um resquício de dignidade.
— O que é uma mera lâmina diante do poder do sol? — perguntou ele, quase para si mesmo. Sua voz era rouca, marcada pelo peso de noites insones. Ele ergueu os olhos para Grace, como um prisioneiro encara seu carrasco. — Nós somos simples homens, enquanto você e sua família brincam de deuses.
Grace parou, o chicote ainda brilhava em sua mão. Uma sobrancelha arqueou-se ligeiramente, mas seu rosto permaneceu frio como mármore.
— Diga-me seu nome — ordenou ela, com uma curiosidade que parecia mais cruel do que compassiva.
O homem riu, uma risada amarga que rapidamente se dissolveu em um suspiro pesado.
— Meu nome? Você quer meu nome? — Ele balançou a cabeça, incredulidade e desprezo lutando por espaço em seu semblante. — Sou apenas um homem, um dentre milhares que sangram por suas guerras e murcham sob sua fome. Meu nome não tem importância.
— Você ousa me desafiar e diz que seu nome não importa? — Grace deu um passo à frente, e o calor do chicote intensificou-se, fazendo o homem recuar instintivamente.
Ele bufou, os dentes cerrados num esforço para resistir ao medo que começava a invadi-lo.
— Você quer um nome para odiar? Muito bem. Chame-me de Hekar. — Ele fitou Grace, os olhos profundos como poços de dor e fúria. — Hekar do sul, de uma aldeia no Reino Inferior que você não conhece e que nunca existiu para sua Corte. Minha esposa morreu tentando salvar nossa colheita do fogo que o exército do País do Fogo ateou em nossas terras. Meus filhos foram levados para lutar na guerra de um império que nada lhes deu além de dor e miséria. Um deles voltou, mas apenas em pedaços. O outro... Nem isso.
Ele engoliu em seco, diante das lembranças.
— Não sou um homem, minha imperatriz. Sou apenas um rato, como você mesma diz. Um rato inconformado pela desigualdade que há no Império do Sol! E não pense que acabou, existem outros ratos que assim como eu, perderam bastante com sua má gestão, e estão ansiosos pela queda da Família Albélia.
Grace desceu mais um degrau, o som de seus sapatos contra o mármore ecoava pela arena. O chicote ainda brilhava em sua mão, cada movimento deixava rastros dourados no ar pesado. Ela o encarou, mas dessa vez não era o poder imperial que dominava seus olhos dourados, e sim algo mais pessoal: dor e rancor.
— Você fala de perdas, Hekar. Fala de miséria, de dor e sofrimento. — A voz de Grace era suave, quase gentil, mas havia um peso nela. — Mas onde estava sua compaixão quando meus filhos, de apenas dez anos, lutavam para respirar? Quando o veneno que Leila colocou em seus pratos corria por suas veias?
Hekar endureceu a expressão, mas não respondeu. O silêncio que se seguiu foi como um punho apertando os corações de todos os presentes.
— Responda-me, Hekar! — A voz de Grace cresceu, ecoando como o som de trovões. — Onde estava sua justiça quando dois meninos inocentes foram transformados em peões de sua causa inútil?
— Inocentes? — A voz dele era quase um sussurro, mas carregava um peso que cortava o ar. — Como podem ser inocentes os herdeiros de um trono que só trouxe morte e miséria? Eles são o sangue de sua linhagem. Sangue de opressores. Se eu tivesse o poder de esmagar a tirania em sua raiz, eu o faria sem hesitar.
Aquelas palavras feriram mais profundamente do que qualquer lâmina. Grace apertou o punho em volta do chicote.
— Você ousa falar dos meus filhos como se fossem culpados pelo pecado de nascerem na minha casa? — disse ela, sua voz oscilando entre indignação e tristeza. — Eles são apenas crianças, Hekar. Crianças que agora carregam cicatrizes do veneno que você ajudou a trazer.
Hekar deu de ombros, embora seu rosto mostrasse uma dor contida.
— Todos carregamos cicatrizes, minha imperatriz. Por que seus filhos seriam exceção?
Com um movimento súbito, o chicote estalou no ar, iluminando a arena com um brilho feroz. Ele atingiu Hekar no peito, rasgando o tecido e queimando a carne com um cheiro nauseante. O homem gritou, caindo de joelhos enquanto pressionava a mão contra o ferimento, mas sua expressão ainda era desafiadora.
— O que temos aqui? Um império construído sobre sangue, mentiras e tirania... é só isso que resta à sua coroa? — disse ele, ofegante, mas ainda sorrindo, embora sua dor fosse evidente.
Grace puxou o chicote de volta, a arma brilhou como o próprio sol, e o golpeou novamente. O som do impacto reverberou pela arena, seguido pelo grito de Hekar. Mas ainda assim, ele não se curvava.
— Onde está Leila? — exigiu Grace, a voz quase um rugido.
Hekar ergueu o rosto, agora manchado de sangue e suor.
— Longe... — ele murmurou, quase sem forças, mas o sorriso em seus lábios permanecia. — Longe o suficiente para que você jamais a alcance.
O chicote estalou novamente, desta vez envolvendo o pescoço de Hekar. Grace puxou com força, trazendo-o para mais perto. Seus olhos dourados queimavam de raiva, mas havia algo mais profundo ali — uma mágoa que nem toda demonstração de poder poderia curar.
— Seu sacrifício será inútil — disse ela, cada palavra era carregada de veneno. — E sua causa morrerá junto com você.
Ela puxou o chicote mais uma vez, o calor aumentou até que o corpo de Hekar começou a crepitar. O grito final dele ecoou pela arena antes que seu corpo caísse, carbonizado, sobre o mármore dourado.
Grace ficou ali por um momento, respirando pesadamente. O chicote de luz se dissipou em uma chuva de fagulhas, mas o calor ainda irradiava dela.
— Levem-no daqui — ordenou, sem olhar para os guardas que se aproximaram.
Os murmúrios nos camarotes começaram novamente, mas Grace não lhes deu atenção. Ela olhou para os degraus ensanguentados e depois para o céu, onde a lua começava a se esconder atrás das nuvens.
E com isso, virou-se, subindo os degraus de volta ao trono, deixando para trás o cheiro de sangue, ferro e carne queimada.
Caros leitores,
O capítulo de hoje foi intenso, sombrio e, acima de tudo, repleto de emoções conflitantes. A jornada de Grace e a luta pelo trono do Império do Sol são marcadas por escolhas difíceis, onde heroísmo e tirania se entrelaçam, e cada personagem carrega suas cicatrizes de um passado sangrento.
Mas quero lembrá-los de algo: este é apenas o começo. Cada golpe, cada palavra e cada perda nesta história têm um propósito. Neste mundo, onde luz e sombras colidem, todos carregam suas razões, sejam elas nobres ou sombrias.
Ao ler, pergunte-se: de que lado você estaria? Qual seria a sua escolha diante do fogo do poder e das cinzas da opressão?
Obrigado por embarcar nessa jornada comigo. Suas opiniões e reflexões são parte essencial desta história. O que acharam do confronto entre Grace e Hekar? Conseguem enxergar as motivações por trás de suas ações?
Espero ansiosamente seus comentários e teorias. Vamos construir juntos esse universo em chamas.
Com gratidão,
S.Y Ravena.
Bạn đang đọc truyện trên: Truyen247.Pro